Sob o CEL: Sobre Discos Estranhos

Sob O CEL #6
por Carlos Eduardo Lima

Vocês já ouviram “Lulu”, disco de Lou Reed e Metallica? Imagino que a maioria deve ter achado uma grande m…, já devem ter, inclusive, deletado a pasta com os arquivos MP3 dos respectivos computadores, certo? Afinal de contas, qual o sentido em ouvir um senhor de setenta anos falando de vísceras, morte, violência, secundado por um quarteto de sujeitos de meia idade, posando de mauzões, descascando riffs no piloto automático? Pois bem, eu achei “Lulu” muito interessante, cheio de fios condutores, inquietação genuína, prenhe de desejo em sair de uma zona de conforto mortal, que pode acabar com a pouca arte que ainda existe na música pop.

Mesmo que você tenha achado “Lulu” horroroso, há uma tradição de valorização desses discos estranhos ao longo dos tempos. O que parecia estranho ontem, pode ser cult, genial hoje. Isso é um mecanismo normal de evolução do pensamento ou do que os historiadores preconizam, de que não é possível analisar algo quando está inserido em seu próprio tempo. “Isso é função dos jornalistas”, eles costumam dizer. Sendo assim, me vejo numa sinuca, com o cérebro oscilando entre os modos “ontem” e “hoje”. Só que “Lulu” e tudo o que vem em forma de inspiração dele, vem de ontem.

Lou Reed achou interessante criar músicas para uma peça alemã do início do século e, sabe-se lá, achou que o Metallica seria ideal para sonorizar suas letras barra pesada sobre uma bailarina que é vítima de violências mil. James Hetfield e seus cupinchas acharam tudo muito bom, tudo muito bem, e embarcaram nessa galera. Até porque, se pensarmos bem, o Metallica não faz nada interessante desde o álbum preto, de 1991. Qualquer disco de inéditas da banda gravado em cerca de vinte anos fica sem graça se comparado com esse mamute de sucessos, que trazia “Enter Sandman”, “Nothing Else Matters” e cia. Podemos chamar “Lulu” de disco estranho. São dez músicas num álbum duplo, a maioria varando os oito minutos, nas quais Lou murmura a letra e o Metallica toca riffs e climas, de forma praticamente desconexa. Parece uma experiência de mixar a voz e o instrumental de canções distintas. Deu certo, ao menos pra mim.

Em 1999, Iggy Pop lançou “Avenue B”. Ninguém teve paciência para ouvir as declamações de um, dois minutos do Iguana sobre sua vida, seu passado, suas memórias, afinal de contas, este era um disco reflexivo, quase autobiográfico, algo extremamente raro na carreira de Iggy. Mais: trazia o trio de indie-jazz Medeski, Martin & Wood como banda de acompanhamento e a produção plática de Don Was. O resultado foi detonado nos quatro cantos do mundo. Outro dia reouvi o disco e ele desceu muito redondo. Parece que a gente vai ficando mais velho e vai entendendo essas crises de autobiografia, da vontade de falar de nós mesmos, das lembranças, daquelas coisas que nos definem. No meio de “Avenue B” há uma cover incendiária de “Shakin’ All Over”, de Johnny Kidd And the Pirates, que parece como se Iggy quisesse dizer aos impacientes algo como: “Olhem, eu estou aqui, me deixem refletir um pouco, mas ainda sou eu, daqui a pouco eu volto”.

Em 1994 os Paralamas do Sucesso também se viram às voltas com um disco estranho. “Severino” veio à luz do dia puxado pela faixa “Cagaço”, com o verso “Tenho cagaço de descer ladeira abaixo, tenho cagaço de pensar demais” e talvez seja o maior fracasso de vendas da carreira da banda (segundo dados não oficiais vendeu 55 mil cópias em 1994 enquanto o álbum “Hoje”, de 2005, mesmo em tempos de MP3 alcançou 80 mil). Se ouvirmos as canções de “Severino”, será muito difícil imaginar que esses são os mesmos caras que fizeram “O Passo de Lui” dez anos antes. A influência é tropicalista, as referências são múltiplas, desde arte moderna de Arthur Bispo do Rosário e literatura, passando pelas reflexões do centenário de descobrimento da América, numa homenagem pungente ao Portugal da União Européia em “Navegar Impreciso”, com vocais de Tom Zé e Linton Kwesi Johnson. Mais que olhar para o mundo, sintoma visível nos convidados e na produção de Phil Manzanera, guitarrista do Roxy Music, Herbert, Bi e Barone vão além e olham para Brasil e América Latina, respectivamente em “Vamo Batê Lata” e “Dos Margaritas”. O argentino Fito Paez também dá as caras na versão hispânica de “Quase Um Segundo” e Brian May sola em “El Vampiro Bajo El Sol”. Pense: quando alguma banda de rock nacional fez algo minimamente parecido em termos de esforço de expressão?

Lulu Santos era um hitmaker. Na verdade, Lulu Santos ainda mostrou-se hitmaker depois de “Popsambalanço e Outras Levadas”, de 1988. Num tempo em que não era cool e moderno citar as levadas grooveadas de Jorge Ben, Lulu resolveu fazer um disco inteiro num clima de tangenciava alguns preceitos tropicalistas e nacionais, mas não o “nacional” do rock que se fazia aqui na época, mas uma olhada para o samba e alguns ritmos nativos de outros tempos. Ninguém gostou do resultado, apesar de “Brumário” tocar nas rádios na época. As pessoas também não estavam sintonizadas no que Lulu queria dizer com o disco, talvez apenas se divertir tocando guitarra de uma forma diferente do que vinha fazendo há tempos. O fato é que “Popsambalanço e Outras Levadas” era um “disco voador” num 1988 em que o rock nacional começava a enxergar que era preciso mudar algo se quisesse manter-se na ordem do dia. Era estranho ouvir aquelas levadas de guitarra, mas deve ter custado pelo menos um puxão de orelha da gravadora.

Esse detalhe que é grande demais, o de ter necessidade de expressar-se, é que está faltando à música pop hoje em dia. Se pensarmos que os exemplos dados aqui – e há muitos mais, de Ed Motta em “Um Contrato Com Deus” (1990), David Bowie com “Low” (1977), Caetano Veloso com “Araçá Azul” (1972), Beach Boys com “Pet Sounds” (1966) a R.E.M. com “Monster” (1994) – são obras que demonstram a necessidade humana de expressão além do formato preestabelecido. Nada de canções assobiáveis, nada de refrãos fáceis em composições de três minutos, a temática será difícil, complicada, antipop, longe da zona de conforto, fora dos parâmetros. O povo fica em frenesi hoje pela simples aparição de Chico Buarque e Marisa Monte lançando discos medianos, imagine se alguém resolve cutucar a mesmice? Por isso que disse outro dia que o rock nacional precisava de um “Titanomaquia”, algo que demonstre que há gente viva por aí, com disposição para ir contra algo limitador. Acredite, todos os artistas mencionados aqui correm ou correram riscos com esses discos estranhos e isso é muito bom. Arte, como já dizia o cineasta Glauber Rocha, não é só talento, é coragem.

CEL é Carlos Eduardo Lima, historiador, jornalista e fã de música. Conhece Marcelo Costa por carta desde o fim dos anos 90, quando o Scream & Yell era um fanzine escrito por ele e amigos, lá em sua natal Taubaté. Já escreveu no S&Y por um bom tempo, em idas e vindas. Hoje tem certeza de que o mundo como o conhecíamos acabou lá por volta de 1994/95 mas não está conformado com isso.

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24 thoughts on “Sob o CEL: Sobre Discos Estranhos

  1. confesso q achei Lulu uma M…., mas concordo com o texto. Tem coisas q os artistas precisam fazer e que só terão a correta avaliação anos depois.

    Eu, por exemplo, adoro Araça azul…p mim a melhor coisa q caetano fez, mas eu não conheci na época. Ou seja, só avaliei muitos anos depois quando descobri o disco por acaso num sebo (LP mesmo kkkkkk).

    E, claro, os artistas não estão ai para nos agradar, mas para fazer a arte deles, né?

  2. gosto dos dois artistas, ainda não escutei o disco nem ao menos uma faixa dele, mas tenho acompanhado toda a polemica em vários sites especializados e as opiniões estão bastante divididas uns amando outros odiando o mais legal disso tudo e ler em sites específicos de metal os caras terem de apresentar e explicar a importância do Lou Reed, coisa que muitos metaleiros simplesmente ignoram e desconhecem.

  3. Por acaso, só fui ouvir o “Lulu” todo esta semana. Não sei se foi por ter lido tantos comentários negativos a respeito do álbum, mas acabei me surpreendendo positivamente. Claro que não é nenhuma obra prima, mas está longe do desastre que muitos vem falando.

  4. É isso aí, Cel! Adorei o texto e a frase do Glauber – não a conhecia.
    Acho o Severino um discaço. Já o Araça Azul – excetuando a ótima versão de Eu Quero Essa Mulher Assim Mesmo do Monsueto – eu acho uma merda.
    Mas, enfim, isso pouco importa dentro da questão levantada.
    Vc já ouviu o novo do Lenine? Não chega a ser um disco pra entrar nesse hall aí, mas o cara se mexeu, tirou a bunda do sofá.
    E o novo do Mundo Livre S/A tá bem instigado também, embora isso não seja novidade pra eles.
    A banda voltou a boa forma. Ouça!

    Abraço

  5. Parabéns pelo texto, CEL. Muito bom.

    Achei Lulu interessante, com ótimos momentos, mas é um disco que precisa ser apreciado, ou seja: é daqueles que pedem exclusividade. Precisamos parar tudo o que estamos fazendo, botar pra rodar, pegar o encarte e acompanhar cada verso. Coisa rara de se fazer hoje em dia.

    Talvez o aparente “fracasso” de Lulu esteja aí: exige demais de quem não está disposto. Não que o disco seja uma obra-prima, mas só é possível absorvê-lo – e aí sim julgá-lo – após mergulharmos no conceito apresentado. Que o tempo faça seu trabalho.

    Abraço

  6. Texto inteligente, interessante, bom de ler. É certo que o tempo muda a nossa visão sobre a arte. Mas é certo também que coexistem diversas visões sobre ela.
    Na música, usando os exemplos citados, gosto de quase toda a obra do Caetano Veloso, mas Araça Azul, que ouvi com boa vontade nascida de uma referência do artista a Revolver, do Walter Franco, disco que adoro, e que o teria instigado a experimentar, sinceramente nunca me desceu. Tentei curtir, vou tentar de novo, mas acho chato demais. rss
    Já o Severino foi um caso de album bateu em mim na primeira vez que ouvi, gostei demais, e me surpreendi já que tinha muita gente falando mal.
    Essas diferenças na apreciação, independente de em uma época ser um ou uma multidão gostando, é que acredito ser estimulante na criação da arte. E para quem aprecia, as chances de encontrar favoritos para a vida toda crescem.
    Outro disco que me lembrei agora, que tinha lido falando do péssimo resultado da colaboração entre Leonard Cohen e Phil Spector, e que acabei ganhando de presente, me surpreendeu como um dos discos que mais gosto de ouvir do LC.

  7. Muito bom o texto e concordo totalmente como Guilherme Guedes acima.
    Para tentar gostar do album LULU é necessario tempo e um pouco de dedicacao.

    Hoje em dia com internet, musica digital, nenhum disco conceitual, ou diferente que necessita tempo, acompanhar a letra, pesquisar , ir atraz, vai vingar.
    Apesar das pessoas tendo tudo isso facil, bastando dar umas clicadas,e pesquisadas no Google.

    Radiohead / King of Limbs outro disco estranho, duvido que existam muitas pessoas que se dedicaram a ouvir as faixas com carinho. King of Limbs esta esquecido no meu HD. 🙂 Daqui ha uns 3 meses quem sabe volto a ouvir. Estou sem tempo para ele, albuniho dificil esse. haha 🙂

    Ouvi Lulu de cabo a rabo e tambem nao achei tao horroroso assim. 🙂

    abracos

  8. gosto muito desse disco dos Paralamas….e numa época que ninguem falava de Bispo do Rosário e ter integrante do Queen e Roxy Music e Tom Ze no mesmo disco…é muito bom.
    um dos meu preferidos.

  9. Eu também gosto muito do Severino. Na época foi considerado como um disco difícil mas eu curti logo de cara. “Navegar Impreciso” tem uma das melhores letras do Herbert.

  10. Texto muito bom. Estou entre os poucos que gostou bastante do Lulu. Ouvi Metallica quando era pré-adolescente e depois ouvi os discos geralmente uma ou duas vezes quando lançavam, para depois deixar de lado. Já do Lou Reed gosto muito. Não esperava muito da parceria e acabei gostando. Sinceramente, não entendo toda essa gritaria, mas respeito. Gosto muito quando artistas chutam o balde. Lembro quando o Radiohead lançou o Kid A. Adorei o disco logo na primeira audição. E o disco foi malhado por um monte de gente, chamaram de suicídio artístico. Curiosamente, é um dos primeiros colocados em quase todas as listas dos melhores da primeira década desse século. Muitos consideram que o Pearl Jam jamais será capaz de fazer um novo Ten, e que tudo que fizeram depois, não é muito bom. Pois eu comecei a gostar da banda a partir do No Code, que para mim, é o melhor da banda ao lado do Yield. E para muitos esses são os discos fracos deles.

  11. Lendo esse post, lembrei de uma banda que acho bem injustiçada (todo mundo conhece as baladinhas deles, e só as baladinhas): Pato Fu. De albuns fenomenais (ou talvez estranhos) e reconhecimento internacional (e esquecimento nacional).

  12. Descobri teus textos há pouco tempo e já passei a gostar e fui ler todos, muito bom a maneira com que você fala da música e os temas, sempre pertinentes, que escolhe 🙂

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