texto de João Paulo Barreto
Quando a britânica Mary Shelley escreveu seu clássico “Frankenstein” há duzentos anos, foram poucos os leitores que entenderam a crucial crítica contida na abordagem que seu texto trazia sobre a condição humana perante as imposições da sociedade em comportamentos e no moldar do ser humano diante de sua incapacidade de se ver como parte da mesma. Popularizado pelo cinema em diversas obras, o mito da criatura trazida à vida pelo Dr. Frankenstein ganhou contornos mais específicos, traduzindo para um público mais amplo a reflexão que os escritos de Shelley buscava trazer à tona. Em uma das mais eficientes adaptações, “Frankenstein de Mary Shelley” (1994), Kenneth Branagh foi um dos que melhor souberam concretizar em imagens na tela tais aspectos citados, bem como acrescentar as eficientes rimas visuais que tão bem representam os caminhos simbólicos de vida e morte que a obra escrita em 1818 trouxe.
“Pobres Criaturas” (“Poor Things”, 2023), novo filme do inventivo diretor grego Yorgos Lanthimos, não é uma adaptação da obra de Mary Shelley, obviamente. No entanto, carrega muito da reflexão que a visita ao livro secular, bem como às suas várias adaptações, traz. Na verdade, “Pobres Criaturas” é baseado no livro que o (já falecido) escritor escocês Alasdair Gray lançou em 1992. Mas, com sua experimentação de um tema semelhante, no caso, o moldar de um ser humano revivido de modo científico e artificial, sua crescente adaptação ao mundo que o cerca, juntamente ao choque diante da percepção de que aquele universo não visa sua proteção, mas, sim, sua derrocada e ele terá que, mesmo inconscientemente a princípio, lutar para se manter vivo, pensar em Mary Shelley se torna inevitável.
No entanto, é importante frisar que tal comparação não reduz a riqueza da adaptação escrita por Tony McNamara para a obra de Alasdair Gray. O roteirista, inclusive, repete aqui a parceria iniciada com Lanthimos em “A Favorita” (2018), que, por sinal, possui os ecos de direção que se desenhavam nas marcas expressionistas do cineasta grego. Em “Pobres Criaturas”, Yorgos, ao lidar com o fantástico e com o bizarro, as mesmas marcas se tornam, convenhamos, bem mais confortáveis, melhor aplicadas e de acordo com sua proposta de trabalho do que no longa anterior. Assim, o contínuo uso de lentes grandes angulares (também conhecidas como “olho de peixe”) no sentido de transformar e deformar o excêntrico universo da Londres vitoriana onde se passa sua trama, juntamente ao ambiente distorcido e repleto das pobres criaturas do título e que habitam o laboratório do Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), acabam por se justificar de maneira bem mais natural. É claro que seu metafórico título vai encontrar peso não somente na obviedade bestial dos experimentos de Baxter, mas, também, nas pobres criaturas humanas e “normais” a vagar por aquele mesmo universo.
Na história de Bella Baxter (Emma Stone), criança em um corpo adulto que começa a ter suas experimentações gradativas da vida a partir da criação do Dr. Godwin, seu pai adotivo (no caso, o citado médico, cientista e inventor), as referências a “Frankenstein” se fazem presentes. Assim, o filme cria na figura de Bella um molde para o ser humano como essência, alguém que, em certa idade inicial, comumente descobre e se encanta com as possibilidades de prazer oriundas do seu próprio corpo físico. Alguém que, também, evolui no domínio de suas funções fisiológicas e motoras de maneira gradativa, criando uma rima visual eficiente na comparação da protagonista em seu crescimento durante a trama. Mas, para além dos aspectos físicos, é no desabrochar mental de Bella que reside o modo como “Pobres Criaturas” dá à audiência a principal análise de sua protagonista.
Assim, além dos prazeres do sexo e da gula, juntamente às análises niilistas de um mundo no qual não se pode ter qualquer fé otimista, a menina conhece os aspectos da sociedade ao perceber a noção injusta do capitalismo, a perda da pureza de pensamento e a decepção diante da malícia da desonestidade. Emma Stone brilha ao captar a essência de experimentação de seu personagem, colocando-a, inicialmente, em um estado de surpresa e encantamento para, enfim, alcançar a maturidade e, junto com ela, a descrença, o cinismo e a sagacidade da autoproteção. Proteção essa que, em sua gênese de vida, advém de “deus”, ou, pelo menos, o “deus criador” que Bella conhece representado por Godwin, cujo nome é daquelas ironias cortantes no texto.
Em sua presença, “God” norteia os ímpetos infantis de Bella como um pai a educar seu rebento. Quando ele percebe a maturidade das descobertas a invadir de vez a personalidade de sua filha, cede aos seus desejos de partir e não impõe uma autoridade que sabe que se tornará belicosa. Filho é para o mundo, já diz a máxima. E naquela experiência de ir embora, Bella dá mais um passo em sua evolução inconsciente, mas que, logo, se tornará sua linha de caminho.
Willem Dafoe segue na escolha de seus personagens para o cinema de forma concreta, encontrado no deformado médico e cientista criador de Bella uma construção que impressiona para além de sua aparência grotesca. E o grotesco de seu rosto se torna uma prolongação da mesma ambientação grotesca que Lanthimos, junto à direção de fotografia de Robbie Ryan (também de “A Favorita”) e ao design de set, cria diante àquela ambientação fabulesca, prima por captar. Aqui, o equilíbrio do ambiente bizarro e mutante de seu cenário, ecoa pelas personalidades excêntricas de seus personagens centrais. E Bella se torna aquela a entender o seu entorno e, em sua evolução intelectual, capta a maneira urgente de se sobressair daquelas adversidades.
No encontro de sua sapiência, que surge de modo avassalador acompanhada da malícia necessária para captar do que se trata a vida, Bella compreende o mundo por traumas e prazeres. Suas decepções são as mesmas de várias pessoas no nosso mundo real. Sua busca por evolução, idem. Quem são as “Pobres Criaturas” do título se não os membros da própria humanidade?
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual
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