texto de Renan Guerra
fotos de Marcela Bicalho e Melina Furlan
Pós-pandemia vivemos um boom de festivais e shows pelo país, demanda represada dos tempos de isolamento que fez o mercado inflar e possibilitou que uma série de novos eventos surgissem. Agora em 2024 passamos para uma nova fase desses debates sobre o mercado de shows e festivais no Brasil: como tornar esse mercado sustentável? Como manter o interesse do público com tantas ofertas? Com o cancelamento de grandes turnês pelo país e o adiamento de festivais, chegamos a um novo cenário, com discussões que tentam entender o porquê desses cancelamentos, mudanças e problemáticas e, no final das contas, uma coisa é clara: ninguém tem tanto dinheiro para tanto show e festival.
Pensar em arte e cultura tem que passar cada vez mais por uma discussão em torno dos acessos a esses eventos: quem consegue assistir a tantos shows? Quem consegue ter acesso a tantos festivais? Um fato concreto é que o público continua tendo sede de música ao vivo e isso não diminui, o que diminui é o poder aquisitivo da população, que vê cada vez mais os valores de ingressos subindo e subindo. Quando temos a possibilidade de presenciar um festival acontecendo de forma gratuita, em um espaço de fácil acesso à população, o que vemos é um público diverso e interessado que está aberto aos clássicos e ao novo. E foi isso que presenciamos na 9ª edição do Festival TendaLab, em Vitória, no Espírito Santo, entre os dias 26 e 27 de julho.
O TendaLab surgiu como um evento dentro do Festival de Cinema de Vitória. Inicialmente como um karaokê para reunir o público sob uma tenda, o evento foi crescendo e recebendo shows maiores, sempre com um foco em levar para o Espírito Santo nomes importantes do cenário nacional como também de fomentar a cena local, apresentando novos artistas e celebrando nomes importantes da região. Em sua 9ª edição, o festival ocupou o campus da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES em duas noites de shows gratuitos que fizeram o espaço ficar lotado por um público extremamente diverso, de jovens aos grupos da terceira idade, com amigos, casais e famílias reunidas. Sem necessidade de retirada de ingresso, bastava chegar ao evento e se divertir, por isso o pessoal levou suas cadeiras de praia, seus coolers e aproveitou os dois dias de shows, que entraram madrugada adentro.
O primeiro dia, na sexta-feira, 26 de julho, tinha como estrela central do line-up a diva Alcione, por isso muita gente já chegou cedinho para guardar seu lugar na grade. Mas antes os trabalhos se abriram com nomes locais. No comando das pick-ups, o DJ Zappie intercalava os shows com boa música e foi assim que se abriu à noite. Após esse esquenta inicial, a banda Macucos, importante grupo formado em Vila Velha em 1999, entrou em cena. Com sua mistura de reggae e pop rock bem à moda brasileira, o grupo teve uma presença forte no cenário pop dos anos 2000 e isso se prova no público animado que se reuniu para seu show, com muitas das canções na ponta da língua. O som do Macucos não é necessariamente inovador, ele na verdade está em bastante uníssono com diferentes bandas contemporâneas deles na virada do século, porém os artistas se destacam no palco por sua presença interessante e cativante, que já deixou a audiência num ritmo alto.
A segunda atração da noite foi o grupo Aurora Gordon, projeto idealizado pelo artista Murilo Abreu e que busca fazer um resgate histórico da banda Os Mamíferos, formada em Vitória em 1966 por Afonso Abreu, Mario Ruy e Marco Antônio Grijó. Murilo é filho de Afonso e trabalha há alguns anos nesse resgate, uma vez que a banda Os Mamíferos nunca chegou a gravar um disco ou registrar suas músicas, mesmo assim durante os anos 60 e 70 o grupo foi seminal na formatação de uma cena musical alternativa em Vitória, com seu som que combinava rock, jazz, soul, bossa nova, folk, baião e uma boa dose de psicodelia. Tudo isso dá o tom do show do Aurora Gordon, que evoca esse espírito setentista com uma sonoridade que nos leva numa viagem temporal, ao mesmo tempo que apresenta esse repertório a um novo público. É um show muito interessante que nos faz pensar nas histórias de diferentes artistas que ajudaram a construir outras possibilidades de criação artística mais livres pelo Brasil em um cenário muito mais complexo e difícil – quando pensamos num contexto de ditadura militar – e como essas canções podem reverberar ainda hoje, de outras formas.
Já era em torno das 23 horas quando Alcione subiu ao palco para o show mais aguardado da noite. Seu público esperava ansioso, tanto que levou cartazes e discos de vinil para a frente do palco, na esperança de conseguir alguns autógrafos – uma das fãs, que estava de aniversário, conseguiu o autógrafo em seus discos! Alcione tem circulado o país com seu show de 50 anos de carreira e foi esse espetáculo que ela apresentou no palco do TendaLab, passando por grandes clássicos como “A Loba”, “Meu Ébano” e “Você Me Vira a Cabeça”.
Desde que fez uma cirurgia na coluna em 2022, Alcione costuma se apresentar em grande parte do tempo sentada e foi o que vimos aqui. E é interessante como ao mesmo tempo que seu corpo parece mais frágil, sua voz segue extremamente firme e com tanta força, que o fato dela estar sentada não faz real diferença no show. Aliás, vê-la sentadinha em sua cadeira cantando os versos “Quando as minhas pernas não puderem aguentar / Levar meu corpo junto com meu samba”, do clássico “Não Deixe o Samba Morrer” ganha outras camadas e ainda reforçam a potência de Alcione na música brasileira. Vale destacar dois momentos especiais do show: primeiro que Lázaro Ramos – homenageado no Festival de Cinema de Vitória – e Taís Araújo ficaram no TendaLab apenas para ver Alcione e foram ovacionados pela cantora e pelo público; segundo, o momento em que Alcione convidou Mart’nália para o palco, em uma celebração de carinho total.
Depois da catarse causada por Alcione, uma parcela do público se dispersou, mas muitos ainda estavam com muito samba no pé para o show de Mart’nália. A artista carioca subiu ao palco já madrugada adentro e optou por um show bastante focado num repertório que casava algumas faixas autorais com clássicos do samba e da MPB, com canções como “Onde Anda Você” e “A Tonga da Mironga do Kabuletê”, ambas de Vinicius de Moraes. O conceito do show de Mart’nália é realmente de farra total, com a artista se divertindo no palco e chamando os presentes para essa festa – e o público de Vitória estava totalmente pronto para essa farra. Na grade do show, muitas mulheres da terceira idade continuaram mostrando samba no pé até uma e meia da manhã, cantando e se divertindo ao máximo. Mart’nália tinha um desafio pós-Alcione e soube muito conduzir isso e abraçar o público.
Para fechar a noite, a artista capixaba Roberta de Razão subiu ao palco do TendaLab para apresentar o lançamento de seu disco “Mais Forte Que Trovão”, via Läjä Records. Com um casamento excelente de brega e punk – classificado pela artista como “punk rock psicolésbico” –, Roberta fez uma performance forte no palco, com algo que passeia entre a liberdade punk e uma teatralidade rica que chama o público para o universo musical da artista, que fala sobre suas experiências amorosas e sociais enquanto mulher lésbica e coloca isso na centralidade de suas canções, tudo com muito bom humor em faixas excelentes como “Amor de Sapatão”, “Eliane” e “Amor do Capeta”. Com sua força punk, Roberta de Razão foi uma excelente escolha para fechar o primeiro dia de festival.
No sábado, 27, segundo dia de festival, os shows foram intercalados com sets da DJ Karolla, que colocou para rodar ritmos diversos como clássicos da MPB mixados em tecno brega, cumbia e outros gêneros, além de uma interessante pesquisa de canções do pop alternativo nacional. Após o esquenta, Filipe Catto subiu ao palco para apresentar seu show “Belezas são Coisas Acesas por Dentro”, com repertório que revisita clássicos de Gal Costa. Para além do disco excelente lançado no ano passado, é sempre interessante observar a força que Filipe alcança em cena, pois ela é uma artista que se engrandece a cada show e que entende na performance ao vivo seu espaço de criação e de liberdade. Além do repertório apresentado na gravação de estúdio, como “Vaca Profana” e “Vapor Barato”, no show ainda surgem versões para outros hits como “Chuva de Prata” e “Como Dois e Dois”. Dramático e roqueiro, esse segue um dos shows brasileiros mais interessantes da atualidade.
Depois foi a vez do mestre Odair José abrir seu set com a pedrada “A Noite Mais Linda Do Mundo (A Felicidade)” e dali pra frente foi uma sequência de hits de causar inveja, como “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha” e “Vou Tirar Você Desse Lugar”, tudo isso intercalado com os trabalhos mais recentes de Odair. O músico de 75 anos passou por uma redescoberta nos anos 2000 – especialmente a partir da coletânea “Vou Tirar Você Desse Lugar”, relembrada recentemente aqui no Scream & Yell – e isso também impulsionou uma fase de liberdade artística e criativa muito forte de Odair, que lançou agora em 2024 o disco “Seres Humanos (e a Inteligência Artificial)”, trabalho ousado em que cria canções a partir de diferentes usos da inteligência artificial. Ao vivo, a banda de Odair é bem real e cria um calor de show de rock, com a força de um repertório envolvente seja nos clássicos conhecidos quanto em suas novas produções. A força de Odair fica ainda mais clara quando vemos o público de diferentes idades cantando suas canções.
Na sequência, foi a vez do capixaba André Prando subir ao palco para apresentar seu mais recente disco “Iririu”, trabalho lançado no início de julho. Algo entre a MPB, o pop e a psicodelia – com pitadas de salsa e reggae –, o trabalho de André Prando tem personalidade e busca uma identidade forte, porém nem sempre alcança totalmente isso no palco, criando a sensação de que falta algum polimento final ao espetáculo, que tem suas potencialidades. De todo modo, Prando tem seu público estabelecido, que abraça o universo sonoro e estético do artista e que se entregou ao universo lisérgico à brasileira do músico.
Depois da moderna lisergia, voltamos aos clássicos com a chegada do Fundo de Quintal. Grupo seminal do samba, por onde nomes gigantes já passaram, a banda conta hoje ainda com nomes da sua formação original, como Bira Presidente, com seus 87 anos! No palco, o clima é de roda de samba, pois o repertório do grupo tem alguns clássicos fundamentais do gênero, que fizeram o público sambar madrugada adentro. Há uma perspectiva de show memorial, que relembra a história do samba e, de alguma forma apresenta esses sons a um novo público, por isso nem sempre esse show soa com a força do novo, mas isso não é necessariamente um problema, visto que a perspectiva aqui é realmente de reverência a um legado fundamental.
O encerramento do evento ficou na responsabilidade da festa Sintonia, com DJ Will, KL Jay e DJ Ajamu. A festa foi madrugada adentro e a realidade é que esta reportagem não teve mais forças de seguir. De todo modo, a volta pra casa foi marcada pela alegria de presenciar uma congregação muito única em torno da música e da festa. A experiência de um festival gratuito, que congrega diferentes públicos e que possibilita a descoberta de novos sons é sempre algo que encanta qualquer um que seja apaixonado por música – tanto que esse seria o nosso sonho real, de que mais e mais gente pudesse sempre experimentar essa mesma sensação que a gente sente a cada show, seja chorar ao som de Alcione, sambar ao som de clássicos e bater cabeça enquanto descobre a sua nova canção favorita.
O TendaLab surgiu como o irmão musical do Festival de Cinema de Vitória e parece estar em fase de crescimento, desfazendo seus laços familiares para trilhar caminhos maiores fora do ninho e, por isso, só temos a celebrar essa caminhada e torcer para que o festival apenas cresça e possa seguir sendo data importante no calendário cultural do Espírito Santo.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. As fotos são de Vitória Proença.