Texto e vídeos por Marcelo Costa
Fotos por Liliane Callegari
Na zona sul de São Paulo, o pomposo Credicard Hall recebia o 3 Doors Down. Na degradada Barra Funda, a lenda punk Damned prometia rodas de pogo no Clash Club. No Baixo Augusta, corruptela cool que designa uma das áreas mais agitadas / emblemáticas da cidade, Carl Barât, um ex-Libertines, prometia um flashback de alguns dos melhores momentos do rock britânico no Beco 203. E na Liberdade, o charmoso Cine Jóia abria as portas para o novato Kurt Vile & The Violators e o mítico guitarrista do Sonic Youth, Thurston Moore, em mais uma festa Inker 10 Anos. Uma noite, cinco shows. Haja pique… e dinheiro.
A bonanza econômica pela qual passa a Ilha de Vera Cruz (e que nós, brasileiros, assombrados por longos anos de inflação exorbitante, cortes de zero, congelamentos de preços e mudanças constantes de moeda, ainda olhamos com certa desconfiança e incredulidade) atingiu em cheio no peito o roteiro de shows na capital da cidade mais populosa do país, e São Paulo começa a vislumbrar um cenário em que não só é preciso escolher com atenção qual show ir devido ao fator financeiro, mas também no quesito horário: se é impossível estar em dois lugares ao mesmo tempo, imagine quatro! Tortura pouca é bobagem.
O lado ruim dessa situação é que, de vez em quando, será uma escolha muito difícil de fazer (Noel Gallagher ou Duran Duran no dia 02 de maio?), porém há mais fatores positivos que negativos nessa concorrência entre casas noturnas (e artistas). Por exemplo: nenhum dos quatro shows da quinta-feira esteve sold out, mas todos tiveram um bom público (o Credicard Hall – mais vazio – leva desvantagem, afinal, mais fácil encher locais menores), que não precisou se espremer como fazia na Idade Média dos shows internacionais no País, quando shows, raros, eram povoados por todas as tribos (que muitas vezes batia ponto no show mais pela “balada” do que pelo artista).
Os ingressos, por sua vez, começam a ficar pagáveis, claro, tendo como ponto de análise o preço da meia-entrada, valor real do show em 90% dos casos, o que permite uma campanha para que os produtores de São Paulo sigam o exemplo do Circo Voador, no Rio de Janeiro, em que todos pagam meia, seja apresentando um simples flyer, seja levando um quilo de alimento não perecível. As pessoas querem ver shows, mas querem pagar honestamente por isso. Os ingressos ainda estão altos (media de R$ 80 – a meia – em São Paulo contra R$ 50 em Nova York e Londres, exceções a parte), mas já estão mais pagáveis…
Quanto a shows e escolhas… no Cine Jóia, Kurt Vile, acompanhado pelos Violators, subiu ao palco pontualmente às 22h (após Guizado fazer um esquenta estiloso) para provar que todo hype tem seu q de exagero. Alternando-se entre violão e guitarra (numa formação de banda que, eventualmente, trazia três instrumentos barulhentos de seis cordas), Kurt Vile fez um pequeno resumo de sua curta carreira num show pouco original que emulou dezenas (ou centenas) de ícones indies, do Sonic Youth (o principal) a Guided By Voices, Pavement e Luna (a lista segue chegando a medalhões como Neil Young e Bruce Springsteen). Muita devoção de um cara que ainda pode crescer muito e está em fase de experimentação.
Com sua timidez afundada debaixo de uma enorme cabeleira, e tocando com o olhar fixo em seu tênis (sem em nenhum momento soar shoegazer), Kurt Vile fez um show carente de personalidade, mas ainda assim com momentos interessantes (e versões mais psicodélicas e viajantes de “Jesus Fever”, “Peeping Tomboy”, “Runner Ups” e “On Tour”) que cumpriram com brio a função de esquenta para a atração principal da festa (alguns apostavam – baseados em notas de revistas gringas especializadas em hypes – que ele iria roubar a noite de Thurston Moore. Perderam), que baixava em São Paulo com a turnê de seu último disco – de pegada acústica.
Quem esperava um show acústico do guitarrista do Sonic Youth, foi surpreendido já na primeira música, “Orchard Street”, com Thurston dando a tônica da noite já nos primeiros segundos: ao invés de violão, ele optou por tocar a canção com uma guitarra, que já nos primeiros acordes trouxe lembranças de algumas canções perdidas de sua ex-banda (só de bater nas cordas, o guitarrista faz o ouvinte velejar por toda uma sonoridade conhecida) e, no final, com uma ensurdecedora microfonia, antecipou uma noite barulhenta – e antológica. “Never Day”, a segunda, veio limpa e linda, enquanto “In Silver Rain With a Paper Key” mostrou que é possível fazer muito barulho e microfonia apenas com dois violões.
O repertório visitou os três álbuns solo de Thurston (de “Psychic Hearts”, o debute solo de 1995 passando por “Trees Outside the Academy”, de 2007, até o elogiado “Demolished Thoughts”, de 2011), dividindo-se principalmente entre a estreia e o mais novo, mas abrindo espaço para uma canção ainda inédita (a insana “Groovie & Linda”) e para um festejado cover de “It’s Only Rock ‘n’ Roll (But I Like It)”, do Rolling Stones. Na parte final, após doses maciças de microfonia zumbindo no ar, Thurston provocou a audiência: “Vocês estão sentindo o gosto do inferno?”. Por mais antagônico que possa parecer, ele e alguns presentes estavam no paraíso em um dos grandes shows do ano no Brasil.
Quem saiu no meio do bis do show de Thurston Moore, na Liberdade, ainda conseguiu chegar em tempo de ver Carl Barât, no Baixo Augusta, mandar alguns flashs do fundo do poço rock and roll, um local temido e que, ao mesmo tempo, carrega certo charme. Ex-metade pensante de uma das bandas mais bacanas das ilhas britânicas dos últimos 10 anos, o Libertines, Carl até tentou montar um novo grupo (com os ex-integrantes do Libertines, exceto, claro, Pete Doherty), o Dirty Pretty Things, responsável por um belo debute e, na sequencia, por um disquinho chinfrim (que causou o fim da banda). Lançou depois um disco solo que pouca gente ouviu (“Carl Barât”, 2010) e se transformou num homeless roqueiro.
Em São Paulo, acompanhado ora por seu violão, ora pelo Black Drawing Chalks, Carl Barât fez uma digna apresentação de fim da carreira: a voz esta lá, a batida característica do violão e da guitarra também, mas a banda (visivelmente sem ensaio) atravessou a melodia de hits como “Can’t Stand Me Now” e “Don’t Look Back Into The Sun” (assista acima) enquanto Carl praticava um karaokê indie: o público, predominantemente jovem, não queria saber, e cantava, aplaudia e saqueava o palco (teve fã que ainda subiu pra tocar “Boys In The Band” com Carl, que não lembrava a letra) num autentico e dançante velório rock and roll. Divertido e ao mesmo tempo vergonhoso… como o próprio rock.
De bônus, no sábado (com repeteco no domingo), enquanto Mark Lanegan mostrava suas novas canções no Cine Jóia, e Sebastian Bach levava “metaleiros” ao Carioca Club, Ian McCulloch exibia seu passaporte de cidadão rockstar brasileiro (apesar do sotaque inglês ininteligível e hilário entre as canções) em uma apresentação tocante e delicada no Sesc Pinheiros, pontuada por clássicos do Echo and The Bunnymen, números bonitos de sua carreira solo (principalmente de seu primeiro álbum, “Candleland”, de 1989), uma boa faixa totalmente inédita (tocada pela primeira vez ao vivo), de seu vindouro quarto álbum solo, “Pro Patria Mori”, e um pungente cover de “I’m Waiting For The Man”, do Velvet Underground, já no bis. Além, claro, de citações a caipirinha.
Acompanhado de mais um violão, teclado e um quarteto de cordas (com uma mesa munida de um arsenal de bebidas coloridas e intensa tietagem feminina), Ian McCulloch comandou um show de rara beleza, que (assim como o de Carl Barât) exibiu certa falta de ensaio, mas encantou em números como “Candleland” – faixa título do primeiro álbum solo de Ian, de 1989, em uma versão tão bonita que a voz de Elizabeth Fraser, do Cocteau Twins, presente na versão original, não fez falta – “Rescue”, “Bringing On The Dancing Horses”, “Proud To Fall”, “Rust”, “Start Again”, “Lips Like Sugar”, “Nothing Lasts Forever” e, claro, a mais ovacionada da noite (apresentada como “a melhor canção já escrita”), “The Killing Moon”.
O show de domingo, inferior, foi marcado pelo inusitado. A voz castigada de McCulloch já não aguenta duas noites seguidas de esforço, e o vocalista passou a fazer longas pausas ora para pedir para o público tossir junto com ele (chegando a reger o “musical”), ora para mastigar uma pastilha (“Excelente para a voz”, segundo ele), ora para falar sobre Neymar, ora para improvisar sozinho ao violão canções como “The Game” e “The Disease”. Ainda assim, “Rescue”, “Dancing Horses” e “The Killing Moon” (mais encantadora que na noite anterior, com o público acompanhando) foram momentos de puro lirismo pop. Para o bis, Ian sacou “Walk On The Wild Side”, de Lou Reed (com citação de “In The Midnight Hour”, de Wilson Picket), e com boa parte do teatro na beira do palco, fechou a noite com “Lips Like Sugar”.
Não se pode mais reclamar de falta de shows em São Paulo (já da falta de dinheiro)…
- Marcelo Costa (siga @screamyell) é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne. Todas as fotos por Liliane Callegari (veja mais aqui) com exceção das fotos de Carl Barât, por Marcelo Costa.
Leia também:
– Entrevista: “Rock and Roll, Drogas e Sexo, nessa ordem”, Ian McCulloch (aqui)
– Entrevista: “Tenho uma página cheia de ideias de títulos anotadas”, Kurt Vile (aqui)
– Libertines ao vivo no Tim Festival 2004: o nome do cara é Carl Barât (aqui)
– “Demolished Thoughts”, Thurston Moore parece mais interessado em sossego (aqui)
Só um comentário, seja pro bem, seja pro mal, essa de “todos pagam meia” levando flyer ou alimento não existe juridicamente. O estudante paga meia sobre o valor efetivamente cobrado. Ou seja, ele pagaria meia entrada do valor “todos pagam meia”. Sobre shows nunca vi jurisprudência a respeito, mas já vi varias de cinemas do interior que tentavam essa manobra, mas não colava, já que evidente a intenção de dar um pelé no beneficio do estudante.
Roberto, isso é muito bonito juridicamente no papel, mas não funcionou no Brasil. O que está acontecendo agora é que estudantes estão pagando o preço da inteira e todo o resto (que não fez carteiriinha falsa) pagando o dobro. O problema é bem grande, e duvido que melhorasse se tivéssemos uma política de fiscalização de carteirinhas decente. No fundo é lei de mercado: o cara tem um show para oferecer, e cobra quanto ele quiser. Infelizmente paga quem pode. Se uma lei surgir colocando ordem na criação de carteirinhas, duvido que o preço dos ingressos irá diminuir. Então se o preço do ingresso cheio é irreal (e muitos são obrigados a pagar por não serem coniventes com carteirinhas falsas), está na hora dos próprios produtores tomaram uma iniciativa (como é o caso do pessoal do Circo Voador).
Eu adoraria que todo mundo fizesse igual o Circo Voador. Pode ser melhor para o produtor do evento, para os consumidores e principalmente pra mim e minha namorada, que iriamos em show de graça o ano inteiro. Veja só, sou advogado e ainda estudante pois faço pós. Eu pegaria um flyer do evento. Tiraria uma cópia da minha carteira de estudante. Gravava com o celular eu tentando comprar a meia e sendo informado de que a meia era pra todo mundo e eu não poderia pagar a metade disso. Faria uma petição de 1 página no JEC pedindo a repetição do indébito. Ex: Se o ingresso é 200. A meia pra todo mundo é 100, a meia pra estudante deveria ser 50. Qualquer valor cobrado acima de 50 é indevido e valor cobrado indevidamente deve ser devolvido em dobro, ou seja, os 100 que eu pagarei no caixa será devolvido no processo. Adicionado de eventuais dano morais. Mas mesmo assim pode valer a pena para o produtor, pois menos de 1% das pessoas vão se dar ao trabalho de fazer isso. É o mesmo cálculo que os planos de saúde fazem quando negam atendimento.
Ou seja: por essa ótica advocatícia, se eu sou produtor de um show, eu não posso fazer uma promoção para que todo mundo (não só estudantes) pague metade do preço. Dai o problema deixa de ser da produção (que estaria tentando consertar – ainda que de forma torta – algo que ajudou a quebrar) para ser problema jurídico, o de enxergar a lei da maneira que quiser (trabalhei seis anos em um biblioteca de Direito, essa discussão é recorrente mesmo entre os professores), e prejudicar o todo por um. Uma linha de pensamento americanizada, de um país que não se preocupa com o individuo, pois acredita que todos são iguais e tem a mesma oportunidade de sucesso (o que é bonito no papel, mas sabemos – espero – que somos todos muito diferentes).
No fundo, a lei precisa ser revista. Em boa parte da Europa, estudantes só tem desconto até os 25 anos, 11 meses e 30 dias. A partir dessa idade, eles entendem que a pessoa possa ter renda para pagar seu entretenimento. Só que tudo isso parte de um pressuposto de honestidade: eles acreditam que a pessoa não irá falsificar uma carteirinha, e que o direito ao desconto é muito mais um apoiador na construção da personalidade do individuo. Aqui seguimos o pensamento norte-americano do máximo lucro. O produtor não está oferecendo um produto cultural, mas um objeto de comércio. Da mesma forma, seu pensamento segue a mesma ótica norte-americana (penso antes em mim, depois no coletivo).
Não estou aqui discutindo o certo ou o errado. São coisas óbvias: há uma lei restritiva (estudantes tem desconto) que pelo jeitinho brasileiro (falsificação de carteirinha) foi deturpada. A consequencia: os shows ficaram mais caros, pq os produtores não tem como lidar com um show 50% mais barato para grande parte dos pagantes. Esse é o cenário. Fiz uma sugestão de ajuste para que as coisas voltem a ser como antes da lei (todos pagando a mesma coisa), mas, segundo você, a lei brasileira (ou sua interpretação dela) impede isso: ela quer que as pessoas continuem pagando mais. Ou seja, melhor desistir.
Sem entrar no mérito se a lei ta certa ou não, se existe um grupo na sociedade que acha que esta lei deve ser revista, este problema deve ser levado aos deputados em que eles votaram nas eleições passadas, e convece-los de propor a devida mudança legislativa. Não se deve aplicar jeitinhos, essa é uma “mania” brasileira que tem que acabar. Se não conseguem convencer os deputados, os produtores podem tentar fazer um projeto de lei de iniciativa popular solicitando o fim da meia entrada. Ou seja, existem meios institucionais para que se busque esta mudança legislativa.
Falando em jeitinho brasileiro, um tempo atrás eu quis ir num show numa casa de shows em SP e eles não vendiam meia entrada. Questionei por e-mail e eles alegaram que estavam registrados como “bar dançante” (ou algo do tipo) e por isso não se sujeitariam à lei da meia entrada. Na mesma hora fiz uma denuncia pelo site do Ministério Público e encaminhei o e-mail para eles. Uns 4 meses depois o lugar fechou. Não sei se a denuncia teve algo a ver com isso. Era o lugar onde hoje é o Beco na Augusta.
mesmo com as ‘falhas’ de ontem, achei o show do ian lindo! a simpatia do cara é imbatível e o setlist foi excelente [apesar que uma versão de ocean rain seria incrível naquele formato, não acha?]
para mim uma das máximas da noite foi quando ele disse que se todos entendessem o que ele estava falando veriam que ele é mais engraçado ainda.
Não vejo sentido algum na lei da meia entrada em shows internacionais. Acho válido para cinemas, shows de bandas nacionais ou para shows mais “baratos”. É fato e o Marcelo frisou também que esta lei encarece o espetáculo.
O estudante pagar meia entrada no cinema ou 10 reais a menos num show nacional que custa 20 eu acho válido mas, num show que custa 250 reais para o resto das pessoas o estudante pagar 125 acho que ficou meio deturpada coisa. Se tem 125 para pagar obviamente tem 250 também.
Aqui no RS não existe a lei, nunca vi isto funcionar em shows pelo menos. Nos cinemas até funciona.
Ahh, e sobre os shows, achei fraquissimo o show do Thurston e mesmo assim o Kurt Ville roubar o show dele é a maior piada da estória. Chega a ser medonho de tão chato o show do cara. O ingresso nem foi tão caro portanto meu arrependimento não foi tão grande mas mesmo assim foi decepcionante, fiquei lembrando do Primal Scream ano passado a diferença que foi, de lavar a alma.
O show do Ian foi bem bonito no sábado. Momentos emocionantes principalmente em Fools like us, Rust e as novas canções. Arrepiantes. Já no Domingo, apesar de repetir alguns bons momentos, achei que pareceu mais um bom acústico num boteco. E ele estava muito falastrão…hehe
Tem mais fotos, Mac?
Samuel, as fotos que a Liliane fez: http://www.flickr.com/photos/lilianecallegari/sets/72157629454438300/
Marjorie, concordo com você. O show lindo, apesar das falhas.