Três documentários exibidos no Festival In-Edit Brasil 2018
por Marcelo Costa
“Som, Sol & Surf – Saquarema”, de Hélio Pitanga (2018)
No verão de 1975, Nelson Motta (que apresentava o programa Sábado Som, na TV Globo) produziu um festival no Rio de Janeiro: em quatro fins de semana, o Hollywood Rock reuniu cerca de 18 mil pessoas por dia no campo do Botafogo. Animado com o sucesso do evento, o músico Flávio do Espirito Santo procurou o prefeito da pequena cidade praieira de Saquarema propondo um evento igual no estádio local. Sinal verde dado, ele foi atrás de Nelson Motta, que, após muita insistência, topou fazer o festival no mesmo fim de semana de um festival de surf em maio de 1976, planejando ainda lançar um filme e um disco sobre o evento (nos moldes de Woodstock). No primeiro dia do “Sol, Som, Surf, Saquarema 76”, uma chuva torrencial interrompeu a programação e derrubou parte do muro do estádio (que já havia sido pulado por centenas de pessoas). Decisão da produção: segundo dia gratuito. Na cidade de 10 mil habitantes, caos com mais de 40 mil visitantes (faltava água, comida, hotel), mas quem estava em Saquarema (na vibe rock, surf, paz e amor) não ligou para nada disso, e curtiu a bagunça. Nelson Motta saiu quebrado financeiramente do evento, e sem grana para pagar pela filmagem, negociou que o diretor Gilberto Loureiro ficasse com as mais de cinco horas captadas em película (por Miguel do Rio Branco e Pedro Moraes com som direto por Jom Tob Azulay) em troca do trabalho. Mas o filme nunca foi feito e estava se deteriorando até o diretor Hélio Pitanga resgatar esse material histórico juntando a ele entrevistas atuais com o produtor Nelson Motta, Lobão (que se apresentou com o Vimana e estava na produção do evento), o prefeito, surfistas e Angela Rô Rô, que abre de maneira sensacional as imagens resgatadas, que ainda trazem Made in Brazil, Bixo da Seda, Raul Seixas e Rita Lee & Tutti Frutti (lançando “Entradas e Bandeiras”), entre outros. Trabalho de resgate essencial, “Som, Sol & Surf – Saquarema” mostra o caos de um festival de rock (e de calças bocas de sino no meio da Ditadura) que fracassou financeiramente, mas permaneceu na memória de muitos. Histórico.
Nota: 10
“Onde Está Você, João Gilberto?”, de Georges Gachot (2018)
O jornalista alemão Marc Fischer, nascido em Hamburgo e residente de Berlim, estava com o coração partido quando resolveu fazer uma viagem para ver se esquecia o amor perdido. Com um amigo, desembarcou em Tóquio, mas nada na capital japonesa o acalantava. Isso até topar com o editor de uma moderna revista japonesa (“cheias de tênis e fotos pornô de Terry Richardson”), ir beber uma cerveja com ele em sua casa, e se espantar com um pequeno santuário cujo ícone maior era… um disco de bossa nova. Bastou ouvir “Ho-ba-la-la”, de João Gilberto, para ganhar vida novamente. E um vício: ele queria quer João Gilberto tocasse “Ho-ba-la-la” para ele! Para isso, arrumou as malas e se mudou para o Rio de Janeiro, onde começou uma longa saga atrás do gênio, que rendeu o livro “Ho-ba-la-la: À Procura de João Gilberto”, lançado na Alemanha em 2011 (edição nacional via Cia das Letras no mesmo ano) pouco tempo depois de Marc se suicidar (sem ter ouvido João tocar “Ho-ba-la-la”). Esse livro caiu nas mãos do cineasta franco-suíço Georges Gachot, que já havia feito três filmes sobre a música brasileira (“Maria Bethânia – Música É Perfume”, de 2005; “Rio Sonata”, sobre Nana Caymmi, de 2010; e “O Samba”, de 2014), e também é um apaixonado por João Gilberto. Encantado com a narrativa detetivesca de Fischer, que na busca por João Gilberto encontrou grandes histórias, Gachot decidiu recriar os mesmos passos do alemão escudado por centenas de fotos, anotações, registros, gravações (todos cedidos pela família do jornalista) e a mesma Watson de Marc Fischer (a carioca Raquel Balassiano) na tentativa de encontrar João e ouvir “Ho-ba-la-la”. No caminho, assim como Marc, Gachot irá conversar com João Donato, Miucha, Marcos Valle, Roberto Menescal e Garrincha (cozinheiro que preparava e mandava entregar o prato favorito de João: filé grelhado no sal grosso, com arroz maluco e farofa), entre outros, num documentário absolutamente lírico e poético que homenageia todos os apaixonados por música. Encantador!
Nota: 10
“Eu Sou o Rio”, de Anne Santos e Gabraz Sanna (2017)
Em meio ao boom do rock nacional dos anos 80, o Black Future amargou um longo tempo de espera até que o EP “Cartas do Absurdo”, engavetado, se transformasse no seminal álbum “Eu Sou o Rio” (1988). A participação de Edgard Scandurra, Paulo Miklos, Edu K, Alex Antunes e Thomas Pappon pesou na decisão da RCA em investir no batuque pós punk samba macumba, mas o disco só fez sucesso de crítica – Satanésio, um dos cabeças da banda, até dividiu uma capa da revista Bizz com Humberto Effe, dos Picassos Falsos, em 1989. A outra metade do genial Black Future, Tantão, seguiu numa carreira errática de músico experimental, performer e artista plástico tornando-se um anti-herói amado e odiado do underground carioca. Numa noite de 2016, Tantão levou sua poesia lisérgica e sua voz escarrada para o estúdio Radiolixo, no bairro do Estácio, e acompanhado de dois músicos gravou seu primeiro disco em quase 30 anos, “Espectro” (2017), de Tanta?o e os Fita, que apareceu em várias listas de melhores do ano. Este documentário segue a mesma vibe “one shot” (com repetições) do disco “Espectro”, com a dupla Anne e Gabraz filmando um fim de semana alucinado na vida errante de Tantão pelos becos do Rio. Entre carreiras de cocaína, disquetes de computador, copos de cerveja e improvisos chapados de canções dos Mutantes e da Legião, o espectador acompanha a rotina auto-criativa-destrutiva de Tantão, que berra que “artistas nunca morrem: se matam” e aporrinha um ensaio de reunião do Black Future, que quase termina em briga. São 78 minutos de desconforto num filme que “homenageia” a criação da arte de maneira sufocante para um público que está acostumado a saber das fofocas dos “vencedores” do establisment pop, mas se esquece de todos os demais, como se eles fossem mendigos que todos desviam o olhar na rua da cultura. Pesado, chapado e melancólico, “Eu Sou o Rio” é o desnudamento da criação, um desfile assustador em que a poética sorri sarcasticamente enquanto o sangue escorre de uma faca atolada no peito. Valeu a pena.
Nota: 13
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Leia também:
– Festival In-Edit 2014: Pulp, Kathleen Hanna, Hendrix, The National e mais (aqui)
– Festival In-Edit 2015: Slint, Joe Strummer, Bob Dylan, Edwyn Collins, Elliot Smith e mais (aqui)
– Festival In-Edit 2017: The Stooges, Nick Cave, Júpiter Maçã, Serguei, Coltrane e mais (aqui)