De Portugal, conheça Tiago Cavaco

por Bruno Capelas

Não é todo dia que se vê um roqueiro citar os Bad Brains e as cartas de São Paulo em uma mesma canção. Mas Tiago Cavaco, um dos principais nomes do rock português da atualidade, sempre esteve um pouco à margem dos que o cercaram. Criador da FlorCaveira (www.florcaveira.com), selo independente que desde 1999 ostenta o lema “Religião e Panque Roque” e lançou artistas como B Fachada, Samuel Úria e Pontos Negros, Cavaco é um roqueiro e letrista de mão cheia. Seu último lançamento, “Sou Imortal Até Que Deus Me Diga Regressa” (2015), é uma grande prova de seu fino trato com a palavra – dom que também exerce todos os domingos ao pregar na Igreja Batista da Lapa, na zona oeste de Lisboa, no qual é pastor.

Dono de títulos provocativos como “Ainda Não É Tempo de Morrer” ou “Sugiro a Minha Sepultura para Capital da Cultura”, Cavaco explica a ligação do rock com a fé de uma maneira simples – talvez com a facilidade de quem já teve de dissertar sobre o tema muitas vezes. “A minha vida é melhor quando ouço o The Clash dizendo que não vai desistir. Com isto, não quero defender que é evidente que o rock pede fé, mas que não será assim tão forçado dizer que o rock pode pedir esperança”, diz ele em entrevista por email, depois de ter se empolgado com a recente reportagem com o pesquisador Tiago Monteiro sobre a música portuguesa.

Para se entender a carreira de Tiago Cavaco, formado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, uma das mais modernas de Portugal, é preciso passar por uma pequena aula de nomes. Desde 1999 ele faz discos com a FlorCaveira, inicialmente com o nome artístico Guillul (que significa “cavaco” em hebraico). “Ficou difícil quando a maioria passou a conhecer o Tiago Guillul sem conhecer o Tiago Cavaco, por volta de 2010, na mesma época em que minhas responsabilidades na igreja começaram a ficar mais sérias”, explica. A partir daí, Cavaco passou a assinar discos como Tiago Lacrau (solo ou ao lado dos Lacraus) ou como o Rapaz do Sul do Céu, deixando seu nome de batismo para o cidadão Cavaco.

Apesar de acreditar que o rock nunca poderia ter nascido no mediterrâneo (“o português é um sujeito sereno e pouco dado à provocação”) e que “em Portugal você se torna um poeta quando ninguém percebe o que você quer dizer”, Cavaco acredita que tudo tem salvação. “Para que aconteça alguma coisa realmente boa com a cultura portuguesa, há muitas outras que primeiro têm de ser mortas e enterradas. Minha fé acha que a salvação pede primeiro a sua morte, e só depois a sua ressurreição”.

Na entrevista a seguir, Cavaco fala sobre “Sou Imortal Até Que Deus Me Diga Regressa”, lançado com a alcunha de Tiago Lacrau, e dispara farpas para a música portuguesa de ontem e de hoje. “Só vou me interessar mais pela música portuguesa quando uma grande parte dela for destruída pelos seus próprios músicos”, diz. Considerado pela crítica como um dos responsáveis pela volta da canção lusa em português, o criador da FlorCaveira dá de ombros: “Não canto em português para louvar a cultura portuguesa. Canto em português porque sou português. É como ser filho dos meus pais – é um fato e acabou-se”. Então, vamos a isto.

Lacrau, Cavaco ou Guillul? Qual a diferença entre os três Tiagos com o qual você se apresenta ao público?
Era fácil quando apenas uma pequena minoria que conhecia o Tiago Cavaco conhecia o Tiago Guillul. Ficou difícil quando a maioria passou a conhecer o Tiago Guillul sem necessariamente conhecer o Tiago Cavaco. Em 2010, senti que a figura musical Guillul não deveria atrapalhar o cidadão Cavaco, e por isso tentei convergi-los largando o Guillul. Foi na mesma época em que as minhas responsabilidades na igreja começaram a ficar mais sérias. Por outro lado, manter nomes paralelos (como Tiago Lacrau ou Rapaz do Sul do Céu) permitia continuar a fazer discos mais subterrâneos – que já existiam antes do Guillul – ganhar mais notoriedade. A questão dos nomes ainda não está completamente resolvida dentro de mim, mas, no geral, aplico o Lacrau a discos mais rock e o Rapaz do Sul do Céu a discos mais hip-hop. E Guillul que descanse em paz (apesar de, ironicamente, as pessoas do meio musical continuarem usando o nome).

E por que este “Sou Imortal Até Que Deus Me Diga Regressa?” é assinado com Lacrau?
Porque este é um disco claramente de rock, não muito distante do que faço com os Lacraus.

O Amamos Duvall, teu último projeto, era bastante ousado, cheio de samplers e fusões com o rap. Este “Sou Imortal”, por outro lado, soa bem cru como o melhor do punk-rock. Por que esse retorno a algo mais básico?
Sou um músico de ciclos. Há fases que ando mais excitado com o hip-hop, há outras que ando mais excitado com o rock. Sendo amores que permanecem para sempre, por vezes um pesa mais que outro na hora de gravar um disco novo. O “Amamos Duvall” foi uma oportunidade única de explorar o trânsito entre maquetes gravadas em casa e a sua transformação em estúdio – nesse sentido, é um disco para experimentar coisas. O “Sou Imortal…” é um disco de canções básicas gravadas de um modo básico também, de não pensar tanto em produção, mas mais em registrar rápido.

“Sugiro a Minha Sepultura para Capital da Cultura” é talvez a minha música favorita do disco. Como ela nasceu, e por que ela tem este sentimento tão forte quanto à realidade portuguesa?
Sou um português estrangeirado. Um protestante em Portugal nunca consegue ser português de maneira normal. Os meus sentimentos perante a cultura portuguesa (independentemente dos conceitos que temos sobre ela) são bastante ambíguos: por um lado ela pertence-me, por outro não. Daí que sinta que o melhor que posso fazer pela cultura portuguesa seja enterrá-la. No fundo, tem a ver também com a minha fé cristã, de achar que a salvação de uma coisa pede sempre primeiro a sua morte, e só depois a sua ressurreição. Para que aconteça alguma coisa realmente boa com a cultura portuguesa, há muitas outras que primeiro têm de ser mortas e enterradas. Uma das coisas que me irrita em Portugal é que você se torna um poeta quando ninguém percebe o que você quer dizer. A lógica é que se ele fala difícil, é porque deve ser muito inteligente. Ser poeta em Portugal é mais um estatuto intelectual que um trabalho concreto. Não suporto isso.

Aqui no Brasil parece-nos curioso às vezes a fusão da religião com o rock proposta pela FlorCaveira – em “Ainda Não é Tempo de Morrer”, por exemplo, você cita o Bad Brains ao lado das epístolas de São Paulo, e faz menção ao Kiss na faixa-título. Como é que esta ligação funciona para você? O rock pode ser a canção da fé?
Para mim o rock tem um lado fundamental de libertação. Não de libertação política, mas de libertação individual. Mesmo quando era criança, sempre reagi ao rock porque sentia que um rocker podia fazer em palco aquilo que na vida normal não poderia fazer. E isso é fantástico. Mas, por outro lado, a partir do momento em que te libertas em palco, também te libertas nos ouvidos dos que te ouvem: elas podem ouvir aquilo que tu queres dizer (mesmo que não concordem contigo). É por isso que acho que o rock pode ser a canção da fé. Hoje as músicas que mais me continuam a comover são as músicas que afirmam esperança contra tudo e contra todos. Ainda nesta manhã, ouvia o The Clash a cantar “I’m not down, I’m not down” e continuo a ter dificuldade em explicar como é que a repetição dessas palavras em música me pode dizer tanto. A minha vida é melhor quando ouço o The Clash dizendo que não vai desistir. Com isto não quero defender que é evidente que o rock pede fé, mas que não será assim tão forçado dizer que o rock pode pedir esperança.

Ainda no tema religioso: imagino que boa parte do teu público e do público da FlorCaveira em Portugal não seja batista ou até mesmo religioso. Como vê a recepção das pessoas às suas mensagens pelo rock?
O português é um sujeito sereno e pouco dado à provocação. O rock nunca poderia nascer no mediterrâneo. A provocação é uma coisa das culturas protestantes onde a palavra realmente importa — as culturas católicas têm uma relação mais distante com a palavra e estão mais virados para a imagem. Logo, as pessoas tomam-me em grande parte como um provocador, como uma personagem estranha. Elas têm dificuldade em integrar no mesmo universo a crença na palavra (do cristianismo protestante) e o uso dessa crença na palavra como um ingrediente para fazer música.

“Prêmio Blitz”, por outro lado, mostra certa insatisfação com a crítica musical – algo que me lembra também “Senna”, dos Pontos Negros. Às vezes você acredita que o público (e especialmente a crítica) não entenda bem o seu trabalho?
A crítica musical em Portugal perpetua a serenidade católico-mediterrânica que é típica daqui. Os críticos portugueses sabem muito melhor procurar figuras que possam servir de mobília à pequena aldeia enquanto poetas do sítio do que ouvir discos e avaliá-los independentemente dos seus atributos sociológicos. A crítica descobriu a FlorCaveira e nunca soube lidar com ela porque procurou na FlorCaveira o que ela nunca foi: uma reprodução em pequena escala da mentalidade nacional. A FlorCaveira está-se nas tintas para criar novos Josés Mários Brancos ou novos Zecas Afonsos. Nós nunca fizemos música por causa deles (mesmo que eles nos possam inspirar aqui e ali). A FlorCaveira grava discos porque gosta de rock, não porque se sente na obrigação de dar mais poetas à cultura portuguesa. We couldn’t care less about that. Os críticos portugueses não percebem isto porque o credo deles é diferente do nosso. Somos de países diferentes, apesar de morarmos no mesmo. O “Prémio Blitz” é uma canção sobre o modo como tu consegues antecipar como a Revista Blitz escolhe discos preferidos, não pelo que eles valem, mas por causa do que esses discos permitem enquanto criam uma nova decoração da aldeia de sempre.

És um pastor batista em um país de católicos, assim como és um fã de punk em um país conservador e foste um religioso numa faculdade de Comunicação. À distância, me parece que sempre esteve um pouco à margem de tudo. Como se sente quanto a isto?
Talvez exista o mito do inadaptado como o herói pós-moderno. Eu não tenho paciência para heróis pós-modernos, mas é um fato que vivo nos lugares sem nunca me sentir completamente em casa neles.

“Sou Imortal…” é também um disco de participações de amigos. Como é que você se juntou a estes compositores no disco – e em especial, ao Tiago Bettencourt e ao Manuel Fúria?
Tenho duas maneiras de fazer discos quanto à presença de amigos: há discos que gravo sozinho, em recolhimento, e há aqueles que gravo chamando os amigos para qualquer coisa. O “Sou Imortal” pertence ao segundo tipo. O Tiago Bettencourt é um gajo incompreendido em Portugal e cuja maldição foi ter um hit enorme (com uma canção chamada “Carta”). Apesar de eu não ser um fã dos assuntos das canções do Tiago (ele escreve quase só sobre encontros e desencontros amorosos), acho que o Tiago é um escritor de canções – e eu também sou. Tenho vindo a ganhar admiração por ele e nos tornamos amigos nos últimos anos. A canção que ele canta comigo é uma canção de amor e achei que ele ficava bem lá. O Manuel Fúria é mais que amigo, é um companheiro – e um irmão na fé. A minha vida não seria a mesma sem o Manel e por isso estou sempre pronto para meter o Manel nos meus discos.

Qual é a percepção que tens da música brasileira? Em uma entrevista ao Scream & Yell anteriormente, falaste sobre os Novos Baianos, e no disco novo, tens uma música que versa sobre Tom Zé. Como funciona isto para ti, afinal?
Amo a música brasileira. Os primeiros brasileiros que amei musicalmente foram os Ratos de Porão. Samplei-os (com a autorização deles!) na canção “Contigo Sou Sempre Agradecido” (modéstia à parte, uma das minhas melhores canções) e tenho super orgulho disso. Depois veio o disco “Caetano e Chico Juntos e ao Vivo”, que mudou a minha maneira de perceber como a música poderia ser. E depois continuo incessantemente a ouvir e a descobrir coisas novas, mesmo quando são antigas. O Tom Zé é um dos meus heróis, seguido pelo Jorge Ben e do Tim Maia. Recentemente descobri o disco “Alucinação”, do Belchior – que maravilha! Viva o Youtube!

Em meados dos anos 2000, quando a FlorCaveira surgiu, o selo foi saudado como um dos principais responsáveis pelos músicos portugueses voltarem a cantar em português. Quase dez anos depois de tudo isto, como vê esse momento? Cantar na língua pátria é tão importante assim?
Como regra, ser português e cantar em inglês me parece algo tolo – haverá uma ou outra exceção que aprecio. Não canto em português para louvar a cultura portuguesa. Canto em português porque sou português – é a minha língua independentemente da relação que tenho com ela. É como ser filho dos meus pais – é um fato e acabou-se. A geração dos anos 80 que fez o rock cantado em português percebia isto melhor que todos os jovens que vieram a seguir. Cantar rock em português não tem a ver com seres embaixador da tua pátria, tem a ver com quereres cantar com o que tens à tua disposição. Portugal te deu a língua, os anglo-saxónicos te deram o ritmo… Pronto! A ironia é que a geração da música portuguesa dos anos 90 mandou a língua às favas, mas quis ser diplomata nacional. Tu tens cantores portugueses que cantam em inglês e que acreditam que o Estado lhes deveria dar subsídios porque estão representando a nação no estrangeiro. A FlorCaveira continua a ser a única seta que a geração dos anos 80 lançou para o futuro – todo o resto (cantando em português ou inglês) perpetua a maldição do poeta enquanto herói nacional. A geração dos cantores de intervenção dos anos 70 nesta matéria só inspirou oportunistas.

Ainda sobre a FlorCaveira: o selo foi responsável por fazer aparecer alguns dos mais interessantes artistas da música pop tuga dos últimos anos, como os Pontos Negros, o B Fachada ou o Samuel Úria, além de servir de exemplo para outras pequenas editoras fonográficas, como a Azáfama ou a Amor Fúria. Como se sente quanto a isto?
É uma coisa excelente. Por exemplo, o Samuel Úria é o artista mais completo de Portugal (porque faz canções e sabe dar show) e os Pontos Negros estão parados, mas o rock que eles fizeram continua a mexer. A Amor Fúria é uma editora irmã nossa e com quem temos trabalhado no último ano. O meu último disco é co-edição FlorCaveira e Amor Fúria e criamos o Clube do Crime Eléctrico, que são concertos mensais em Lisboa no clube de rock Sabotage. A Azáfama é a casa de amigos nossos como o Martim e os Três Por Cento e me sinto elogiado se de alguma maneira associarem o que eles fazem bem ao que nós fazemos bem.

Como vês a atualidade da canção pop portuguesa? Que nomes gostaria de indicar para o ouvinte brasileiro, hoje?
No geral a atualidade da canção pop portuguesa continua a ser uma chatice. Se houve pessoas que acharam que a FlorCaveira ia salvar a música nacional, foi só porque não perceberam que a música que fazemos não pertence a esta nação. É fácil pensar que a FlorCaveira foi uma moda que passou, mas o que passou não foi a FlorCaveira. A FlorCaveira já existia antes das pessoas darem conta da sua existência. O que passou foi o breve momento em que as pessoas deram conta da existência da FlorCaveira. E, num certo sentido, ainda bem. Com isto não quero soar ingrato: gosto do reconhecimento dos outros. Mas o negócio da FlorCaveira é fazer rock e canções que servem para a vida das pessoas fazer mais sentido quando as ouvem. O negócio da música pop portuguesa é, a pretexto das canções, fazer com que a música pop portuguesa faça sentido. Só me vou interessar mais pela música portuguesa quando uma grande parte dela for destruída pelos seus próprios músicos. Para isso, verifiquem o Bruno Morgado, o Filipe da Graça, o Deserto Branco, o Éme, o Cão da Morte, os HMB, os Chibazqui, e todos aqueles que, para fazerem algo novo, destroem alguma coisa.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e assina o blog Pergunte ao Pop.

Leia também:
– Ouça: 15 canções do pop português (de Sergio Godinho a Legendary Tigerman) (aqui)
– Tiago Monteiro fala sobre seu livro que mapeia a nova cena portuguesa (aqui)
– Download: “Projeto Visto 2? une artistas portugueses e brasileiros em EP gratuito (aqui)
– Os Lacraus: “Porque não uma música de rock abordar a questão da esperança?” (aqui)
– TV Rural: “Sentimos que ‘Sujo’ é o nosso disco mais homogéneo, coeso” (aqui)
– Três discos de 2015: Capitães da Areia, Capícua e Diabo na Cruz  (aqui)
– Legendary Tigerman: “O rock e a dança devem ser momentos de libertação” (aqui)
– Capicua: “Gostaria que o meu trabalho ajudasse a divulgar o hip-hop e o rap” (aqui)
– Rita Braga: “O propósito era fazer um disco em São Paulo” (aqui)
– Emé: “A música não é uma questão de língua, mas sim de linguagem” (aqui)

One thought on “De Portugal, conheça Tiago Cavaco

  1. Rapaz, que disco legal, estranhei a linguagem dele no começo, mas depois foi o que menos importou. Discaço!

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