entrevista por Bruno Lisboa
Criada em 2017, a websérie Cena Morta tem como foco apresentar a cena hardcore/punk de Salvador e sua região metropolitana. Idealizada por Fabiano Passos, Mariana Martins, Rodrigo Gagliano e Eduardo Lima, a primeira temporada contou com 11 episódios e a participação de 11 bandas de diferentes vertentes do hardcore/punk. Seis anos depois chega e a segunda temporada em youtube.com/cenamorta.
O nome da websérie é uma expressão irônica que faz alusão a morte da cena hardcore local, mas ela está mais viva do que nunca. Trata-se de um potente registro que documenta parte da cena hardcore nordestina que, geralmente, não tem a cobertura devida da mídia tradicional e alternativa brasileira. Para a segunda temporada, foram selecionadas seis bandas que representam as cidades de Salvador e Pojuca: Dalmatans X, Lasso, Biscoito Sem Glúten, Antiprofeta, Afago e Injúria.
A produção da segunda temporada é realizada pela parceria Estopim Audiovisual e SDV Audiovisual, contando com o apoio do Estúdio Ruído Rosa, do espaço de shows Blá! Blá! Blá!, do fotógrafo Danilo Vieira, além da ajuda das próprias bandas participantes. Na conversa abaixo, os responsáveis falam sobre as motivações que levaram à criação da websérie, traçam um paralelo histórico da cena hardcore/punk baiana, contam dos desafios para a produção da segunda temporada, a falta de cobertura midiática, reacionarismo cultural, planos futuros e muito mais. Confira!
Primeiramente, gostaria de saber quais foram as motivações que levaram vocês a criar o Cena Morta?
Nós criamos o Cena Morta com o objetivo de registrar e documentar os momentos significativos da cena punk/hardcore da Bahia, que muitas vezes não foram devidamente registrados no passado. Percebemos que várias bandas importantes não tiveram a oportunidade de gravar enquanto estavam ativas, e há uma escassez de vídeos e fotos dos eventos antigos. Sentimos a necessidade de evitar que essas memórias se perdessem com o tempo e decidimos documentar de forma independente o que estava acontecendo na nossa cena local. Inicialmente, pensamos em produzir um documentário, mas percebemos que um formato de scene report seriado seria mais abrangente e tornaria o projeto mais duradouro.
Historicamente, a Bahia é um importante celeiro do rock nacional, tanto no passado quanto no presente, abrangendo diversas vertentes e subgêneros. Falando especificamente sobre a cena hardcore, poderiam traçar um panorama histórico desse gênero e quando perceberam que essa relação duradoura se estabeleceu?
A cena hardcore na Bahia passou por diferentes realidades ao longo das décadas. Em uma análise rápida, podemos observar o seguinte panorama: na década de 1980, as bandas punks predominavam, especialmente aquelas oriundas das periferias de Salvador, com uma forte vertente política. Nos anos 1990, surgiram bandas punk/hardcore de diferentes partes da cidade, resultando em uma miscelânea de estilos musicais tanto nas bandas quanto nos eventos, com um grande público abrangendo diversas vertentes do rock. De 2000 a 2010, a cena local foi bastante frutífera, com o surgimento de várias bandas importantes. Além disso, tivemos dois espaços de shows dedicados ao punk/hardcore, o Quilombo Cecília e o Espaço Insurgente. Nós, do Cena Morta, somos profundamente influenciados e motivados por esse período e pela atmosfera dessa cena. De 2010 a 2020, a nossa cena enfrentou dificuldades, o que foi um dos motivos que nos levou a iniciar o Cena Morta em 2016. A partir de 2020, enfrentamos o desafio inicial da pandemia, mas depois disso as coisas têm mostrado sinais promissores, com o surgimento de novas bandas e a abertura de um novo espaço para nossos eventos, o BláBláBlá.
Esta é a segunda temporada da websérie. Em comparação com a primeira temporada, quais foram os maiores desafios e alegrias desta nova etapa?
Na primeira temporada, tivemos uma equipe de produção maior, o que nos permitiu criar 11 episódios, filmados ao longo de 3 dias, com várias câmeras e mais pessoas envolvidas na pós-produção. Na segunda temporada, contamos com uma equipe de produção bastante reduzida, gravando todas as bandas em um único dia com apenas uma câmera. Um dos maiores desafios foi produzir algo de tamanho significativo sem recursos financeiros substanciais e manter o ânimo durante todo o processo. A nossa maior alegria é o projeto continuar existindo apesar de todas as dificuldades.
Por mais que a cena hardcore nordestina seja rica de bons exemplos são raras as bandas que chegam aos ouvidos de outras regiões através da mídia tradicional. Por que vocês acham que há um tratamento, visivelmente, diferente com os artistas da região?
Porque o Nordeste é o gueto do gueto. Os olhos do eixo dificilmente se voltam para essa região, e piora ainda mais quando se fala do Norte do país. Há uma verdadeira segregação e, infelizmente, a cena hardcore e a cena independente, no geral não fogem dessa lógica. É algo que está enraizado em nosso país, e que já deveria estar sendo mudado, ao menos dentro da cena hardcore. Se você analisar bem, qual outra cena se não a nossa (nordestina) produziu uma websérie, scene report, e com qualidade? Mas você dificilmente vê as pessoas de outras cenas, de outros estados apoiando ou comentando sobre, acaba ficando algo mais regional mesmo, porque se não for nós por nós mesmo não vira.
Em geral o rock, antes um instrumento revolucionário, foi nos últimos anos sendo cooptado pela ótica da extrema direita, fazendo com que o discurso reacionário e omissão política façam parte da cena. Como vocês veem esse cenário e qual a alternativa para combater essa visão?
Cara, na verdade a extrema direita sempre fez isso. Se infiltrou em sindicatos e no proletariado para incutir a ideia de que imigrantes tomavam empregos, aproveitou uma juventude cheia de ódio e rebeldia, como os skinheads tradicionais para cooptar, em 2013 foram às ruas para puxar pessoas para seu lado, sempre com discursos sutis que a primeira vista nem são tão escrotos. Então, nem acho que esse processo de cooptação foi algo dos últimos anos. Dito isso, o erro não são dos reaças. Eles fazem o que tem que ser feito, trabalho de base. Se o que se chama de esquerda não faz isso, deixa lacunas alguém vai ocupar. Além disso, se esse tipo de pessoa tem ingressado, com livre acesso para inclusive despejar suas merdas ideológicas, é porque alguém está deixando. A alternativa para combater é o próprio combate, aliado ao trabalho de base, a demonstrar que o nosso modo de ver o mundo é o mais correto e menos escroto, mas se você ao invés disso propaga que hardcore não é política, se você só se preocupa em ter um style legal e/ou está mais preocupado com riffs legais, cada vez mais a política irá se afastar do hardcore e as lacunas vão sendo deixadas para quem quer ocupar.
O Cena Morta é exemplar, pois cumpre a nobre missão de trazer ao público iniciativas musicais do mercado independente. Para além do vocês quais outros trabalhos vocês recomendam para que possamos nos aprofundar ainda mais no que acontece por aí?
Falando do Nordeste, temos diversas produções organizadas ou co organizadas pelo selo Tocaia, de Itabuna, sul da Bahia; o coletivo Minas Que Fortalecem, que com o Tocaia produziu o lançamento da coletânea “Baianas Para O Mundo Ouvir”, juntamente com uma ação social para famílias vítimas da chuva aqui na Bahia; o Oganpazan, que é um site que produz matérias sobre música em geral, mas que dá uma atenção bem acima da média pro punk hardcore local e não local também. Em Recife tem a Rede Periférica Antifascista que tá a todo vapor, produzindo bastante coisa, com sede própria e tudo mais.
Por fim, quais são os planos futuros do Cena Morta?
A ideia é se manter ativo, mas de forma esporádica. Quando for conveniente, mas principalmente quando for preciso. Foi assim na segunda temporada da websérie. Não era conveniente, mas era preciso. Nós pegamos 5 anos após a primeira e nos demos conta de que era um bom intervalo para se fazer um novo recorte da cena. E assim foi feito. As idéias, vontades e necessidades vão surgindo e a gente busca formas de viabilizar o processo, seja de forma totalmente autônoma e independente ou contando com ajuda de terceiros.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014.