texto por Bruno Capelas
fotos por @cinemargherito

Saiba como foi o dia 1 / dia 3

Existem duas formas de ver o rock hoje em dia – tal como quase tudo na vida. Há quem, de maneira conservadora, prefira olhá-lo como um gênero estanque, arraigado a princípios básicos e redutores. E há quem consiga entendê-lo não como um fim, mas como uma plataforma para a exploração de sons diversos, ao mais diferentes gostos. Felizmente, o Goiânia Noise pertence ao segundo grupo: se em sua primeira noite o festival trouxe uma aula prática da disparidade entre clichês e fusões muito interessantes, no segundo dia foi possível testemunhar como nosso velho roque enrow se torna combustível para criações muito variadas, mas não menos relevantes.

De quebra, também foi uma amostra importante de que hoje, a beleza e a renovação dessa sonoridade passa pela igualdade de gênero – em 2024, 40% das 40 bandas escaladas para o festival têm pelo menos uma mulher como integrante, não raro em posições de destaque. Não impressiona, portanto, que os melhores shows do sábado, 13 de abril, no Centro Cultural Oscar Niemeyer, tenham vindo justamente de artistas como Letrux, a banda brasiliense Ypu e o paulistano Los Clandestinos Trio, capitaneados pelas incríveis Letícia Novaes, Ayla Gresta e Sayuri Yamamoto, respectivamente.

Mas vamos com calma, porque a noite é longa: aproveitando que o sábado é dia de festa, o Noise impôs aos 3,5 mil espectadores uma maratona de nada menos que dezesseis bandas, enfileiradas das 16h às 3h – começando com as bandas locais Sanguínea, Vento Cobre e Synx. Abatida por um almoço no Mercado Central, pelo cansaço acumulado e pelo sol de rachar na capital goiana, a reportagem do Scream & Yell só chegou mesmo ao festival lá pelas 17h30, bem quando estava começando o quarto show do dia, com a Fat Drive Factory. Passeando por uma sonoridade entre o hard rock, o folk e o southern rock, o grupo liderado pela simpática vocalista Nathália Uchôa talvez não soasse tão bem em outros contextos. No palco aberto da Esplanada ainda iluminado pelo sol, porém, a formação fez um show divertido e animado, bom para esquentar os motores do que estaria por vir.

No subterrâneo Palácio da Música, a também local Ousel fez seu espetáculo em meio a uma fase de transição, ainda com canções em inglês mas já querendo exibir repertório novo em língua pátria. Não é só o dilema de idiomas que faz a banda, que em 2023 chegou a fazer uma turnê na Índia, remeter ao universo sonoro do começo dos anos 2000. Em suas canções, transitam referências ao Radiohead dos primeiros discos, britpop e aquele rock barulhento e meio depressivo de rádio da virada do século XXI, numa proposta que tem resultados ambíguos, com raros momentos mostrando potencial. Na sequência, o Spiritual Carnage trouxe guitarras pesadas, vocais gritados e a experiência de três décadas e meia no death metal para a Esplanada, empolgando o terço do público presente composto por camisas pretas – os outros dois terços, a saber, se dividiam entre jovens fãs de rock triste e gente que, entre paetês e brilhos, se preparava para uma noite de climão, formando uma plateia bastante heterogênea.

Sem nem um “tiquim de carimbó”, a primeira banda não-local a tocar no segundo dia de Goiânia Noise foi a paraense Buk, uma novidade fresca pelas mãos de Marcelo Damaso e Gustavo Rodrigues – responsáveis também pelo surgimento e longevidade de um dos festivais mais legais do País, o Se Rasgum, tributário do festival goiano. “Foi vindo aqui em 2003 que eu e Damaso tivemos a vontade de criar o Se Rasgum”, comentou Rodrigues, para salva de palmas do público. Com dois EPs recém-lançados nas costas (“Buk”, de 2023, e “Buk 2”, deste ano), o grupo ainda não contabiliza dez shows em sua carreira… mas nem parece. Cheio de referências noventistas, o sexteto transita entre um folk mais soturno, momentos mais contemplativos do Pavement e a deliciosa sujeira do Dinosaur Jr.. A nostalgia, porém, está sempre a serviço da canção – e vale a pena prestar atenção em “Nuvem Glitter” e “Hortelã”, dois números que fizeram bonito no palco do Palácio da Música. No final, impressionou ainda também a boa barulheira de “Mosca”, uma boa homenagem ao ruído do Mudhoney.

Também nostálgico e termicamente apropriado para Goiânia, o Los Clandestinos Trio transformou a Esplanada em um saloon ao som de blues, country e rockabilly. Entre criações próprias e covers de Wanda Jackson (“Fujiyama Mama”) e Louis Prima (“Ain’t Got Nobody”, famosa também na voz de David Lee Roth), o grupo paulistano fez um dos shows mais animados do festival até o momento – cortesia da baixista e vocalista Sayuri Yamamoto, um furacão no palco. Cantando, dançando, tocando gaita e subindo nas caixas de som, ela incendiou a audiência e botou todo mundo pra bailar. O final foi apoteótico: ao som de um dos maiores hinos do rock dançante (“Surfin Bird”, claro), Sayuri invadiu a pista com seu baixo e, cheia de carisma, fez todo mundo arrastar a sandália. É só rock’n’roll? Claro, mas quando bem tocado desse jeito não tem como não se divertir.

“Quer entender o que é o rock gaúcho? É isso, bicho”, disse um amigo logo no início do show de Lucas Hanke e o Cromatismo de Sensações. Ex-vocalista da Identidade e baixista e produtor do saudoso Júpiter Maçã, Lucas segue toda a cartilha que aprendeu com o mestre, com direito a doses cavalares de psicodelia, coros à la Beatles e um vocabulário que só mesmo um seguidor de Flávio Basso poderia cometer, incluindo termos como “tara” e “amor lisérgico”. Para um incauto espectador, a sonoridade pode ser até menos revivalista que a do Los Clandestinos, é verdade. Mas performance não é ciência exata nem mera retrospectiva numérica, é arte: sem o mesmo carisma de Sayuri, o gaúcho faz um show quase em sépia, bem mais amarelado que as vivas cores em Technicolor do trio paulistano.

E já que o assunto é história, nada melhor do que contar com quem é história viva do rock brasileiro: Carlos “Vândalo” Lopes, o icônico vocalista e guitarrista do Dorsal Atlântica. Portando uma Flying-V com tamanho de cavaquinho, mas não menos potente, o professor começou seu show antes mesmo de tocar, em um discurso maravilhoso. “Vamos nos comportar se não eu mando vocês pra quinta série, vocês vão ter que conviver com o Bolsonaro porque vocês não têm estudo”, disse, emendando a quinta marcha. “Eu sou católico, vou à Igreja, sou comunista, professor e estudioso. Sou tudo que eles não gostam. Eu amo o metal, mas foda-se o metal. Eu não tô com ninguém, sou comunista mas sou anarquista de coração”. Mas mais que o discurso, há a prática, e é emocionante ver uma banda seminal do thrash nacional mandando ver em alta octanagem no palco. No final, Carlos ainda convidou Márcio Jr. (Mechanics) para um dueto explosivo e arrematou tudo com mais um discurso memorável, numa homenagem ao governador local: “Arame / farpado / na bunda do Caiado!”. Que delícia, cara.

Na maior parte dos momentos, o rock precisa de humor para dar certo – e rir de si mesmo talvez seja o melhor jeito de fazer isso acontecer. Explicação clara disso é o show da banda local Johnny Suxxx, que brinca com os clichês do glam rock de maneira curiosa. À primeira vista, é possível até acreditar que Johnny é um sem noção se levando a sério, mas não é preciso muito tempo para descobrir o contrário. Vamos às evidências: do guitarrista às backing vocals, sua banda toda se veste com peças de oncinha; ele se entrega ao gestual do rock com ironia e veste uma camiseta “fofinha” do Slayer com uma jaqueta de Lou Reed e… bermudas. A piada é tanta em ser um falso rockstar que até o final do show ele vai dar uma dose de whisky de presente para a plateia e suar alguns litros. Como dizia uma banda antiga por aí, para gente como Johnny Suxxx o palco não pode ser pouco – e que bom que o Palácio da Música tem uma larga ribalta pra gente como ele.

Responsável por trazer boa parte dos camisas pretas ao festival, a banda paulistana de metal Nervosa começou seu show com atraso de 15 minutos, por problemas para acertar seu som. Bom pra quem ficou, melhor para quem aproveitou para conferir as atrações da feirinha “hippie” do Goiânia Noise, com estandes nos quais podia se achar de tudo um pouco: de videogame indie goiano a comida vegana, passando por bancas de quadrinhos, itens de couro e não um, mas dois sex shops! Pausa boa também para experimentar a hard seltzer (aquele nome bonito pra “água com gás saborizada com um tiquinho de álcool”) da The Buena, com amora, goiaba e terpenos, a R$ 15.

A esta altura da noite, é preciso um disclaimer: há quem poderá dizer que este trecho da cobertura é corporativista, dado que o Selo Scream & Yell divide com a Monstro Discos o lançamento de “Paranoar”, disco da brasiliense Ypu. Mas enquanto este repórter não teve nada a ver com a empreitada e nem havia escutado o trabalho anteriormente, dá para contra-argumentar que a surpresa é genuína: que delícia é ver uma banda gostosa dessas em cima do palco. Formada inicialmente pelo casal Ayla Gresta (voz, trompete e muito charme) e Gustavo Halfeld (guitarra e vocais), o grupo subiu ao palco em formação de sexteto com boas expectativas, depois de fazer um dos shows mais prestigiados da edição 2023 do Noise.

Desde os primeiros segundos, o carisma de Ayla toma conta do espaço. Não é só isso: ciente de seu potencial, a vocalista poderia usar seu charme de uma forma mercantilista, mas ela evita esse caminho fácil para construir uma relação honesta com seu público, convidando-o a uma jornada sensível, íntima e sexy muito interessante. Enquanto isso, a bem-estruturada banda liderada por Gustavo lhe dá cama e camadas sonoras para deitar e rolar, seja cantando ou tocando trompete. Se no começo do show havia poucos presentes no Palácio da Música, não chega a ser uma surpresa virar a cabeça para trás e perceber que o local está cheio, agradando e muito à eclética plateia do Noise. O final apoteótico, com “Fruta”, vai ficar na cabeça por muitos e muitos dias – e vale o alerta: se a Ypu passar perto de você, não perca (aproveita, e ouça o disco aqui no Scream).

Com disco novo debaixo do braço (“Cererê”, uma homenagem ao tradicional palco do Martim Cererê, que por muitos anos abrigou o Goiânia Noise e deu espaço para a cena da cidade por décadas), o Carne Doce teve a missão honrosa de encerrar os trabalhos no Palco Esplanada. Jogando em casa, o grupo não teve dificuldades para fazer bom resultado, alternando entre canções antigas e números do novo trabalho. Foi um show correto, muito cantado e gritado, mesmo quando a banda impôs ao público versões de cinco, seis ou sete minutos de suas músicas. Em alguns casos, não sem alguma gordura: mais curtas, as elucubrações (instru)mentais poderiam resultar em um show mais redondo para a banda de Salma Jô. Seguimos.

Há pelo menos uma década, existe uma certeza no cenário independente brasileiro: Letícia Novaes é uma das maiores frontwomen da atualidade. Acompanhar sua evolução, de Letuce a Letrux, entre climões, prantos e passeios ao zoológico, é a chance de observar sempre uma performer em alta voltagem. No entanto, ela não é o exemplo mais clássico de entertainer: durante boa parte de seu show no Goiânia Noise o público responde a ela não tanto cantando, mas sim dançando e ficando boquiaberto com a força da natureza que é Letícia. De bate pronto, até poderia se argumentar que falta à artista um repertório de canções, mas não é bem assim.

Na verdade, o que Letrux faz menos é canção, pelo menos naquele formato padrão de “parte A, parte B, refrão” que muita gente se acostumou a ouvir. Há um motivo para isso: ela é uma performer tão preciosa e tão atenta ao seu trabalho que é fácil perceber que um conjunto de canções de tal sorte não são, necessariamente, o que daria a ela o melhor material para seu espetáculo. Mais do que ouvir a plateia encobrindo sua voz, Letícia parece especialmente interessada em dividir charme e catarse com seu público, em relatos altamente identificáveis e compartilháveis (“tu me deu um corte”, “como se diz pra alguém ‘eu não me apaixonei por você’”), numa mostra de sintonia com o seu (e o nosso) tempo.

No entanto, quando, lá pelo meio do show, Letrux decide abraçar um refrão poderoso, como o “Deda, deda, deda, deda, deda, deda, dedada/Molha, molha, molha, molha, molha, mulher molhada” de “Que Estrago”, a casa vem abaixo. E olha que nem precisava da participação consagradora (e combinada poucos minutos antes do show) de Ayla Gresta, da Ypu, transformando o título da canção em uma versão bastante literal de uma das músicas mais lúbricas deste século, dedicada “à família tradicional brasileira bissexual e sapatão”.

Dali para diante, tudo foi festa: teve a participação fantasmagórica de Lulu Santos em “Zebra” (com outro verso identificável, “e quando a gente se encontrar, te prometo um abraço”), teve “Flerte Revival” declamada do começo ao fim pela plateia, teve “Vai Brotar”, com direito a confete e serpentina de montão e, ufa, uma ótima exibição de “As Feras, Essas Queridas”. O público queria mais, claro, mas Letícia tinha de partir, não sem deixar uma lição de vida. “Não sejam inimigos do fim. Se a gente for amigo do fim, dói menos”, disse a cantora, antes de atacar com “Ninguém Perguntou por Você” – outra canção de ótimo refrão, mas cujo ápice surge mesmo não nos versos repetidos, mas em um delicioso solo de guitarra e coreografias mil da cantora. Noite maravilhosa, geral sentiu.

Para encerrar a noite com a difícil missão de suceder Letrux, o Terno Rei – possivelmente a banda da geração que mais viu crescer sua popularidade neste pós-pandemia. Se em 2022 ou início de 2023, era comum ver o grupo aparecendo com algum destaque nos cartazes de festivais, neste 2024 eles já se acostumaram a ocupar a primeira ou segunda linha das escalações. Junto com isso, aumentou também a idolatria do público, com direito a choro, ranger de dentes e até faixas pedindo por uma foto com o quarteto. Também com a mudança de status, veio a possibilidade de fazer shows mais longos, saindo de slots de 40 ou 45 minutos para espaços de mais de uma hora no palco.

Com mais tempo para tocar, o Terno Rei se torna uma banda menos enxuta, mais climática, talvez não tão potente quanto há alguns meses. Pesa nisso também a iluminação difusa, enormes camadas de gelo seco e interação discreta do grupo com a plateia: se já não têm mais a timidez de outrora, Ale Sater e seus companheiros saem pouco do convencional ao conversar com os fãs, agradecendo a presença, aplaudindo o festival e abrindo espaço para corais. Não que o público se importe muito: da abertura com “Solidão de Volta” ao final com radiofônica “Dias da Juventude”, a catarse é generalizada em um Palácio da Música ainda bastante cheio, mas com 30% menos gente que no show de Letrux.

Em Goiânia, o grupo fez uma das primeiras datas da perna final da turnê de “Gêmeos”, disco lançado em 2022 e que ajudou a banda a fincar sua bandeira no circuito brasileiro, depois que o festejado “Violeta”, de 2019, rodou nos fones de muita gente durante a pandemia. É dos dois discos que vêm praticamente todo o repertório da apresentação da banda no festival – a exceção ficou por conta de “Mercado” e “Cores Vivas”, dois lados-B de evidente intenção radiofônico lançados pela banda num EP de 2023 (“B-Sides Gêmeos”).

Nos bastidores, o quarteto comentou que já trabalha em um novo álbum, prevendo um ou dois singles ainda este ano e um long-play para 2025. Se no momento o foco está mais na despedida e em aproveitar essa onda de consagração, “numa noite legal, viagem sem fim”, a apresentação em Goiânia abre espaço para questionamentos sobre o futuro do grupo. Depois da coesão sonora pop-pós-punk de “Violeta” e da expansão expressionista de “Gêmeos”, qual será o próximo passo estético do Terno Rei? Será ele suficiente para consolidar o grupo como headliner dos festivais pelo País e, quem sabe, alçar voos ainda mais altos? E por quanto tempo vai durar a Beatlemania balaclaver?

Quem viver, verá – e vamos adiante porque neste domingo de shows gratuitos ainda tem mais Goiânia Noise com Boogarins, Violins, Rancore e muito mais.

Saiba como foi o dia 1 / dia 3

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.