Entrevista: Manoel Magalhães fala de “Abreu/Prazeres”, documentário poético que terá quatro exibições no In-Edit Brasil 2023

entrevista por Marcelo Costa

A ideia inicial da dupla de diretores Bruno Vouzella e Manoel Magalhães era a de fazer uma série de televisão com o maestro Felipe Prazeres, um dos mais conceituados músicos de sua geração, regente da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, “mostrando os instrumentos musicais, a música produzida nos lugares”, conta Manoel, mas, na pesquisa para o episódio piloto, eles se depararam com um tesouro, Sergio Abreu, violonista renomado que, ao lado do irmão no Duo Abreu, fez diversas turnês festejadas pela Europa, Estados Unidos e Austrália da segunda metade dos anos 1960 até o começo dos anos 1980, quando decidiu abandonar completamente o showbusiness para se dedicar a outra paixão: a luthieria.

Em certo momento do envolvente documentário “Abreu/Prazeres” (2023), que narra o encontro do maestro com o luthier em 2019, Sergio narra o que o motivou a abandonar a carreira de concertista (o cansaço da estafante e nem sempre gloriosa vida de músico na estrada) e se transformar em luthier (a busca quase matemática de entender como a construção de um instrumento – com atenção dedicada à cada uma de suas partes – influencia na alquimia do resultado sonoro na mão do músico), e esses quase que imperceptíveis microssegundos soam como poesia na maneira que o roteiro apresenta uma carreira brilhante praticamente desconhecida pela grande massa alternada com a humildade de quem aceitou que a vida é o que você quer fazer dela.

Falecido em janeiro de 2023, aos 74 anos, Sergio Abreu era “um artista que viveu a elevação conjugada à humildade, seja tocando ou construindo violões, ele foi único. Um perfeccionista apaixonante”, define Manoel, que, provavelmente como muitos dos espectadores de “Abreu/Prazeres”, que terá quatro exibições no In-Edit Brasil 2023 (uma delas com participação dos diretores), não tinha ideia da grandiosidade da obra de Sergio: “Ficamos enlouquecidos… como ele foi um grande artista de renome internacional, que transitou pelas principais casas de concerto, e a gente era quase totalmente ignorante em relação a isso”, assume. Na conversa abaixo, Manoel fala sobre Sergio, a produção de “Abreu/Prazeres” e conta ainda novidades que vem por aí de sua produtora, a 8 Bics – também responsável pelo elogiado “Nada pode parar os Autoramas“.

Sergio Abreu era uma lenda, um ícone dentro de sua área de trabalho, a luthieria, que é uma área fantástica, mas não tão popular – além de ter uma carreira fantástica como músico. Dai eu queria saber de vocês como ele virou tema desse documentário? Como foi o estalo de “aqui tem uma história para ser contada”?
A nossa ideia inicial era a de fazer uma série de televisão com o Felipe Prazeres, no estilo do Anthony Bourdain, mas mostrando os instrumentos musicais, a música produzida nos lugares. É algo que ainda acreditamos que pode ser muito instigante por conta do carisma e conhecimento musical dele. Aí na pesquisa para o episódio piloto chegamos ao nome do Sérgio Abreu pela excelência na fabricação de violões. No episódio também teria o João Bosco, o Marcel Powell, pessoas ligadas ao violão brasileiro. Só que entrando no mundo do Sérgio Abreu ficamos enlouquecidos pelo quanto ele tocou violão, como foi um grande artista de renome internacional, que transitou pelas principais casas de concerto, e a gente era quase totalmente ignorante em relação a isso. Como estamos o tempo todo tentando buscar narrativas contra-hegemônicas, independentes, de pessoas que construíram sua trajetória de forma não usual, encontrar o Sérgio foi encontrar um pote de ouro. Um artista que viveu a elevação conjugada à humildade, seja tocando ou construindo violões, ele foi único. Um perfeccionista apaixonante. Acho que foi muita sorte poder contar um pouco da história de um dos maiores músicos brasileiros e ouvir o que ele tinha a dizer, ainda mais agora que ele nos deixou.

Fiquei curioso pela abordagem inicial de vocês com o Sergio. Em certo momento do documentário ele conta que um dos motivos que o fez desistir da carreira de músico era, justamente, dar entrevistas. Como foi faze-lo dar essa entrevista?
Foi surpreendentemente tranquilo. Temos um produtor que consegue esse tipo de milagre, o Daniel Barros. Tanto que quando o Felipe chega ao ateliê, no início do filme, o Sérgio pergunta: você é o Daniel? Só por telefone o contato entre os dois já facilitou tudo. Ele nos recebeu muito bem e queríamos deixar alguns trechos disso explícitos na montagem. Acho que é um dos raros registros do Sérgio Abreu falando do ofício de construtor e dos anos de concertista.

Dessa parte de concertista, há bastante material de arquivo em “Abreu/Prazeres”. Como foi se deparar com esse material, encontrá-los? Porque são, sem dúvida, materiais sensacionais que ampliaram decididamente o resultado do documentário…
Pesquisar o material de arquivo foi parte do processo de ficarmos maravilhados com o talento do Sérgio. Foi o momento mais divertido. O Felipe toca no ponto do YouTube com ele porque nós não parávamos de pesquisar vídeos antigos. Muita coisa infelizmente não tivemos acesso porque estão em acervos internacionais. Acredito que o Duo Abreu mereça ainda um longa-metragem com uma pesquisa caprichada desse material que está espalhado pelo mundo. Tentamos muito conseguir registros do Sérgio tocando com o Yehudi Menuhin, mas mesmo com algumas respostas positivas, não chegou a tempo de entrar no filme. As imagens do violão Hermann Hauser que o Andrés Segovia usava, e está hoje no Metropolitan Museum of Art, nós não tivemos também a autorização para usar.

Vocês começaram a rodar o filme em 2019 e estão apresentando-o agora, no In-Edit Brasil 2023. Sérgio Abreu nos deixou em janeiro de 2023 e vocês chegaram a mostrar algum corte a ele? Pergunto porque em certo momento ele comenta algo do tipo “tomara que vocês consigam aproveitar algo (dessa conversa)” e tem tanta coisa legal e interessante nela… acho que ele se surpreenderia…
Infelizmente não. Com a pandemia deixamos o projeto da série em compasso de espera e o material ficou parado. Em janeiro eu estava lendo o jornal e dei de cara com a notícia do falecimento dele. Fiquei triste e logo escrevi para o Bruno Vouzella (meu parceiro na direção dos projetos). Inicialmente só para lamentar o ocorrido, mas logo achamos que era fundamental transformar o que tínhamos filmado num registro da visita do Felipe a ele. Quase imediatamente veio a ideia de fazer alusão ao “Hitchcock/Truffaut” no título, uma conversa entre artistas. Foi uma forma de homenagear o Sérgio e celebrar o encontro de duas gerações da música de concerto no Brasil.

Acho que todo mundo que assistir à “Abreu/Prazeres” ficará curioso: quanto custava um violão feito por ele?
Agora que ele faleceu fica até mais difícil responder a essa pergunta. No momento, nem se encontra facilmente na internet violões usados disponíveis para compra. E quando encontra, as pessoas não divulgam o preço. O último que eu vi custava por volta de 7 mil dólares em um site internacional, mas acho que agora deve estar mais caro, já que nunca mais será produzido. O modelo de fábrica que ele criou para a Giannini em 1987, que não é artesanal, está custando cerca de 15 mil reais no Mercado Livre.

A produtora 8-bics se destacou bastante com o documentário “Nada pode parar os Autoramas“, que foi exibido no In-Edit Brasil e, também, em outros festivais. “Abreu/Prazeres” é o segundo, certo? O que vem mais por aí? O que vocês podem adiantar pra gente?
Sim, é o segundo. Atualmente tocamos vários projetos. Um longa-metragem a respeito do selo Plug, da finada (gravadora) RCA, que revelou bandas como DeFalla e Picassos Falsos. Esse filme é uma parceria com o (jornalista e músico) Marco Antonio Barbosa e deve ficar pronto no começo de 2024. Temos também uma série de televisão que conta a história da música independente no Brasil, que é um desdobramento do filme dos Autoramas. Está programado também um outro longa-metragem a respeito da cena carioca dos anos 2000, que eu vivi ativamente e gostaria muito de retratar. Tenho a intenção de fazer também um filme cobrindo de perto a música eletrônica produzida atualmente nas comunidades aqui do Rio de Janeiro, que é meu tema de pesquisa na USP. Vamos lançar muita coisa nos próximos anos (fiquem atentos aqui), sempre com esse viés de narrativas que estão fora do que se aborda na indústria da música geralmente, tentando fugir do cânone e atuar politicamente na preservação de outras histórias e artistas.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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