por Bruno Capelas
“Esta é uma banda de contradições”. É assim que a escritora inglesa Zoë Howe define o Jesus and Mary Chain, grupo sobre o qual escreveu em “Barbed Wire Kisses”, recém-lançado no Brasil pela estreante Editora Sapopemba. Mas é justamente nas contradições que o conjunto escocês capitaneado pelos irmãos Jim e William Reid faz sentido: a mistura entre um lado romântico e outro obscuro, entre vocais sussurrados e uma “neblina de ruído” – ou, para os iniciados, a justaposição entre o “doce” e o “psicótico” (“Psychocandy”).
Ao longo de 348 páginas, Howe mostra a trajetória da banda, de uma vila na Escócia até o ressurgimento nos anos 2000, graças a Sofia Coppola – passando, claro, por gravações, bebedeiras e shows históricos (e outros nem tanto). Ela tem bagagem para isso: antes de escrever sobre o Jesus and Mary Chain, também já elaborou escritos sobre Stevie Nicks, Florence + The Machine, The Slits, Wilko Johnson e Lee Brilleaux, vocalista da banda setentista Dr. Feelgood. “Acredito que toda biografia é uma celebração do trabalho de uma vida”, diz ela, que decidiu se embrenhar pela carreira dos Reid depois de perceber que não havia nenhum livro definitivo sobre a banda.
Na entrevista a seguir, realizada por email em conexão São Paulo-Essex, Zoë fala mais sobre o processo de escrita – ela diz ser muito cuidadosa em entender se algumas histórias que ouve são “para ela ou para o livro” – e a influência da banda para gerações posteriores. Além disso, defende a teoria de que o Jesus & Mary Chain, que recentemente fez um grande show em São Paulo, foi o grupo mais importante de sua geração. “Eles deram algo a ser admirado a uma série de adolescentes questionadores e esquisitos.” Com a palavra, Zoë Howe.
Minha primeira pergunta é bem pessoal: qual foi sua primeira reação ao ouvir o Jesus and Mary Chain? O que chamou sua atenção: o lado “psycho” ou o lado “candy”?
Na minha opinião, não dá para separar um do outro – é a sinergia entre as duas qualidades que faz o som da banda convencer o ouvinte. Desde a primeira vez que ouvi o Mary Chain, sigo sendo afetada pelo poder das canções e dos contrastes sônicos: vocais sussurrados por trás de uma neblina de ruído, que é desorientadora e sonhadora. Esta banda é uma banda de contradições e isso se reflete em seu som e suas canções.
Como isso evoluiu para que você decidisse publicar um livro sobre o Mary Chain?
Como acontece com todos os meus livros, há uma junção de elementos diferentes. Eu era amiga de alguns membros antigos do Mary Chain – em especial, de John Moore (que assumiu a bateria do Jesus assim que Bobby Gillespie decidiu se concentrar no Primal Scream, ficando na banda entre 1986 e 1988), que deu suporte imensurável ao longo de todo o projeto. Em certa ocasião, perguntei a ele se era algo que o grupo seria favorável, ou ao menos toleraria. Havia existido um livro feito para fãs em 1988, mas tirando isso, nenhuma biografia havia sido escrita sobre eles. Achei que o Mary Chain merecia uma celebração compreensiva e atualizada, que jogasse luz sobre sua carreira toda e seu processo criativo, com suas próprias palavras e memórias.
Você também já escreveu sobre Stevie Nicks e Lee Brilleaux, duas figuras dos anos 1970. O que une os dois ao J&MC?
Também escrevi sobre o Slits, Florence and the Machine, Wilko Johnson, Poly Styrene e outros. Não precisa haver nenhuma conexão maior do que serem apenas artistas extraordinários, com integridade, comprometidos com a criatividade e inspiradores, de algum jeito. É o que basta para que eu queira escrever sobre eles com profundidade. Dito isso, o Jesus and Mary Chain nasceu de um amor pelo punk – e claro, outros gêneros e estilos. Mas eles também foram iluminados pelo punk de um jeito que os motivou artisticamente, de uma forma multidimensional. Eles faziam colagens e fotografias; Douglas é um cineasta; eles eram interessados em várias coisas que não só o rock’n’roll, eram capazes de olhar para fora e retroalimentar sua criação. Mas, de volta à sua questão original, acredito que existe uma conexão óbvia entre o J&MC, Stevie Nicks e Lee Brilleaux: em todos os casos, há uma grande paixão pelo rock e, ao menos nos tempos de glórias, muita bebida.
Como foi o processo de navegar em torno dos irmãos Reid e suas histórias?
Como acontece com todos os meus projetos, sou sensível e quero ter certeza de que as pessoas com quem estou falando estão confortáveis com as áreas que falamos e o que eles decidem compartilhar. Como biógrafa, tenho uma responsabilidade: estou lidando com vidas reais, memórias que podem ser dolorosas ou ainda nem processadas pelas pessoas. Em muitos casos, isso inclui a juventude e até a infância das pessoas. São assuntos preciosos e devem ser tratados assim. Algumas coisas, claro, não são assuntos dos outros. Não estou nesse trabalho para buscar a sujeira; quero que os artistas com quem trabalho se sintam felizes com o livro. Para mim, uma biografia é uma celebração do trabalho de uma vida, no fim das contas. Demanda energia, tempo e amor. Não estou interessada em sacanear ninguém.
Houve histórias que ficaram fora do livro por serem “impublicáveis”?
Houve histórias que não puderam entrar, claro. O que pode acontecer quando você trabalha nesse nível é que algumas coisas podem surgir no meio das conversas. Às vezes, é preciso ter intuição para distinguir se a pessoa disse aquilo “para o livro” ou “só para mim”, pelo prazer da conversa. Muitas vezes, se não consigo distinguir, eu pergunto, mesmo que isso signifique excluir uma história incrível do livro. Não vale a pena machucar as pessoas. É preciso se colocar no papel da outra pessoa.
Uma das principais frases do livro fala sobre o Jesus and Mary Chain serem os “poster boys”, os grandes símbolos da geração indie dos anos 1980. Na sua opinião, o que torna eles únicos perante outros nomes da mesma época, como Smiths, Pixies ou Sonic Youth, por exemplo?
Acredito que o Jesus and Mary Chain trouxe aos anos 1980 um grande senso estético, bem como influências musicais particulares, que eles bateram juntas no liquidificador e foram capazes de criar algo novo. Estou pensando, claro, naquele pop agridoce dos girl-groups dos anos 1960 (e coisas parecidas) tendo um encontro com o som industrial e obscuro do Einstürzende Neubauten, por exemplo. Além disso, também havia algo misterioso sobre eles: eles criaram uma atmosfera, aquele visual meio “Beatles em Hamburgo encontram os beatniks”, e claro, aqueles cabelos maravilhosos. Quanto ao lado de serem os “poster boys”? Muitos adolescentes se relacionaram com o visual externo deles: eram nervosos, tímidos, não adaptados à sociedade, mas também eram sensuais, inteligentes e… bem, eles eram românticos. Acredito que o Jesus and Mary Chain deu algo a ser admirado a uma série de adolescentes questionadores e esquisitos.
Como você vê a volta do Jesus and Mary Chain? Quanto disso é culpa de “Encontros e Desencontros”?
Acredito que eles ainda soam muito bem e sabem soltar seu feitiço no palco. Amo o fato de que ainda estão por aí. Filmes certamente podem fazer diferença para reintroduzir um grupo à cultura pop mainstream, claro. Quanto a retornos em geral, acredito que vale a pena desde que o artista que esteja no palco ainda seja capaz de tocar e demonstre amor e respeito pelo que faz.
Sem o Jesus and Mary Chain, o som da década seguinte seria o mesmo?
Provavelmente não. Há até mesmo bandas dos últimos dez anos que me fazem refletir sobre isso. Eu costumo ouvir a voz de Jim na voz de outras bandas constantemente. E “Primary Colours”, do The Horrors, é bastante a cara do J&MC, bem como é a atitude deles no palco – e isso é um elogio. Acredito que são capazes de conjurar o mesmo sentimento de poder obscuro e romance combinados.
No prefácio à edição brasileira, Douglas Hart menciona o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Como você vê o gesto dele, considerando, que o J&MC não é uma banda política – ao menos, à primeira vista?
Eu não diria que o J&MC é uma banda política. Douglas, como indivíduo, porém, é um cara bastante engajado e consciente.
Estamos vivendo uma era de cinebiografias musicais estourando nos cinemas. Quem poderia interpretar os irmãos Reid numa versão de “Barbed Wire Kisses”?
Adoraria ver meu livro na telona, claro. Acho que teria de pensar nisso por algum tempo, mas acredito que John Simm faria um ótimo Jim Reid. E quem sabe Paddy Considine para William?
Para fechar: se fosse preciso escolher apenas uma canção do Jesus and Mary Chain para apresentar a banda a alguém, qual seria? E por quê?
“Shimmer”, b-side do single “Blues From a Gun”, fase “Automatic”, de 1989. Ela tem a combinação perfeita da malevolência e da magia do Jesus and Mary Chain? Há algo obscuro, profundo, sensual e serpentino sobre ela. É uma canção curta, mas ao final dela, é difícil sentir que você não foi transportado para outro lugar.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista do Estadão. Colabora com o Scream & Yell desde 2010. A foto que abre o texto é de Melanie Smith /Divulgação