entrevista por Homero Pivotto Jr.
O mineiro Jairo Guedz é devoto convicto do metal extremo, daqueles que coloca death e thrash para dormir — algo que, segundo o próprio artista, o acalma. Contudo, o guitarrista que gravou os dois primeiros lançamentos do Sepultura (“Bestial Devastation”, de 1985, e “Morbid Visions”, de 1986) nunca seguiu o mandamento exclusivista da bíblia metálica de adorar só um tipo de som. Tanto que, agora, deu início a uma nova empreitada musical que mantém o peso, mas agrega melodia e bateria eletrônica numa musicalidade envolta em atmosfera obscura: o The Darkness Foundation, em que é responsável pela guitarra, baixo e violão.
“No final dos anos 1980 eu já era fã de U2, The Mission, Midnight Oil e Sisters of Mercy. Tinha o Depeche Mode também… A partir disso comecei a evoluir nesse meio e pesquisar essa linha de som — junto com o death metal, que não apenas foi a minha escola, como eu, o Max, o Iggor e o Paulo estávamos ali no movimento e somos considerados até fundadores desse death metal. Mas no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, eu já estava muito apaixonado por esse outro lado, do pop dark que eu chamo, o pós-punk. Chegou um momento no qual eu hoje, talvez pela minha idade, talvez por achar que tenho pouco tempo, falei: ‘cara, preciso colocar tudo que eu sei fazer, que eu gosto, para fora.’ Botar a cara à tapa, nem que receba críticas negativas”, confessa o jovem senhor, responsável ainda pelos riffs na banda The Troops of Doom.
Além dos grupos já citados, o músico também teve passagens pelo Overdose e Eminence, além de tocar em um tributo ao Metallica. Jairo ainda integrou o The Mist, onde conheceu os companheiros com quem montou o The Darkness Foundation, Fábio Andrey (voz, guitarra, baixo e programação/samplers) e Chris Salles (bateria e percussão). Como se percebe, ele nunca perdeu a fé na música. E se a religião é tema recorrente em boa parte de suas bandas, o novo projeto amplia o escopo, contemplando assuntos como os dramas humanos. Ainda assim, o diabo da escolha é ardiloso, e o primeiro single, ‘Pray’ — com uma pegada industrial, que remete a nomes como Ministry e Paradise Lost circa segunda metade dos 1990 —, esbarra na questão sobre a existência de uma divindade, um único ser superior.
“É até uma autoconfidência nessa música que comecei a escrever junto com os caras da banda pensando na minha própria realidade. Porque sou ateu desde a juventude. Sempre falo que sou um ateu inconformado, estou todos os dias em busca de Deus. Só não encontro, mas estou sempre procurando. Tem quem não seja ateu, que é evangélico, por exemplo, mas que também não encontra Deus. Ou pelo menos faz uma força danada para ser o contrário do que prega. Na ‘Pray’ falamos sobre isso. A letra diz: ‘eu rezo todo dia antes de morrer — o que significa que eu oro todos os dias em que estou vivo —, mas eu não te encontro, você não esta lá. Eu fico olhando a escuridão e não vejo sua luz aparecer.’ Mas as outras músicas nossas, que pretendemos lançar até o final do ano, depois gravar um CD, tem assuntos como amor, perda de alguém que se amava e muitos outros temas que nos interessam”, pontua Jairo.
Na entrevista a seguir, Jairo “Tormentor” fala sobre sonoridades dark, literatura, leitura, família, formação acadêmica, escolhas e autosabotagem. Ele também comenta o relançamento dos dois primeiros registros do Sepultura, que ganharam regravação dos irmãos Cavalera — trampo com o qual ele garante não ter envolvimento. O papo é longo, mas bom demais. Se preferir ver/ouvir a conversa na integra, só dar play aqui no vídeo abaixo.
Dark é uma expressão meio guarda-chuva que contempla esse peso que vai além do som no universo musical. Algo que remete muito ao pós-punk, à estética sonora e visual dos 1980, que depois foi ganhando novas roupagens com o passar do tempo. Como esse estilo ganhou a atenção daquele Jairo metaleiro do Sepultura?
É louco isso, porque as pessoas esperam que a gente esteja dentro de uma caixa mesmo. Meus fãs devem achar: “pô, o Jairo só gosta de metal, né?” Não é verdade! Antes de eu gostar de metal, do próprio death metal ou do heavy metal, eu já era um fã assíduo do blues, principalmente daquela linha mais do negro americano do início do século passado. Aquela coisa mais tosca mesmo. Não digo blues do Eric Clapton, que eu gosto também, que é blues de branco que a gente fala. Me refiro ao blues negro americano, que é um lamento, uma história, uma revolução mesmo. Isso veio antes do que o próprio heavy metal, que apareceu quando conheci o Kiss, por volta de 1979/1980. Aí eu comecei a curtir esse tipo de rock e fui gostando das coisas mais pesadas. Mas é claro que no meio desse caminho, dessa busca por novos tipos de sonoridades dentro do estilo do heavy metal, a gente esbarrava num caldeirão que estava fervilhando junto com heavy metal, que era o da música punk. Dos punks de Londres e de Manchester, na Inglaterra. Então, do mesmo caldeirão que veio o Black Sabbath e o Led Zeppelin, vieram os punks. E a partir dali a gente começou a ouvir. Quando falo a gente, sou eu e alguns amigos daquela época dos anos 1980, inclusive o Max e o Iggor Cavalera — que gostavam muito de Discharge, GBH e The Clash. E muita coisa eu aproveitei para mim. Dentre elas, Ramones (uma banda punk que já tem um pouco de rock and roll e que é mais comercial perto dos outros) e nomes do pós-punk, que é uma música dark misturada com pop. É um lance mais depressivo, obscuro e melancólico. No final dos anos 1980 eu já era fã de bandas assim, escutava U2, The Mission, Midnight Oil e Sisters of Mercy. Tinha o Depeche Mode também… A partir disso comecei a evoluir nesse meio e pesquisar essa linha de som que gosto pra caramba, sempre gostei — junto com o death metal, que não apenas foi a minha escola, como eu, o Max, o Iggor e o Paulo estávamos ali no movimento e somos considerados até fundadores desse death metal. A gente ajudou na criação desse novo estilo por 1984/85. Mas no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, eu já estava muito apaixonado por esse outro lado, do pop dark que eu chamo, de música dark, o pós-punk. Comecei a gostar de Sisters of Mercy e artistas do gênero. Logo conheci David Bowie e me apaixonei pela obra dele, bem como do Ministry — que vem daquela história do eletrônico e do sampler —, que também aprecio até hoje. Chegou um momento no qual eu hoje, talvez pela minha idade, por achar que tenho pouco tempo, falei: “cara, preciso colocar tudo que eu sei fazer, que eu gosto, para fora.” Botar a cara à tapa mesmo, nem que receba críticas até negativas. Apesar de que, por enquanto, isso não aconteceu em relação ao The Darkness Foundation. Tirei do papel, da gaveta, coisas que eu já gostava junto com dois outros amigos que também sempre curtiram esse mesmo estilo. Pensamos: vamos fazer algo que a gente possa brincar um pouco com essa coisa do dark pop, do Depeche Mode e etc, ao mesmo tempo em que a gente possa ter um pouco de peso também. E acho que conseguimos isso nesse primeiro single.
Quero falar um pouco mais sobre essa questão do dark, do pós-punk. Antes, aproveito a deixa de um lance que tu falaste sobre te colocarem numa caixinha. Eu, como jovenzinho dos anos 1990, sempre tive essa predileção por vários estilos dentro do rock. Só que, quando se é muito novo, a gente meio que tenta seguir a cartilha, e a do metal era um tanto hermética, cheia de regras. Esse lado mais xiita do metal te incomodava?
Sim, sempre. Nunca curti isso. Sou metal 24 horas por dia. Minha esposa, que é do sertanejo, não tem nada a ver com metal, e quando a gente casou, ela não conhecia nem Sepultura. Já tinha ouvido falar, mas nem sabia do que se tratava. Eu sempre coloco fone e escuto música muito extrema pra dormir, me acalma. Por incrível que pareça, gosto de escutar death, thrash e metal industrial. Mas isso mais para relaxar. Nunca fui fã dessa ideia fechada. É muito retrógrada essa coisa de estar dentro de uma caixinha, de “você precisa ser assim”. A vida não é desse jeito. Muito da riqueza e das coisas que a gente coloca no death metal vem de outras fontes, de outros estilos. Ele só tem uma pitada diferente, uma entortada. Tudo se transforma. É aquela famosa frase: nada se cria, tudo se transforma, se copia. O death metal não foge a essa regra. É engraçado porque sempre olhei para os meus ídolos, tipo James Hetfield, do Metallica, e pensava: “esse cara não escuta porrada o dia inteiro”. Tipo, ele faz música pesada, mas isso não quer dizer que ele só ouve som pesado. Sempre me interessei saber o que ele gostava e descobri que ele é fã de Willie Nelson, que ele gosta daquele famoso country americano. Também é uma música um pouco machista, careta, que tem suas regrinhas ali. Mas assim: eu sempre estive aberto a outros estilos para escutar, entender e estudar. Para ver se é bom, e então dar minha opinião depois. Acho que isso só me ajudou, pois consegui trazer muitos elementos para mim desde a música clássica, o blues e passando pelo heavy metal.
Tu mencionaste o Sisters of Mercy. O Andrew Eldritch, vocal da banda, disse em entrevistas recentes que tem notado receptividade do público metaleiro. Pego o exemplo pontual do Sisters, mas, de maneira geral, por que acredita que rola esse a identificação da turma do metal com bandas dessa pegada mais dark? E pensa que o povo que aprecia metal está mais aberto atualmente?
Há uns 20 ou 30 anos, tudo isso pertencia a nichos que eram muito impenetráveis. Se você era de um, naturalmente nem conheceria outros ou teria outras amizades, tampouco frequentaria os bares noturnos em que aquela galera do outro nicho frequentava. Tudo era muito separado. Tinha a casa de show onde se fazia show de heavy metal, o bar do pop e o bar do não sei o que. A Rua Augusta, em São Paulo, era da galera alternativa, não ia metaleiro. Com o advento da internet, dessa abertura, a nossa vida está aberta e é um livro para todo mundo ver. A gente pode se expor cada vez mais, tudo se conectou com muito mais facilidade. Muitas pessoas que estão descobrindo Sisters of Mercy hoje não os conheciam naquela época. Uma turma que até nasceu bem depois que eles já tinham parado as atividades e, ao descobrir, é mais do que natural que goste. Vejo isso acontecer até na minha família, de eu botar Michael Jackson, por exemplo, e meu filho mais novo perguntar se era lançamento de agora. E eu digo: “Lançou agora não, filho”. Na música, na literatura e na pintura, as coisas eram muito boas. Não estou sendo saudosista ou querendo dizer que tudo era melhor naquela época. Tem muita coisa boa hoje. Mesmo com a tecnologia, temos surpresas agradáveis e outras desagradáveis. A arte em geral, desde que o homem descobriu a forma de se expressar, ela é absurdamente bela. E a música dos anos 1980 está nessa régua nivelada por cima. Posso até ser cancelado, mas a música dos anos 2000 para cá, a média dela é baixa. Viemos de uma riqueza dos anos 1950, 1960 e 1970. Então, tem o rock do Brasil, por exemplo, que hoje praticamente não existe. Tinha Titãs, Ira!, Blitz e Barão Vermelho e outros tantos. É claro que hoje tem, mas estão aí fazendo um showzinho aqui outro ali, não é mais o que era. O mercado não é mais o mesmo. O rock era muito rico, muito bacana. Quem nasceu depois disso ou não prestou atenção enquanto estava lá, hoje está dando mais valor. Os anos 1980 e 1990 têm sido uma boa opção para quem não está satisfeito com o que está vendo agora. O pessoal do metal se identifica muito com bandas como Sisters of Mercy, porque tem essa coisa da obscuridade, melancólica. O metal já tem isso, mas é muito teatral, tipo: “ah, aqui ó, demônio, capeta”. O Sisters of Mercy, o The Mission, o Midnight Oil e até o U2 no começo de carreira, têm uma poesia para contar essa história. Eles têm uma leveza, algo que fica mais obscuro ainda. Até a roupa, o show que é bem escuro, tudo é menos exposto. Isso é muito legal. Então sim, acho que ele (Andrew Eldritch) tem razão, o pessoal do metal está abraçando mais eles hoje. Também tem uma galera, e eu tenho visto isso com o The Troops of Doom, com criança nos shows de death metal e de metal, nos festivais. Criança de 8/9 anos no ombro do pai, com camisa do Iron Maiden, do Metallica, do Ozzy. Isso é muito bom porque a gente vê que está renovando, não são os velhos caciques que estão ali curtindo seu som em todos os shows. Deve ser mais ou menos isso que está acontecendo com o pessoal do Sisters of Mercy e eles podem estar espantados.
Tocaste num ponto interessante que é a forma de contar a história, liricamente. Isso é forte no pós-punk, esse cuidado que remete à literatura. Pega The Mission e Bauhaus, por exemplo, que são bandas que dão uma enfeitada legal nas letras, que carregam, mesmo que indiretamente, referências bibliográficas. Tu costumas ler bastante?
Sou apaixonado por leitura. Tenho mania de dar meus livros para os outros quando acabo ou leio duas vezes. Primeiro aniversário que aparece eu dou para pessoa livro, acredito que é o presente mais foda do mundo. É meio que a mesma coisa que a gente faz no Instagram quando vê algo legal, que é marcar amigo porque ele merece ver aquilo. Com livro, você entrega para a pessoa uma coisa que você acredita, que mudou de alguma forma sua vida, acrescentou algo. Eu leio muito, só tenho uma mania: sou meio TDH, então não consigo ler um livro só de cabo a rabo. Eu leio dois ou três ao mesmo tempo. Estou lendo um numa noite, aí na outra pego outro e deixo aquele anterior fechado, daqui a três dias eu volto. Geralmente, escolho três assuntos bem diferentes. Às vezes no meio de livros muito complexos ou muito densos, que me levam pensar demais a ponto de eu não consegui dormir direito, coloco um livro bobinho no meio. Uma história nada a ver, uma ficção científica, mas estou sempre lendo. Agora estou mais agarrado nesse livro aqui da minha cabeceira: “A Guerra das Salamandras”, de Karel Capek. É fantástico! É uma obra antiga, acho que de 1938 (na verdade é de 1936), que é um tapa na cara dos colonizadores dos nossos dois últimos séculos. Tanto França, Inglaterra, Portugal etc…. Toda aquela história sobre colonização, não dos livros de história, mas da verdade. Sobre como esses colonizadores agem em relação a continentes como África e países pequenos do Oriente. E não é chato, é uma historinha de ficção científica onde o cara está ali nas entrelinhas jogando essa merda no ventilador da colonização.
Como pai, e como artista que lida constantemente com o público mais jovem, tem a percepção de que as novas gerações leem menos?
Além de pai, sou avô. Meu neto Francisco tem seis anos, meu filho Igor, mais velho, tem 34, e o outro mais novo tem 28. Tenho ainda filhos tortos do meu atual casamento, que ganhei de presente da vida, um com 21 anos e uma filha com 14. Nenhum dos meus dois filhos naturais foram para música, ambos foram para o futebol. Eu odeio futebol. E posso dizer que essa geração dos meus filhos para baixo não tem costume de literatura de jeito nenhum, cara. Nem o interesse de aproveitar a tecnologia, tipo comprar livro no Kindle, não vejo nessa galera. Nem ler matéria. E tem ainda gente da minha geração que só lê título (de reportagem) e já sai tirando conclusão. Depois dos dois pontos do título ninguém sabe nada. O povo lê até a página dois do livro e já fala se é ruim ou bom. Infelizmente isso não é algo que está atrelado só a literatura. Essa característica está em tudo, nos estudos em geral, nas notícias de televisão e até na forma como as pessoas estão interagindo entre elas. É tão fácil hoje as pessoas falarem que amam um amigo que conheceram quinta-feira passada. Eu vejo meninada aí de 16/18 anos dizendo que o melhor amiga(o) é alguém que tiveram o primeiro contato há 15 dias. Existe uma pressa em resumir a experiência.
Comentaste que, nessa altura da vida, quer mais é materializar tuas ideias sem se preocupar com aprovação. Por que colocar em prática neste momento um projeto como o The Darkness Foundation, com dois músicos amigos que já tocaram no The Mist (banda da qual Jairo fez parte de 1989 a 1996 e entre 2018 e 2020)?
São várias coisas. Partiu de mim essa coisa de querer fazer, do convite de chamar a galera. O Fábio, nosso vocal, mora em Paris. Eu já passo essa dificuldade com o The Troops of Doom, pois cada integrante mora em um lugar do Brasil. Mas tudo bem, pois hoje com a tecnologia se consegue dar um jeito pra ensaiar, produzir tudo online. Com o The Darkness Foundation fizemos música, videoclipe e até foto de banda juntos sem nunca termos nos encontrado. Eu não faria isso em outros tempos. O que aconteceu foi que juntou essa coisa da idade mesmo com outros fatores. Não falo como fatalidade, porque todo dia tenho exemplos que me levam a pensar ao contrário, vendo músicos maravilhosos de bandas de punk/hardcore, rock, metal e blues tocando com mais de 70 anos.
O Charlie Harper, do UK Subs, fez 79 anos recentemente.
É lindo isso, né? Não posso achar que é o fim. Mas cheguei num ponto da minha vida, não é nem da minha idade, mas da maturidade, em que já consigo agora talvez acreditar mais naquilo que eu faço. Tenho mais tranquilidade em expor minhas ideias, minhas criações. Não só na música. Tenho escrito bastante, anotado muita coisa, pois tenho muita vontade de entrar na literatura também — até por ser uma paixão minha. Eu sempre falava isso com a minha mãe nos anos 1980, na época em que peguei essa mania de ler dela. Ela dizia que eu escrevia bem desde novo. Acho que, das artes, a literatura é a mais difícil pra mim. É onde, eu acho, o criador ou artista se expõe mais. Na música consigo me colocar de uma forma metafórica, posso me esconder atrás de algum personagem de uma forma tranquila. Subo no palco, visto a minha roupa, encarno o personagem e está de boa. Se for fazer um videoclipe, um filme, também. Pintura da mesma forma. Só que a literatura, para mim, sempre pegou pesado nesse sentido. Sempre pensei que não conseguiria me esconder atrás de um livro meu. Creio que, agora, que estou tomando coragem, pretendo um dia entrar nessa área da literatura sem muita expectativa. É só uma questão de querer também colocar isso para fora. O The Darkness Foundation foi assim. Eu já estava com o The Troops of Doom engatilhado, trabalhando para caramba, me ocupando grande parte dos dias com viagens e outros afazeres, trabalhando com a galera da Europa e dos Estados Unidos para trilhar um caminho, um futuro bacana. Aí surgiu, no meio disso, a ideia de fazer The Darkness Foundation com dois amigos músicos que já tocaram comigo, que sei terem as mesmas influências do pop, do dark e do pós-punk. Eles toparam, e eu falei pra gente fazer e curtir de uma forma leve, gostosa e sem muita neura.
Disseste que hoje te sentes mais à vontade com as próprias criações, em se expressar de diferentes maneiras artísticas. Consideras, em algum momento, ter se autossabotado?
Em muitos, não foram em poucos! Esse fantasma do autossabotador sempre esteve comigo. Na verdade, até hoje eu tenho que trabalhar com ele, ou trabalhar sabendo que ele está comigo. Tento manter ele sempre adormecido, porque é muito mais fácil você não desenvolver nada. O ser humano meio que evoluiu para ficar deitado no sofá, é preguiçoso. Raras cabeças que pensam vão correr atrás, fazer as coisas. A maioria das pessoas querem deixar pra depois. O homem, figura masculina, é ainda pior. A mulher é mais elétrica, quer resolver para ontem. Vejo isso pela minha esposa, mãe e irmãs, por irmãs de amigos também. Elas querem resolver as coisas, e a gente não. Aí é normal essa autossabotagem.
O nome The Darkness Foundation surgiu de onde?
Eu tinha essa ideia de fazer alguma coisa obscura, de fundação. Os caras sugeriram várias opções, tipo quando você vai abrir uma empresa. Eu queria mesmo esse lance da fundação, principalmente por causa da Fundação Wayne (Batman), da City Corp (Robocop). Um lance meio de empresa que tem estratégia e poder que está acima da política, do bem ou do mal. Falei pra fazermos um nome que fosse meio fundação da escuridão, que é base, que traz ideia de melancolia, da coisa do sofrimento, da dúvida. Eu queria sair do tema deus e o diabo, religião. Deus já tem esse papel que é muito bem fundado, muita gente estuda para falar sobre isso. Toda metáfora que se usa em torno disso, para falar da igreja, nessa banda queríamos fugir totalmente. A ideia foi trabalhar mais com o sofrimento humano mesmo, que é mais real. Mais da filosofia humana também. O primeiro single, ‘Pray’, esbarra na religião. É até uma autoconfidência nessa música que comecei a escrever junto com os caras da banda pensando muito na minha própria realidade. Porque sou ateu desde a juventude. E sempre falo que sou um ateu inconformado, estou todos os dias em busca de Deus. Só não encontro, mas estou sempre procurando. Tem quem não seja ateu, que é evangélico, por exemplo, mas que também não encontra Deus. Ou pelo menos faz uma força danada para ser o contrário do que prega. Na ‘Pray’ falamos sobre isso. A letra diz: “eu rezo todo dia antes de morrer — o que significa que eu oro todos os dias em que estou vivo —, mas eu não te encontro, você não esta lá. Eu fico olhando a escuridão e não vejo sua luz aparecer”. Mas as outras músicas nossas, que pretendemos lançar até o final do ano, depois gravar um CD, tem assuntos como amor, perda de alguém que se amava e muitos outros temas que nos interessam.
A ‘Pray’ tem uma pegada industrial, é pesada. Lembrou algo de Paradise Lost do fim dos anos 1990, que tem esse viés melancólico e melódico. É um som que tem obscuridade, mas que soa como feito por quem gosta de música pesada. Tem uma espécie de assinatura banger. E isso me lembra tua entrevista para o Amplifica, do Rafael Bittencourt (Angra), em que tu disseste que pra fazer riff de metal é preciso “maldade”. Como isso se aplica na criação de um som do The Darkness Foundation?
Posso falar por mim: quando eu componho, não me forço a nada, no sentido de sair da minha concepção das coisas, da música e das minhas influências. Tipo: fazer uma coisa que nunca fiz e que não conheço. Eu não conseguiria compor um chorinho, por exemplo, nem uma valsa ou um funk. Falo desse funk atual, o funk dos anos 70 eu até consigo. Gosto muito de James Brown, e sei que eu conseguiria fazer alguma coisa parecida, mas muito longe dele. No caso do The Darkness Foundation eu não estou fugindo totalmente das minhas raízes. Estou simplesmente pegando uma parte delas que ainda não veio à tona nas minhas obras ou nas bandas em que eu toquei. Muito porque o mote dessas bandas era outro, era thrash metal ou death metal. Por exemplo, no The Troops of Doom é muito bem definida nossa linha de composição: é um death com pouco de thrash dos anos 1980. A gente nunca vai querer soar moderno demais. Gostamos de fazer o que nos propomos e aquilo sai naturalmente fácil. Para o The Darkness Foundation também não há esforço, de não saber o que fazer, de querer soar de um jeito e não conseguir. O que fazemos no The Darkness Foundation que é engraçado é colocar todas as nossas influências, tudo que a gente quer. “Vamos fazer uma música com esse piano, com uma pegada meio Depeche Mode”. Aí o outro diz, “ah, sei como é”. A gente compõe os sintetizadores, a bateria e eu coloco uma guitarra. No momento de pôr a guitarra, ela vem do metal. Eu não consigo pensar como o guitarrista do Depeche Mode, eu penso como o do Slayer. Preciso tomar cuidado com isso também para não ficar uma coisa feia. Então, eu simplesmente giro uma chavinha na minha cabeça em que eu consigo fazer aquilo com peso, mas ao mesmo tempo sem copiar o que eu já faço naturalmente, que é o death metal. Eu exijo um pouco mais de mim para compor com o The Darkness Foundation, assim como o Fábio e o Cristiano. O peso ali também tem a ver com o fato de todos termos feito parte do The Mist no final da década de 1990. Foi eu e o Chris que compomos o “Gottverlassen” (1995), que é o último full The Mist, e ele já tem uma pegada industrial. Não tanto quanto o “Ashes to Ashes, Dust to Dust” (1993), mas tem, também é um trio, muito mais arrastado e pesado. O Fábio fez turnê com a gente desse disco, como segundo guitarrista. A gente fez muita coisa juntos e chegou a compor — não para o The Mist, pois o grupo acabou naquela época, por 1997/1998. Logo, é natural pra nós fazermos algo que pegue um pouco desse lado pop do dark, do pós-punk, e que tenha também um pouco de peso que até tinha no The Mist e em outras influências. Um pouco de Paradise Lost, pode ter até um pouco de Metallica. Estamos fazendo um single novo agora que deve sair em julho, que é uma pegada um pouco mais pop e menos pesada que ‘Pray’. Então, temos liberdade de criar material com menos peso também. Vamos fazer mescla disso, de música com menos peso e músicas com peso de guitarra também. Mas a gente não quer soar como um Paradise Lost no final dos anos 1990 no disco todo. Temos tantas referências boas que gostamos. Queremos fazer algo que nos remeta a um David Bowie, por exemplo, e aí eu não vou meter uma guitarra superpesada para estragar aquilo, no bom sentido. Eu vou trabalhar da melhor forma que eu souber. O que é legal no The Darkness Foundation é a gama de influência dos anos 1980, do pop, do dark, do pós-punk e do metal também dos anos 1990, que nos dá essa liberdade de fazermos o que quiser dentro desse caldeirão.
Pode-se dizer que o The Darkness Foundation é uma banda, que vai lançar discos e fazer shows, ou está mais para projeto que trabalha conforme as possibilidades?
As duas coisas. Primeiro, é uma banda que vai lançar álbum, que a gente pretende assinar com uma gravadora. E é um projeto que vai trabalhando dentro das possibilidades, pois tem a questão da distância. Hoje é muito mais fácil do que antigamente, mas temos esse lance de morar longe. O fato de ter um integrante residindo na Europa já facilita muito a ida da banda para lá pra uma possível turnê. Talvez seja mais fácil tocarmos fora do Brasil do que fazer uma gira nacional em razão disso. Para uma agência ou produtor de lá, é menos uma passagem daqui para pagar. A banda se encontra em Paris, pega a van e vai tocar. Facilita ainda o fato de ser um trio, uma formação mais enxuta que a maioria das outras bandas. Respondendo sua pergunta, nossa ideia é que seja uma banda com todas as letras, fazendo tudo que é possível, dentro das nossas possibilidades reais por causa da distância.
Comentaste que estão trabalhando em um novo single. O processo de vocês é ir fazendo uma música de cada vez, já que saiu um som e agora o grupo se dedica a outro?
Temos 11 músicas. Na verdade 10, pois já saiu ‘Pray’. Essas 10 estão encaminhadas. Temos nosso arquivo que a gente abre e fala: vamos trabalhar nessa aqui agora, porque cada uma tem uma pegada, uma característica. Sabemos exatamente o que precisamos trabalhar e em qual momento. Agora, estamos lapidando o segundo single, mas tem um terceiro e quarto sendo encaminhados. Queremos lançar um single por mês daqui até agosto ou setembro, mais ou menos, e até dezembro gravar o nosso álbum. E nesse intervalo queremos lançar videoclipe e tudo que uma banda lança para manter um padrão bacana.
Tirando foco do The Darkness Foundation, mas seguindo na música: tu és um cara que está na lida musical desde os 1980. Consegue viver só da música?
Vivo só da música sim. Agora, só vivo, né. Não estou dizendo que sou rico. Eu optei por isso e abri mão de muita coisa. Sou formado em faculdade e poderia trabalhar com o que me graduei, mas resolvi não fazer.
És formado em que?
Prótese dentária e ocular, que é fazer olho de vidro e trabalhar a parte de porcelana dos dentes etc. Cheguei a montar um laboratório, depois parei. É uma questão muito minha. Eu não consigo ter um emprego, nem trabalhar em algo que não seja a música. Claro, dentro dessa coisa da arte, tem várias nuances e, dentro delas, eu faço algumas outras atividades. Faço arte gráfica para casas de shows ou festivais, como pôster físico ou mesmo para redes sociais. Isso me ajuda muito, é uma grana que entra. Porém, não considero que seja minha profissão. Em qualquer lugar que eu vou no mundo, quando preciso fazer check-in nem hotel, por exemplo, minha profissão é músico. Trabalho também com miniaturas há mais de 30 anos. Já fiz muito para museus, exposições e galerias de arte. Isso também, quando consigo me dedicar, dá uma grana. Mas geralmente no meu dia a dia é música 24 horas.
Pressupondo que para trabalhar com miniaturas seja preciso ter paciência, gostaria de saber se tu és um cara calmo?
Muito. Se alguém tentar me tirar a paciência vai perder tempo.
Para não dizer que não falei de flores: os irmãos Cavalera anunciaram recentemente que gravaram e irão relançar o “Bestial Devastation” e o “Morbid Vision”. Teve algum envolvimento com esse trabalho?
A não ser a inspiração que eu possa ter passado, não. Fizemos um trabalho juntos, que foi tocar ‘Antichrist’ para o canal Beneath the Drums, do Iggor. Ele pediu isso faz um tempo, na pandemia, de regravar algo da antiga com ele e o Max. Ele perguntou se eu queria escolher a faixa, e eu disse que já tinha ‘Antichrist’ à mão e que o The Troops of Doom ia regravar ela. Então, já tinha ela toda esquematizada, no clique, com bateria programada pra depois o batera fazer a parte dele valendo. Só não tinha voz, até baixo já estava gravado. Avisei pra ele que poderia enviar, ele tirava a bateria e gravava em cima e depois eu colocava guitarra de novo, e o Max fazia parte dele em Phoenix. Depois disso, os comentários deles e meus foram bacanas, efusivos. Tipo: “foda escutar uma música nossa lá de 1984”. ‘Antichrist’ nem é minha, pois eu não era do Sepultura na época. Quando entrei, eles já tinham essa música em português, chamava ‘Anticristo’. Depois passamos para o inglês e eu gravei ela, mas já estava composta antes da minha entrada, quando era só os dois moleques. Depois, em 2022, fizemos turnê com os Cavalera no Brasil e o The Troops of Doom abriu dois shows deles, em Curitiba e no Rio de Janeiro. Eles nos viram tocar, e o Iggor principalmente, falou: “cara, que foda! Vocês tocam ‘Morbid Visions’, ‘Bestial Devastation’, ‘Troops of Doom’ e ‘Antichrist’ ao vivo e ficou do caralho! Antigamente era tudo mal gravado. Hoje tá maior peso, dá pra ver que a música é foda.” Então, acho que isso tudo deve ter acendido um faísca, um gatilho para que eles pensassem nessa ideia de regravar os dois álbuns. O que eu sei é o mesmo que todo mundo, que é o que foi divulgado. Não sou parte dessa formação, não participo, não fui convidado a participar, como alguns cogitam. Eles estão começando a divulgar agora, mas a gravação rolou antes. Se rolasse convite, eu não aceitaria porque a época em que eles devem ter gravado eu estava no auge da turnê com o The Troops of Doom e mexendo com composições do The Darkness Foundation. Foi um ano bem atribulado.
Para finalizar, quais alegrias e as agruras de ser um ex-Sepultura?
Alegria, todas. Eu sou reconhecido no mundo inteiro e respeitado por isso. Não tenho nada a reclamar. A única parte ruim é que depois que eles se separaram, eu sem querer estou sempre no meio de uma trincheira. Sou um inglês ali entre uma trincheira francesa e outra alemã na Primeira Guerra. Não que eu tome tiro deles, isso não porque a gente se respeita e se gosta muito. Sou muito querido pelo Andreas, pelo Paulo e pelo Derick, assim como pelo Max e Iggor. E respeito todos eles da mesma forma. A única coisa ruim, mas que eu também já cortei há algum tempo, numa das raríssimas vezes em que perdi a paciência, é que todo mundo chega para mim querendo falar alguma coisa dos dois lados. Seja para falar que o Sepultura tá ruim ou que o Max copiou não sei o que ou que o Iggor não sei o que. Ou ainda pra dizer que o Soulfly é uma bosta. Só lamentações. Nós temos uma amizade, um respeito grande. Não faço parte da história do Soulfly e do Max depois que eu saí do Sepultura. Às vezes é chato, tive que realmente ser incisivo em resposta nas redes sociais para alguns colegas meus e seguidores que começaram a meter pau no Sepultura. Não lembro o que falei exatamente, mas alguma coisa do tipo: “cara, desculpa, mas você é o famoso quem mesmo? Conta a sua história ao invés de ficar falando da história do Sepultura.” Toda banda que tem uma carreira de sucesso, longeva, tem discos ruins e bons, tem obras primas e coisas muito ruins. Tudo bem você não gostar, mas eu acho que denegrir as pessoas, a banda, por causa disso é errado. Pior ainda em rede social. Às vezes querem me colocar num papel de dizer o que eu acho, querendo levar para um lado de criar celeuma. Respeito ambos, acho tudo bacana. Se você procurar, tem discos que eu não gosto, mas muitas pessoas gostam. O último do Sepultura, “Quadra” (2020), é uma obra prima, prova de que eles se reinventaram. Eles sempre tiveram esse poder de se reinventar, nenhum disco dos caras é igual. Isso é uma coisa que a gente tem que aplaudir o Max também, é um cara que tem a cabeça a mil por hora e cria muitas coisas, faz o trabalho dele. Você pode gostar de um, não gostar de outro, mas ele tem o direito. Essa regravação dos dois primeiros que ele fez agora é um direito dele. Legalmente eles têm esse direito, como eu também tenho, como Paulo tem e o Iggor também. Eu não faria porque não tenho essa vontade, mas eles fizeram e vamos aguardar para ver.
11 músicas dark escolhidas por Jairo Guedz que, de alguma forma, influenciaram o The Darkness Foundation:
Depeche Mode — Personal Jesus
Sisters of Mercy — More
Ministry — Isle of man
The Cult — She Sells Sanctuary
The Mission — Serpents Kiss
Nine Inch Nails — Dead Souls (Joy Division cover)
Type O Negative — Black No.1
Sisters of Mercy — Temple of Love
The Cult — Vendetta X
Rosetta Stone — Adrenaline
David Bowie — I’m Afraid of Americans
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.