por Daniel Tavares
O novo disco de Bruce Springsteen, “High Hopes”, que chegou às lojas em 14 de janeiro (vazou por “descuido” da Amazon um pouco antes), foi o 11º lançamento do Chefão a aparecer no número 1 da Billboard (desta forma, Bruce ultrapassa Elvis Presley e fica atrás apenas de Jay Z – com 13 números 1 – e Beatles, com 19), mas, apesar de ser o mais recente álbum do Boss, a maior parte dele não é de material novo.
Entre covers (como a faixa título, de Tim Scott McConnell, já gravada por Bruce e lançada em um EP em 1996), regravações (como “The Ghost of Tom Joad”, canção que dá nome ao álbum de 1995 de Bruce) e sobras de estúdio (“Harry’s Place”, por exemplo, é de 2001 e ficou fora de “The Rising”) há “American Skin (41 shots)”, canção que se tornou emblemática em shows de Bruce desde sua primeira execução, em 04 de junho de 2000.
Bastante pirateada por fãs, “American Skin (41 shots)” (que, inclusive, esteve presente no setlist que Bruce apresentou em São Paulo, em setembro do ano passado), já ganhou uma versão registrada ao vivo (no disco “Live in New York City”, de 2001 – assista ao vídeo original abaixo) e até mesmo uma rara gravação de estúdio (divulgada apenas para algumas rádios em CDR em 2001 – foto que abre o texto), mas jamais tinha sido lançada oficialmente. Hoje, “American Skin (41 shots)” é um dos maiores destaques de “High Hopes”. Mas, do que ela fala?
Bruce a compôs em homenagem a Amadou Diallo, um imigrante guineano de 23 anos que foi abordado perto de sua casa em 4 de fevereiro de 1999 por quatro policiais à paisana – Edward McMellon, Sean Carroll, Kenneth Boss e Richard Murphy – que o confundiram com um suspeito por vários estupros. O desfecho trágico entrou para a história: os soldados dispararam 41 vezes, sendo que 19 tiros acertaram o rapaz, fatalmente.
Há relatos – não confirmados – de que, a princípio, Diallo chegou a pensar que se tratava de um assalto, uma vez que os policiais não estavam fardados. O jovem, que vendia fitas de vídeo, meias e luvas em uma calçada da 14th street, também não estaria em situação legal no país (o que torna sua história parecida com a do brasileiro Jean Charles), tendo mentido ao pedir asilo político nos Estados Unidos. Ele teria afirmado que era da Mauritânia e que seus pais teriam sido assassinados em seu país de origem em um formulário que preenchera.
No momento da abordagem, tentando mostrar que não estava armado e/ou pegar sua identidade, Diallo colocou a mão no bolso, retirando de lá um objeto preto. O policial Carrol gritou “revólver!”, ao que seus colegas abriram fogo. Outro policial, McMellon, se assustou e caiu dos degraus onde se encontrava, fazendo com que os outros acreditassem que ele tinha sido atingido. Poucos segundos e 41 tiros depois, Diallo estava morto, fuzilado, atingido 19 vezes. O objeto preto que ele tinha retirada do jaqueta era uma carteira.
O caso foi manchete nos jornais do país inteiro tornando os debates sobre violência policial um assunto nacional. Uma onda de protestos inspirou várias canções com referencias a Diallo, e além da música de Bruce Springsteen, artistas como Ziggy Marley, Wyclef Jean e a banda Le Trige, entre muito outros, também falaram do jovem. Algum tempo depois, os policiais foram inocentados da acusação de assassinato, e ou saíram do NYPD ou passaram a realizar funções burocráticas.
A mãe e o padastro de Diallo processaram a cidade de Nova York por negligência, morte por engano, racismo e outras violações dos direitos civis recebendo uma quantia final de 3 milhões de dólares, muito menor que a requerida (US$ b61 milhões), mas, por sua vez, a maior já paga devido à morte de uma pessoa solteira naquele estado. O tema voltou à discussão e chegou a ter certa influência nas eleições para prefeito de Nova York em 2005.
Em “American Skin (41 shots)”, Springsteen discorre sobre o acontecimento (“Será uma arma? Será uma faca? Será uma carteira? Esta é sua vida”), além de oferecer a imagem de uma mãe instruindo seu filho sobre como se portar num eventual encontro com os tiras: “Nessas ruas, Charles / você tem que entender as regras // Se um oficial lhe parar / prometa-me que será sempre educado / e que nunca correrá // Prometa pra mamãe que manterá suas mãos ao alcance da visão”.
Após apresenta-la em 2000, Bruce tocou a canção ao vivo mais 27 vezes até 2003, e voltou a inclui-la no repertório dos shows em 2009 e, posteriormente, em 2012, desta vez em protesto ao assassinato do jovem negro Trayvon Martin por um segurança do condomínio, que foi absolvido da acusação de assassinato (teria alegado legítima defesa), o que provocou várias acusações de crime racial por todo o país, uma situação que, de certa forma, remeteu ao que aconteceu com Diallo.
Além da canção de Springsteen, várias outras canções lamentaram o ocorrido com Diallo. É o que veremos a seguir:
O Living Colour registrou uma versão de “American Skin (41 Shots)”, de Bruce Springsteen, em julho de 2001 no Festival de Montreux, na Suíça. No trecho final da canção, Corey Glover não segurou as lágrimas. Assista abaixo (valeu pela dica, Jean).
Em sua canção “Contempt Breeds Contamination”, o Triviun conta exatamente o que aconteceu. “Os quatro protetores / Dispararam 41 tiros / atingindo-o 19 vezes / Revistando o corpo / nenhuma arma foi encontrada / Ele jaz com todos que morreram em vão”.
Ziggy Marley diz que “os matadores de Diallo ficaram livres, pagos pela sociedade” em “Now I Know You Don’t Care About Me”, antes de lamentar gritando o nome do guineano. Confira a letra e a canção no vídeo abaixo:
Em “Things I’ve Seen”, o grupo de rap Spooks fala: “Amadou Diallo somos nós, e agora eu estou de joelhos, implorando: “Deus, por favor! Salva-me do fogo do inferno!”
O rapper Paris critica fortemente a administração Bush, principalmente após o 11 de setembro, em “What Would You Do”, mas lembra que antes mesmo daquela fatídica data a polícia já se envolvia em excessos: “Mas eu lembro como esses demônios faziam antes de setembro. Foda-se o Giuliani. Perguntem ao Diallo como ele anda”.
Outro rapper, Blitz (também chamado The Ambassador), que também migrou da África (de Gana) para os Estados Unidos nos anos 90, conclama: “Libertem o meu povo, Uhuru significa liberdade”. Nota: a palavra está na Língua suaíli, falada em alguns países africanos.
O rapper haitiano Wyclef Jean gravou um reggae em homenagem a Diallo, dando a canção o nome do jovem e sugerindo que ele, ao ser interpelado pelos policiais à paisana, pensou primeiro se tratar de um assalto. Além disso, Wyclef aponta semelhanças entre o assassinato de Diallo e os de Martin Luther King (também citado inúmeras vezes em várias outras canções) e do ativista sul-africano Steven Biko.
Terry Callier, em “Lament For The Late AD”, homenageia tanto Diallo quanto a cidade de Nova York, mas se sentindo perplexo pelo que aconteceu.
A banda electro punk feminina Le Tigre, entre uma gravação de noticiário e outra relatando o assassinato de Diallo, pergunta: “Quem vai ligar 9-1-1quando eles não sabem distinguir uma carteira da porra de uma arma?”. A canção termina com as meninas contando de um a quarenta e um.
Mais um rapper, o peruano criado em Nova York Felipe Andres Coronel, mais conhecido como Immortal Technique, entre um palavrão e outro discorre sobre o mesmo tema: “Uma carteira não se parece com uma arma. Como vocês puderam confundir isto?” E mais: “Eu tenho 41 razões pra mandá-los chupar uma rola”.
O coletivo de rappers chamado Hip Hop For Respect, formado por nomes como 88 Keys, Mos Def e muitos outros, lembra da mãe de Dillo em “A Tree Never Grown”: “Seu filho jamais voltará para casa. E, tendo sido o caixão de Amadou fechado e entregue à terra, a semente que ela plantou será uma árvore que jamais crescera”. Na extensa letra, eles ainda afirmam que 41 é um número difícil de entender e que a constituição dos Estados Unidos teria ganho quarenta e um buracos a mais naquela ocasião.
A banda de hardcore Choking Victim (também conhecida como Crack Rock Steady 7) menciona o “número fatal” novamente em “So You Wanna Be A Cop?”: “Então você quer ser um policial? / Você nunca para de estourar com suas armas maus perversas / depois de 41 tiros vai estar sorridente na loja de rosquinhas”.
Para finalizar, temos uma canção sem palavras. Roy Campbell Jr., trompetista norte-americano falecido este ano (9 de janeiro), gravou o jazz “Amadou Diallo” em seu álbum “Ethnic Stew and Brew”. A canção termina com uma rápida explosão de quarenta e uma notas, uma para cada tiro dado. Para esta canção, infelizmente, não encontramos, vídeos no YouTube, mas você pode ouvi-la no Deezer (aqui)
Leia também:
– Discografia comentada: Bruce Springsteen, por Marcelo Costa (aqui)
Há também uma versão da música de Bruce feita pelo Living Colour, facilmente encontrável no Youtube, em que o cantor Glover termina a canção aos prantos. De arrepiar.
Grande dica, Jean! Incluímos no texto!