por Leonardo Vinhas
“No Brasil, fazer sucesso é pecado”. A frase já foi usada tantas vezes que sua autoria já se perdeu na profusão de citações. Mas continua valendo para muitas áreas de atuação, principalmente nas artísticas – teatro e música, possivelmente mais que as outras (ou pelo menos o estardalhaço contra quem “se vende” é maior). Ela só não é equivocada geograficamente: o problema de se incomodar com o êxito alheio não está restrito a território nacional. Vide o caso da banda peruana Bareto: ícone maior do underground de seu país até que, em 2008, estourou no mainstream de seu país graças ao disco “Cumbia”, composto de releituras de cumbias antigas, a maioria delas conhecidas no registro da banda Juaneco y Su Combo. As “acusações” foram muitas: de terem “traído” a música alternativa, de terem “se aproveitado” de Juaneco y Su Combo (o fato de terem dado crédito, citarem sempre a influência e trazerem o cantor de Juaneco para gravar com eles não amenizava a fúria dos detratores), de serem cúmplices da programação de má qualidade da TV…
Sete anos se passaram, a banda segue famosa em seu país e conquistou muitos outros ouvintes em países tão diferentes quanto México, Colômbia, Argentina, Estados Unidos e até Brasil, onde tocou em 2012 num antológico show em Porto Alegre. Por aqui, aliás, é presença obrigatória em qualquer “festa latina” que se preze (“Ya Se Há Muerto Mi Abuelo”, ”Cariñito” e sua versão de “Llorando se Fue” costumam ser infalíveis nas pistas). O que diriam os fãs mais afeitos a conceito se soubessem que a banda é estrela de programas dominicais de TV e toca nas FMs mais populares? Distante dos preconceitos locais, fica mais fácil apreciar a música de um artista pelo que ela de fato é. A do Bareto é rica, com fundamentos assumidos na chicha (variante peruana e psicodélica da cumbia) e no reggae, mas que traz tantos detalhes e variações nos arranjos e na harmonia que fica difícil dizer que “há elementos” disso e daquilo. É mais justo dizer que conseguiram criar uma identidade que transcende suas influências.
A entrevista a seguir dá indícios de que a riqueza irá aumentar no próximo álbum, “Impredecible”, que já teve duas canções lançadas publicamente: “La Pantalla”, primeiro single do disco, e “La Voz del Sinchi”, instrumental chapadão disponível para download gratuito no site da banda. Mas antes do lançamento mundial do novo álbum, vem uma turnê europeia e… bem, é melhor deixar as muitas novidades por conta de Jorge Olazo, percussionista da banda, que conversou por Skype com o Scream & Yell dois dias antes da banda embarcar para o Velho Continente. Olazo tem muito a dizer sobre preconceito, autogestão, dificuldades de manter uma banda e, claro, música.
O que vocês esperam dessa turnê pela Europa?
É a primeira vez que tocamos lá. Já tínhamos tocado em outros países antes, tocamos várias vezes nos Estados Unidos, já tocamos no Brasil em 2012, no El Mapa de Todos… Mas na Europa, como é mais caro, nunca tínhamos ido. Vão ser uns dez shows, peraí que já te passo as datas e locais…
Pelo visto, você, além de percussionista, é também porta-voz, assessor de imprensa e responsável pela agenda da banda…
(risos) É, acabo acumulando um pouco de tudo. Aqui está: o primeiro será justamente no festival de Roskilde, na Dinamarca. Depois tem Paris, Lyon e Marselha (França), Barcelona (Espanha), Zurique (Suíça) e Estocolmo (Suécia).
Ok. Mas vamos voltar a esse “acúmulo de funções”. Imagino que isso seja por uma questão prática, de ter que cuidar desses aspectos para a banda ser viável. Mas vocês atingiram sucesso mainstream em seu país. Chegou ao ponto de viverem exclusivamente da banda?
Faz uns cinco ou seis anos que largamos nossos trabalhos e nos dedicamos somente ao grupo. De fato, aprendemos com o tempo que a demanda de trabalho de uma banda é cíclica: às vezes exige demais, outras nem tanto, há momentos de ficar isolados do mundo para poder compor e gravar e outros em que pouca coisa acontece. Por isso, estamos procurando reativar algumas de nossas atividades paralelas [à música] para não depender tanto da banda. Além disso, uma banda requer um investimento muito alto. Pagamos muito em estúdio, equipamentos, divulgação, então o que nos sobra, o que fica como rendimento individual, é muito pouco. E nenhum de nós é empresário, não temos formação administrativa. Com o tempo aprendemos a fazer nossa gestão nós mesmos. Já tivemos empresários, mas no Peru a indústria musical não é bem desenvolvida, então não havia alguém que realmente soubesse como gerir a banda de forma a fazer dinheiro sem que tivéssemos de nos envolver diretamente. Até três anos atrás nosso então gerente de turnê era também nosso empresário, mas ele decidiu parar por motivos pessoais e no fim acabamos tendo de assumir nós mesmos a gestão. Creio que todos fazemos um pouco de tudo. Sergio [Sarria], o outro percussionista, cuida das contas. Rolo [Gallardo], o guitarrista, cuida das questões técnicas de palco… Fazemos de tudo.
Acho que você já imaginou porque perguntei isso. Mesmo o Brasil sendo um mercado musica maior e mais sólido, não são muitos os artistas que conseguem viver somente de música, e muitos que tentam sucumbem ao despreparo para lidar com questões financeiras, jurídicas, fiscais, todas fundamentais para que a banda continue existindo. Eu supunha que, por vocês terem chegado ao mainstream, talvez já tivessem superado essas questões.
Mesmo tendo feito essa passagem à condição de artista massivo, temos que cuidar muito disso. Posso dizer que muitas vezes tivemos crises por esses motivos. Olhando para trás, me surpreendo e fico feliz que estejamos todos juntos. Principalmente quando nos tornamos massivos, foi muito difícil. Tivemos que nos transformar em uma empresa para dar conta de tudo, e não que seja ruim ter que virar uma empresa, mas o problema foi que viramos uma empresa grande demais. Ficou uma coisa complicada em termos de salários, de custos, até que chegou a hora em que tivemos de terminar tudo e recomeçar do zero. Dissolvemos a empresa e refizemos nossa estrutura. Esse disco novo já vem nessa nova estrutura.
Quando vai sair? Ele estava previsto para a segunda quinzena de maio…
Vai sair nesses próximos meses. O plano era que saísse pouco antes da turnê, mas conseguimos um contrato com uma gravadora – do qual não posso adiantar nada ainda porque o trâmite ainda não está concluído – e seguramos um pouco para garantir o lançamento mundial. Não queríamos lançar só no Peru agora, porque com essa nova gravadora o disco estará em vários países (nota: o Brasil não está incluído, lamentavelmente), e vamos sair para divulga-los em vários lugares, então realmente optamos por fazer o lançamento mundial.
Então vamos retomar o assunto da turnê europeia: o que ela representa para vocês? Uma estratégia comercial? Uma realização pessoal?
Buscamos muito que nos conhecessem no mercado peruano. Isso aconteceu com o disco “Cumbia”, de 2008, que marcou um antes e depois na carreira do grupo. Ali fazíamos essa coisa de recriar canções antigas e já conhecidas. As pessoas aqui [no Peru] nos pediam para continuar com isso, mas queríamos também fazer músicas próprias. Na Europa, as pessoas não têm esse preconceito de querer que o grupo faça as coisas que elas desejam. E sim, é uma conquista, porque… (pausa) Vínhamos carregando uma mochila um pouco pesada demais para carregarmos… (nova pausa) Quando saíamos para tocar no estrangeiro, principalmente nos Estados Unidos, era sempre em festivais de imigrantes. No começo, eram apenas shows para a colônia peruana. Mas então passamos a tentar fazer shows mais abertos para outros públicos. Era bom tocar para a colônia peruana, mas era como se estivéssemos fazendo shows aqui, entende? Essa tour europeia é o contrário: são só festivais e clubes, estaremos nos comunicando com pessoas de todos os tipos, e também tocando com artistas diferentes. Espero que possamos aprender com todos, público e outros músicos. Vai ser uma turnê na rédea curta, com aquele pensamento de que “se ficarmos no azul, já é sucesso”. E estamos com nossos números em azul (sorri e suspira aliviado), então estamos com uma boa expectativa de que vai ser bom e vamos entrar no circuito [europeu]. Espero que nos próximos anos possamos conseguir espaço para tocar no WOMEX (World Music Expo, mais importante mercado para a música “étnica”, isso é, “tudo que é pop não feito por anglos”, como já se definiu) e em mais festivais.
Esse dado do preconceito que você citou era algo que eu queria comentar, porque depois que vocês tocaram aqui no Brasil, ficaram relativamente bem conhecidos num circuito indie. Só que esse público daqui nem desconfia que vocês são super mainstream, de tocar em programa dominical na TV. Capaz que, ao saberem disso, deixem de gostar de vocês (risos) ou digam: “olha só, o Peru sim é que tem música comercial boa, não é como aqui” (mais risos). E sei que vocês tiveram que lidar com essa acusação de “trair” o underground aí no Peru, depois do sucesso de “Cumbia”. Acho que o ideal seria justamente entender que a música tinha que ser apreciada pela música em si, e não se ela é “vendida”, “massiva”, “underground” ou sei lá o que mais.
Fico muito feliz com isso que você me diz, feliz mesmo. E olha, faz pouco fomos convidados para tocar em São Paulo. Era na… Virada Cultural, é esse o nome? Ficamos muito felizes por termos recebido o convite, ficou claro que o país nos tem como opção, mas infelizmente a data se chocava com datas que já tínhamos aqui. No fim, foi o Sonido Gallo Negro, que é uma banda de cumbia peruana, mas que vem do México (risos). Mas queremos ir ao Brasil para continuar trabalhando [no mercado brasileiro]. O El Mapa de Todos que participamos foi o de 2012, e você sabe, o mercado musical é algo que tem que ser trabalhado com constância. E isso é o que queremos buscar quando tocamos fora, na realidade: estar integrados àquele mercado. Além disso, adoramos saber que estamos tocando em lugares onde as pessoas querem receber algo novo.
Bom, aqui no Brasil vocês realmente gozam desse carinho e admiração. O show que vocês fizeram no El Mapa de Todos de 2012 ficou na memória coletiva como um dos melhores. Estive nas edições de 2013 e 2014 e muita gente comentava do show. Inclusive houve uma banda que se formou depois do show de Porto Alegre…
(sorrindo) Sério?
Sim. La Cumbia Negra, de Porto Alegre. O guitarrista Guri Assis Brasil disse que teve a ideia de montar a banda com o Gabriel Guedes (ex-Pata de Elefante), um grande fã de cumbia, depois de ver o show de vocês. Uma coisa meio Ramones, meio Sex Pistols, de influência, sabe? (risos)
Seria incrível se você pudesse me passar a informação desse pessoal, porque quero falar com eles, quero ter esses laços. Pelo menos escutar algo deles!
Passemos ao disco novo. Vi que, em algumas entrevistas recentes, você disse que estariam abordando alguns gêneros musicais pela primeira vez, mas não entrou em detalhes. Você pode adiantar algo da paisagem musical desse álbum?
Vai se chamar “Impredecible” (“Imprevisível”). Tem uma canção com esse nome, mas o disco se chama assim porque nos arriscamos muito, até a arte do encarte e da capa reflete isso. Quando você escuta o disco na sequência, se surpreende com o quanto uma faixa é diferente da outra. Pela primeira vez tocamos um “festejo”, inclusive com um cajón, que é um elemento característico da música do Peru, mas que nunca havíamos usado. Foi uma das muitas primeiras vezes desse disco. Susana Baca (cantora e ex-ministra da Cultura do Peru) canta nessa canção, que é uma mistura de zamacueca peruana com ranchera mexicana e joropo venezuela… Ontem a tocamos ao vivo pela primeira vez e te digo que as pessoas adoraram! Um sujeito me chegou e disse que adorou a letra, e isso me alegrou também. As letras estão mais redondas que no disco anterior. “Ves lo que Queres Ver” (2012) é um disco muito político, que fala bastante das coisas da sociedade peruana de que não gostamos. Esse disco é mais introspectivo, mais pessoal, há canções de amor e desamor. “La Pantalla” é talvez a única que tem um laço com o disco anterior, com um tema social, no caso contra a TV. Outra coisa a se destacar é que há quatro canções instrumentais. Em “Ves lo que Queres Ver” foi o contrário: decidimos que todas seriam cantadas. Mas agora recuperamos um pouco da nossa própria tradição de recriar a música instrumental, que começamos em 2008 com versões, e agora fazemos isso com nossas composições, que são mais experimentais. O reggae também foi algo que voltamos a ter.
O reggae era muito importante no começo, não? Vocês começaram tocando reggae e ska…
Totalmente importante. Nosso público mais “under” sempre pedia muito para voltarmos com o reggae. Nossa intenção, quando iniciamos a banda, era fazê-lo bem fiel ao estilo jamaicano, mas depois mudamos o jeito, e virou outra coisa. O que mais temos de novidades? Bom, o papel da bateria mudou. Usamos uma programação muito básica de bumbo e hi-hat e em cima fizemos a percussão clássica da cumbia. Foi o oposto do que fazíamos, que era fazer a base percussiva primeiro e em cima dela trazer outros elementos. Temos dois bateristas, eu e Sergio, mas antes disso, somos dois percussionistas. Isso fez com que fossemos mudando as linguagens. Tem ainda uma canção que o Joaquín [Mariátegui, guitarrista] canta. Até então, só o Mauricio [Mesones] tinha cantado, o Joaquín não fazia nem os vocais de apoio. Mas ele tentou fazer um vocal algo em um tema mais doce, e decidimos que ficaria a voz dele. Ficou muito boa.
O vocal também foi outra questão que atraiu muitas críticas a vocês, não? Outra prova de que vocês tinham “se vendido”. Isso me chamou a atenção especialmente porque a única banda brasileira instrumental que gozou de certo sucesso mainstream, A Cor do Som, foi vilipendiada quando incorporou músicas cantadas por exigência da gravadora. E não demorou muito para eles se descaracterizarem e chegarem ao fim depois disso. Mas com vocês a história foi diferente. Como contornaram isso?
Quando começamos com o Mauricio, não o conhecíamos. Éramos todos amigos, e chegou esse cara que era fã do grupo. No disco “Cumbia” decidimos que tudo tinha que ser instrumental, e nas duas únicas que seriam cantadas, “Mujer Hilandera” e “Ya se Ha Muerto Mi Abuelo”, teriam que ter o cantor original de Juaneco y su Combo (Willindoro Casique Flores), mas agora ele tem 70 anos, não iria poder fazer os shows, sair em turnê. Então chamamos Mauricio, que era muito amigo de um antigo integrante da banda. E não foi fácil, te digo sinceramente, porque ele teve que se adaptar a um grupo – digo não só uma adaptação musical, mas humana mesmo. Foi lento, mas posso dizer que agora ele está completamente adaptado. Vendo em perspectiva, posso dizer que foi algo deu para fazer. Mas, olha… quando você acabou de formular a pergunta, pensei em responder: “Fizemos isso com culhões” (risos). Porque alguns aceitaram [a incorporação de um vocalista], outros não gostaram nem um pouco, mas assim é a vida. Decidimos que teríamos um vocalista, e levamos isso adiante e arcamos com as consequências. Além disso, Mauricio é percussionista, toca bongôs, güira, maracas, ele colabora muito como músico. E o publico aqui se deu muito bem com ele. Mauri sabe falar com a classe mais popular, com o povão mesmo, ele pode projetar uma energia que o resto do grupo não consegue, somos mais introspectivos. Tinha gente que preferia a nós com esse perfil mais discreto, Porém, para muita gente, aqui no Peru inclusive, ele é o Bareto (risos). Identificam-no como sendo o artista, a banda. Isso é parte do processo. Não dá para controlar o efeito do que você entrega ao público. Então temos que saber lidar e continuar em frente.
Tantas misturas musicais, nunca cogitaram se arriscar num gênero brasileiro? Temos aí “Mujer Hilandera” para provar que a relação entre a cumbia e alguns ritmos do Nordeste não é tão distante assim…
Temos no “Impredecible” uma canção que inconscientemente… (pausa) Joaquin sempre se refere a ela – “No Es para Mi” é o título – como uma “cumbia bossa nova” (risos). Não é, claro. Nem um, nem outro, nem uma mistura dos dois. Mas tem uma guitarra que tem um feeling que podia relacionar-se com a tradição brasileira. “Mujer Hilandera” é uma canção que tocamos em todos os shows. Sonhamos em fazer uma turnê aí em que possamos passar por três ou quatro cidades, ir a lugares diferentes e conhecer de verdade a música daí. Porque aqui no Peru pode até se encontrar algumas cidades que se sintam mais próximas do Brasil, culturalmente, mas não é o caso de Lima. Então teríamos que estar aí, sentir o clima, entender de onde isso vem. Realmente sonhamos com isso. O clipe de “La Pantalla” foi feito por um diretor (Percy Céspedes) que faz vídeos muito comerciais, dessas cantoras cheias de penteados e figurinos elaborados (risos). Dissemos a ele que não somos assim, mas queremos chegar a muita gente. Esperamos que isso nos ajude a tocar aí no Brasil novamente e vocês possam nos receber para transmitir as muitas coisas boas que vocês têm.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
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