A 30 anos de seu lançamento, “Circo Beat” é Fito Páez em sua melhor (e mais ambiciosa) forma

texto de Davi Caro

Não existe outro artista como Fito Paez. Longe de ser considerado um popstar no Brasil – ainda que sempre disposto a demonstrar sua paixão pelo país e sua música, fato cristalizado em suas várias incursões por aqui – o fato é que a popularidade do cantor e compositor argentino em terra brasilis está longe de torná-lo um artista “popular” nos mesmos moldes de seus contemporâneos brasileiros, dentre os quais muitos o listam como amigo e colaborador.

Ainda assim, vale o esforço de tentar enxergar a trajetória da carreira de Fito como um de seus próprios conterrâneos: poucos artistas, quem dirá relacionados ao rock, foram capazes de angariar tanta boa vontade tanto por parte do público quanto da crítica ao longo dos anos. Facilmente colocado em ponto de igualdade entre seus antecessores (como os amigos e mentores Charly García e Luis Alberto Spinetta), seus co-geracionais (tal como Gustavo Cerati e Andrés Calamaro) ou seus influenciados (colaborações com Santiago Motorizado e Nathy Peluso vêm a mente, por exemplo).

Com um ritmo consistente de lançamentos que cruzou as últimas quatro décadas, Paez agora prepara o lançamento de seu próximo disco, “Novela” (baseado em uma cultuada demo nunca lançada que data de 1988-89), para os próximos meses, e ao mesmo tempo em que contempla o 40º aniversário de seu debut, “Del 63”, também se vê às voltas com os 30 anos daquele que é um de seus mais notáveis, populares e complexos lançamentos. Lançado em 1994, “Circo Beat” é o retrato de um jovem e talentoso artista que trabalha para conciliar as infinitas possibilidades concretizadas pelo sucesso comercial e as pressões para dar continuidade a um divisor de águas nas histórias do rock e da indústria fonográfica de seu país natal.

O álbum “El Amor Despues Del Amor”, de 1992 (o tal “divisor de águas”), vai bem além de ser meramente um disco bem produzido: tendo ganhado carta branca das mãos do lendário André Midani, então recém-instaurado presidente da WEA Latina, Fito criou, com cuidado e esmero, o disco que funcionava como uma culminação de sua geração, com um repertório que alcançaria o status de icônico e que elevaria o disco à posição de álbum de rock mais vendido da Argentina. Naturalmente, o desempenho do lançamento, assim como a vitoriosa turnê de divulgação, cobrariam seu preço muito em breve. Pouquíssimo tempo, afinal, separaria o fim da turnê “La Rueda Magica”, em 1993, dos preparativos para seu próximo disco, que carregava níveis de investimento ainda maiores do que o anterior. Mantendo o nível de grandiloquência e primor, o sucessor do multiplatinado disco se utilizaria de todos os artifícios disponíveis: ao passo que “El Amor Despues Del Amor” teve sua produção feita a quatro mãos (dividida entre Paez e Carlos Narea), “Circo Beat” seria trabalhado pelo célebre Phil Manzanera, ex-guitarrista do Roxy Music. E, se as gravações do primeiro cruzaram o Atlântico rumo à Espanha e Londres, desta vez elas também se estenderiam à Itália – além, claro, da capital argentina de Buenos Aires.

O espírito do disco, se não soa tão unificado quanto o de seu antecessor, é indicativo do nível de ambição almejado por seu protagonista: Fito fez questão de reter alguns de seus principais e mais longevos colaboradores até então (como os músicos Guillermo Vadalá e Tweety Gonzalez no baixo e teclados, respectivamente). Mais além, mirou em um trabalho mais ligeiramente conceitual; desde a introdução, com a festiva faixa-título, o tom é claramente mais celebratório e expansivo, criando uma espécie de conexão com a última faixa do disco anterior, “A Rodar Mi Vida”. O momento mais marcante do novo trabalho, no entanto, brilha fugaz logo em seguida: “Mariposa Tecknicolor” se ampara em melodias assobiáveis e letras impressionistas para criar uma das mais memoráveis canções do repertório de Fito, que até hoje a utiliza para encerrar seus shows de maneira catártica – palavra, aliás, capaz de resumir bem o sentimento evocado desde o lançamento original da música.

É na estruturação de “Normal 1” que a inspiração dos Beatles, de alguma forma presente desde a psicodélica arte de capa, se faz mais presente. Outras faixas, como a galopante “El Jardín Donde Vuelan Los Mares” e a brincalhona “Soy Um Hippie” carregam a referência de “Sgt. Pepper” com orgulho. Ao mesmo tempo, com a exceção dos violões corridos de “Lo Que El Viento Nunca Se Llevó”, mesmo os números mais aparentemente joviais têm também uma espécie de sutil melancolia que, a essa altura, já se tornava marca registrada do compositor. E as fontes de sua inspiração não deixam de figurar mesmo assim: “Dejarlas Partir” menciona Chico Buarque por nome, as orquestrações climáticas de “Se Disney Despertase” complementam seu clima onírico, e “She’s Mine” ainda cita os Strawberry Fields sobre os quais John Lennon famosamente cantou. É no andamento jazz de “Las Tardes Del Sol, Las Noches Del Agua”, no entanto, que reside a grande jóia oculta de “Circo Beat” – com um letra aflita conduzida por orquestrações dignas de George Martin.

Outro grande trunfo de “Circo Beat” tem a ver com o papel que o álbum desempenhou na tentativa de difundir o nome de Páez em meio ao público brasileiro. O disco foi o primeiro da carreira de Fito a sair simultaneamente no Brasil, onde já começava a angariar para si uma audiência significativa. Por aqui, o álbum ganhou o nome “Circo Beat Brasil”, e recebeu um aporte inédito: três faixas bônus em português, com “Mariposa Tecknicolor” sendo entoada em dueto com Caetano Veloso (que gravou “Un Vestido y Un Amor” em “Fina Estampa”, também de 1994), “She’s Mine” contando com a participação de Djavan, e “Tema de Piluso” (renomeada como “Nas Luzes de Rosario”) cantada juntamente com Herbert Vianna, com quem Paez havia colaborado recentemente em “El Vampiro Bajo El Sol”, de “Severino”, do mesmo ano (também produzido por Phil Manzanera) – o Paralama, inclusive, assina a adaptação ao idioma brasileiro das duas primeiras letras, ao passo que a terceira foi versionada por Thedy Correa, vocalista do Nenhum de Nós.

O reconhecimento da inegável qualidade do material, impulsionado pela popularidade conquistada por seu lançamento anterior, ajudaram a fazer de “Circo Beat” um sucesso de público respeitável. Já a crítica, embora amistosa, relutou um pouco, quiçá por esperar algo mais próximo de “El Amor Despues Del Amor”; o tempo, porém, se encarregou de fazer com que o álbum caísse nas graças da imprensa especializada, também. O que se seguiu foi uma triunfal turnê que ajudou a solidificar o nome de Fito Paez na esteira de um espetáculo musical e cenograficamente ambicioso e lúdico. E que, se não repetiu o sucesso demolidor de poucos anos antes (a constatar pela morna recepção do novo material pelo público em um show problemático e relativamente mal-sucedido no estádio do River Plate, já em 1995), ajudou a consagrar o cantor como uma atração para teatros e arenas, onde já se provou infalível. O sucesso, por sua vez, concedeu a Fito cacife suficiente para que o sucessor de “Circo Beat” levasse o tempo que fosse necessário para se materializar.

Dois anos se passariam até que Paez colocasse um novo lançamento na praça – desta vez, um belo acústico gravado ao vivo sem a chancela da MTV Argentina, entitulado “Euforia” – e cinco até seu próximo disco solo de estúdio, “Abre” (1999). Embora pontuado por um disco em colaboração com o espanhol Joaquín Sabina (“Enemigos Intimos”, de 1998), o hiato em retornar aos estúdios de gravação foi resultante, de acordo com o próprio músico, da pressa da a qual a realização de “Circo Beat” foi imbuída. Desde então, Fito conduziu sua carreira de forma regular e confiante: seu último relançamento “EADDA9223” (2023) revisitou o repertório de seu álbum mais consagrado, refazendo o disco por completo e elencando novas (e retornantes) participações especiais. O projeto (que contou, inclusive, com Chico Buarque e Marisa Monte agregando aos arranjos compostos em 1992) foi antecedido por uma trilogia de discos que tiveram sua origem durante a pandemia: o roqueiro “Los Años Salvajes” (2021), o orquestral “Futurologia Arlt” e o “pianístico” “The Golden Light” (ambos de 2022); a ambição que o guiou em um de seus momentos mais desafiadores, afinal, se mostra tão viva quanto nunca. O vindouro lançamento de “Novela”, aliás, é antecedido pela turnê “PAEZ 4030”, que atravessará alguns países da América Latina a partir deste Novembro, com execuções, na íntegra, tanto de “Del 63” quanto de… “Circo Beat”. Não é fácil lidar com o cinismo por trás do circo da música pop – a chave para o sucesso de Fito Paez segue sendo, afinal, a habilidade em olhar por trás da cortina do palco e saber lidar com o próprio legado.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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