texto de Lucas Reis
No início do século XXI, um grupo de jovens diretores dos Estados Unidos iniciaram uma série de produções cinematográficas com o mesmo interesse: radiografar o cotidiano de pessoas comuns. Havia o desejo de romper com o realismo-ilusionista característico das grandes produções de Hollywood e se distanciar do cinema autoral mais marcante da década de 1990, calcado numa certa ansiedade dos realizadores – Quentin Tarantino, Paul Thomas Anderson, Spike Lee e David Fincher, por exemplo – que se caracteriza por maneirismos visuais e narrativas explosivas. Por outro lado, havia o desejo expresso de explorar efetivamente a trajetória dos personagens em um espaço físico delimitado.
O grupo que ficou conhecido como Mumblecore apostava em produções bem pequenas (quando começaram, muitos ainda eram universitários), e numa busca incessante pelo real. Assim, eram comuns nesses filmes: supressão de trilha sonora, planos longos, sequências esticadas de diálogos, esvaziamento de um conflito central e o retrato de uma juventude apática. Ao longo dos anos, o grupo foi crescendo e se embrenhando na indústria cinematográfica. É o caso de Lena Dunham, por exemplo, que recebeu um e-mail de Judd Apatow propondo uma parceria. Ele havia assistido “Mobília Mínima” (Lena Dunham, 2010) e se encantou com o filme. Juntos, criaram a série “Girls”, produção marcante da HBO na década passada.
Alguns membros do grupo foram para o cinema: os anfetaminados irmãos Safdie fizeram os bem recebidos “Bom Comportamento” (2017) e “Jóias Brutas” (2019). Barry Jenkins, mais afeito ao melodrama, ganhou o Óscar por “Moonlight” (2016). Greta Gerwig, que está prestes a lançar o arrasa-quarteirão “Barbie”, chamou a atenção por ter levado o Mumblecore para os grandes estúdios com “Lady Bird” (2017).
No entanto, de maneira geral, o grupo ficou marcado por não ter tantas oportunidades nas produções mainstream. Numa época em que o streaming ainda não havia se estabelecido completamente no mercado audiovisual, os festivais de cinema independentes se tornaram a principal janela da turma. Contudo, o cenário mudou, a consolidação dos canais de streaming aconteceu e a geração Mumblecore passou a ter mais possibilidades para chegar ao público. Joe Swanberg, por exemplo, um dos mais prolíficos do grupo, fez algumas parcerias com a Netflix. Inclusive, a brilhante “Easy”, que, mesmo um tanto escondida no catálogo, impressiona quem se aventura pelas três temporadas da série que faz um belo mapeamento de diferentes personagens que vivem em Chicago.
Os irmãos Jay e Mark Duplass também se valeram das novas ferramentas de distribuição e exibição do mercado audiovisual. A dupla é uma das mais marcantes do Mumblecore por não se limitar à direção. Também atuam, roteirizam e produzem vários trabalhos, tanto os próprios como os de colegas. Com a idade avançando, é normal que não façam mais trabalhos tão radicais como no início de carreira, mas ainda mantém a postura de valorização do real.
Um dos últimos trabalhos da dupla é a produção executiva da série “Alguém em Algum Lugar” da HBO Max – além de produzir, Jay dirige alguns episódios. A segunda temporada, que encerrou recentemente, é uma progressão bem sucedida do Mumblecore. Por mais que seja menos radical em diversos aspectos, o interesse concreto pelos personagens faz lembrar os melhores momentos dos filmes juvenis do início do século XXI.
A trama é centrada em Sam (Bridget Everett) que retornou a sua cidade natal, no Kansas, após a irmã falecer. Ela é uma cantora habilidosa e as pessoas do lugarejo lembram dela como dona de um grande talento, embora ela não cante mais. Se na primeira temporada, a apresentação da personagem fica em primeiro plano, na segunda é oferecida uma possibilidade de maior aproximação com Sam porque ela já é reconhecida pelos espectadores. Dessa maneira, os novos episódios aprofundam a sensação de que “Alguém em Algum Lugar” pode durar por décadas, apenas lidando com a transformação das personagens ano após ano.
A HBO Max teve séries muito comentadas nos últimos meses: “Succession”, “The Last Of Us” e “Amor e Morte”, por exemplo – inclusive, a recém-estreada “The Idol” também veio a público cercada de muito alarde. É válido notar como os temas dessas séries são muito específicos. Seja, a luta pela sucessão de uma empresa de comunicação bilionária, seja um futuro distópico em que um vírus transforma pessoas em canibais, seja um assassinato chocante em uma pequena cidade. Nada faz parte do cotidiano comum, todas são ligadas a um tema de exceção ao que nos é corriqueiro. Por outro lado, “Alguém em Algum Lugar” é repleto de situações mundanas.
Afinal, o que importa, de fato, em “Alguém em Algum Lugar” é como Sam lida com as situações cotidianas que são impostas a ela. Nesse sentido, o personagem do melhor amigo Joel (Jeff Hiller) é magnífico. Uma figura extrovertida e incrivelmente doce – ao contrário da ácida Sam – mas que a complementa muito bem. Ver os dois em situações completamente banais é uma delícia, pois estão sempre prontos para fazerem comentários espirituosos sobre o universo que os rodeia. Se na primeira temporada eles estão criando os seus vínculos, agora já são melhores amigos desde o princípio, o que só faz bem para o desenvolvimento dos sete episódios que compõem a série.
Além de toda a diversão, os dois também compartilham as dores. Quando Sam está triste limpando o velho celeiro de seu pai e se desfazendo dos objetos que lá estão, é para Joel que liga. Por outro lado, quando Joel esconde um relacionamento de Sam, por medo do que irá pensar, eles brigam – a maior concessão que o texto faz ao conflito de um roteiro clássico – e a tristeza dos dois é imensa pois cada um perde seu porto seguro. A briga, claro, não dura mais do que um episódio, porém marca como um evento triste entre os dois os afeta.
Inclusive, o vínculo é tão forte que, até em uma diarréia eles ficam juntos, após comerem um quitute de procedência duvidosa. Cada um em sua casa, conversam pelo telefone em um momento que deveria ser isolado. Contudo, a amizade é tão sólida que até em momentos assim, eles se mantêm ligados. “Alguém em Algum Lugar” consegue ser engraçada, triste e até escatológica, sem qualquer pingo de afetação. Como se a câmera fosse somente o registro da realidade, sem impor qualquer modificação do espaço cênico.
No entanto, o evento que desenvolve a linha narrativa da temporada é o casamento do amigo deles, Fred. Sam vai cantar no casamento e Joel vai ministrar a cerimônia. Fred é um homem trans que vai casar com uma mulher cis. “Alguém em Algum Lugar” manifesta a relação do casal de maneira muito delicada, indicando os preconceitos – o da família da noiva, por exemplo –, mas exaltando uma relação apaixonada e cheia de cumplicidade. A cerimônia que acontece na fazenda de Sam, o lugar mais bonito do mundo (ao menos, no mundo dos personagens) é cercada de risadas e ternura. Há muita delicadeza em cada personagem e na forma como se relacionam, mesmo nos momentos de tensão.
A geração Mumblecore fazia filmes sobre adolescentes que poderiam estar em qualquer lugar do mundo. Um rapaz que está deitado em sua cama ouvindo música com headfones é uma cena possível de imaginar nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul ou na Bélgica. Sam também poderia ser de qualquer lugar, mas a série adiciona uma beleza quase divinal ao ambiente mundano.
De qualquer forma, a vida é assim: a gente ri, chora, se angustia, se acalma, se entendia, se diverte, deseja se mudar, deseja continuar onde está. As contradições são inerentes aos seres humanos, assim como lidar com as responsabilidades das próprias escolhas. A forma como “Alguém em Algum Lugar” consegue imputar toda essa complexidade é que a torna tão simples e tão fabulosa. Ao todo, as duas temporadas de “Alguém em Algum Lugar” são compostas por quatorze episódios de meia hora que conseguem entregar toda a verdade do mundo: todos nós somos insignificantes em comparação com o tamanho do universo e, por mais que a nossa jornada seja curta por aqui, dá para se divertir um bocado pelo caminho.
– Lucas Reis é pesquisador de cinema brasileiro. Atua como crítico de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Escreve na Revista Aurora Cine.