Ao vivo no Rio, Max e Iggor Cavalera reúnem o “verdadeiro Sepultura” com Jairo Guedz

texto e fotos por Alexandre Biciati

Saiba como foi o show “Return of Roots” em São Paulo

Em 2016, visando festejar os 20 anos de “Roots” (1996), um dos discos mais emblemáticos não só do Sepultura, mas de toda a música pesada mundial, os irmãos Cavalera saíram em turnê tocando o álbum na integra, num projeto denominado “Return”, que nos anos seguintes prestigiaria também os discos “Beneath the Remains” (1989) e “Arise” (1991) – tanto Max quanto Iggor conversaram com o Scream & Yell em 2019 relembrando histórias da gravação desses discos. Agora, na passagem dos 25 invernos de “Roots” (26 para ser mais preciso), a dupla retoma seu álbum mais cultuado ao vivo.

“Roots” foi o último álbum do Sepultura com Max Cavalera – Iggor ficou segurando as baquetas da banda ainda mais 10 anos, deixando o grupo em 2006. Com uma base rítmica tribal, afinação baixa e participações de peso como a dos índios Xavantes, “Roots” tem uma temática contundente e contestadora. O atual momento que vive o Brasil, em que as comunidades indígenas são ameaçadas ao invés de defendidas e a realidade de um governo que flerta com o autoritarismo, adicionam um contexto a mais à celebração por aqui.

Em show que prometia o disco na íntegra, a banda formada por Max, Iggor, o guitarrista Dino Cazares (Fear Factory, Asesino e Divine Heresy) e do baixista do Soufly, Mike Leon, tocou no Rio de Janeiro após passagem por Brasília e Curitiba e um dia após o aniversário de 53 anos de Max. A abertura em Curitiba e no Rio ficou a cargo de nada menos que a The Troops of Doom, banda de Jairo Guedz, guitarrista e ex-Sepultura de primeira hora, promovendo o encontro dos membros originais da maior banda do metal nacional. Os Cavalera ainda se apresentaram em Ribeirão Preto com abertura da Violência Moral e São Paulo com abertura de Sinaya e Krisiun.

Infelizmente, não houve entendimento entre banda e produtores locais para que Belo Horizonte, cidade natal e berço do Sepultura, fosse contemplada nesta turnê – a última vez que a capital mineira recebeu os Cavalera no palco foi na turnê “Return Beneath Arise” em 2018. No Rio de Janeiro, a casa que abriu as portas para o evento foi a Sacadura 154, novo reduto da cena de rock carioca. Com estrutura que entrega mais conforto do que estamos acostumados quando o assunto é show de metal, o espaço tem localização privilegiada no centro da cidade.

Formada por Jairo Guedz na guitarra, Alex Kafer no vocal e baixo, Marcelo Vasco na guitarra e Alexandre Oliveira na bateria, a The Troops of Doom tem como proposta fazer death metal com cheiro e sabor de anos 80 e o fazem com uma competência assustadora. Após lançar dois EPs, “The Rise of Heresy” (2020), gravado remotamente durante a pandemia, e “The Absence of Light” (2021), o grupo empreendeu o primeiro disco full batizado de “Antichrist Reborn” (2022), que teve como produtor um especialista no gênero, o sueco Peter Tägtgren.

Além das composições lançadas nos discos recentes, a The Troops of Doom presenteou o público com clássicos da primeira fase do Sepultura que também foram regravados pela banda. Para os fãs dos discos “Bestial Devastation” (1985 e “Morbid Vision” (1986), a noite se configurou como uma viagem cronológica pelos primeiros 10 anos do Sepultura. A The Troops of Doom deixou claro, entretanto, que não são uma banda vivendo do passado, mas verdadeiros arqueólogos que desenterraram um demônio mumificado em meados dos anos 80. A sonoridade e estética são tão cruas e autênticas que parecem mesmo fruto da ressurreição de uma entidade.

Após o clima de suspense proferido pela introdução de “The Absence of the Light” do EP homônimo, começaram o show com uma sequência que apresentaria os três trabalhos lançados. Devidamente uniformizados, abriram com “The Devil’s Tail”, “Between the Devil and the Deep Blue Sea” – a mais ouvida nas plataformas digitais – e “Altar of Delusion”, petardo do novo disco. A essa altura, quem esperava pelos Cavalera já tinha entendido que estavam diante de uma banda visceral e direta. Durante os 40 minutos de apresentação, a The Troops of Doom destilou todos os elementos do bom e velho death metal sem hesitação.

Jairo Guedz foi apresentado como legítimo fundador do Sepultura e carregava no colete preto o apelido “Tormentor” herdado daqueles tempos. Nos intervalos entre músicas, Alex Kafer não poupou provocações que inflamavam cada vez mais a plateia do Rio. “The Monark”, que na gravação original tem participação de Jeff Becerra (Possessed), abriu caminho para a primeira do Sepultura, “Bestial Devastation”, que foi recebida com euforia. “The Rise of Heresy” faixa-título do primeiro EP antecedeu “A Queda”, única em português da banda, que foi cantada originalmente no disco por João Gordo.

Lançada como single entre os EPs em 2020, “Morbid Visions” foi executada sem qualquer adendo que a fizesse soar diferente da versão original de 1986. E esse é o grande barato de ouvir a The Troops of Doom tocar as clássicas, como a própria “Troops of Doom” – última do set – que soam frescas, mas sem frescuras. Antes que o show terminasse, ainda tiveram tempo de tocar a faixa de abertura de “Antichrist Reborn”, “Dethoned Messiah”. E apesar da ansiedade geral pelo show principal da noite, a saída do The Troops of Doom do palco parece ter soado precoce, mas Jairo Guedz ainda voltaria para se juntar aos irmãos Cavalera em um momento épico da noite.

Após um breve intervalo de pouco mais de 30 minutos, chegou a vez dos irmãos Cavalera finalmente reviverem “Roots” (1996) novamente, disco que mudou os rumos do metal no mundo e que, para além dos rankings internacionais, figura recorrentemente em listas de melhores álbuns brasileiros de todos os tempos. O pano de fundo era demasiado grande para o pé direito do palco, mas, as peles dos bumbos decoradas com o índio da capa anunciavam a identidade do disco. Uma bandeira Antifa devidamente instalada ao lado da bateria dava o tom político.

O tema de abertura em playback logo se misturou à ovação da plateia que parecia estar diante de semideuses quando Max e Iggor apareceram no palco. Max usava o colete clássico com uma camiseta do Raul Seixas e era notável a ausência do antológico dreadlock, que foi amputado em 2020, o que conferiu uma aparência dos tempos de “Arise” ao vocalista. Iggor, que geralmente usa camisa do Palmeiras em show no Brasil (o que ele faria no show de São Paulo), entrou de óculos, luva na mão esquerda e uma peita da Black Flag.

Todo mundo sabia o que estava por vir no início. “Roots Bloddy Roots” soou forte e volumosa, assim como no disco e a pista agitou muito com incentivo de Max: “Canta aê, porra! Pula aí, caralho!”. O ritmo desde o início foi intenso com a banda fazendo pouquíssimas pausas. A tribal “Attitude” veio na sequência e Iggor não economizou energia, como de costume, até o final do show. A dissonância ficou mesmo a cargo da voz de Max que, por vezes, poupou as cordas vocais abaixando o tom – em detrimento dos gritos guturais e estridentes – ou simplesmente jogou o verso para a galera. Apesar da performance vocal vacilante, a postura física de Max não foi prejudicada e o vocalista se mostrou muito mais enérgico e expressivo do que se podia esperar.

Durante uma hora e meia de show e 20 músicas, a banda tocou praticamente todas as canções do “Roots” e a plateia respondeu bem, batendo cabeça, cantando alto, abrindo circle pit, rodas de mosh e até um wall of death – a pedido do próprio Max – que se deu nas proporções que o espaço permitia. Era perceptível que algumas músicas soavam menos fluidas que outras, mas as coisas logo entravam nos eixos com uma troca de olhar entre os irmãos. De “Cut-Throat” à “Dictatorshit” o show seguiu sem surpresas e com mais interação de Max durante as músicas que entre elas, como em “Ratamahatta” em que arriscou vocalização de pergunta-resposta à la Freddie Mercury.

Foi a partir da metade, durante “Lookaway”, que o show ficou mais dinâmico. Max pediu que as luzes da casa se apagassem e que os presentes acendessem a lanterna dos celulares que foram suficientes para iluminar o palco. Acompanhado de marcação da cozinha, anunciou então “War Pigs”, do Black Sabbath, que durou poucos versos e foi emendada com ”Territory”. A música seguinte foi a acústica “Itsári”, composta no encontro da banda com a tribo Xavante, que Iggor executou sozinho acompanhado de playback. Antes de tocarem “Ambush”, Max explicou se tratar de uma homenagem a Chico Mendes, ativista assassinado em 1988. Só mais um fato da história recente do Brasil que faz “Roots” soar atualíssimo. O bloco-tributo terminaria com “Born Stubborn”, que tirou todo o fôlego de Max e “Dictatorshit”, para a qual Max pediu uma roda na pista. O pedido de bis foi um unânime grito de: “Ei, Bolsonaro, VTNC!”

Max voltou pro palco lembrando tempos idos: “Quem daqui estava no Caverna?” [show do Sepultura em 1987], provocou. Antes de anunciar a próxima música, avisou: “Daqui pra frente é zoeira, não tem nada ensaiado”. Dino Cazares, que tem participado também do Soufly, foi homenageado por Max que pediu gritos de “Viva Mexico!”. Era o anúncio de “La Migra”, do Brujeria, banda da qual Dino Cazares participou da fundação. Foi a primeira de uma sequência de covers e justamente o momento em que Max Cavalera soltou a voz em uma interpretação impecável, à altura da própria carreira. Prosseguiram com uma versão definitiva de “Orgasmatron” (Motörhead) que colocou todo mundo pra pular. “Polícia” dos Titãs, que também virou um clássico na interpretação do Sepultura, sequer estava no setlist e entrou em campo.

Após nova pausa (e mais uma “homenagem” ao presidente da república), finalmente, chegou a hora que todos esperavam, com os Cavalera convidando Jairo Guedz ao palco para “Troops of Doom”. A jam poderia ter sido mais legal se não tivessem entregado a Jairo uma guitarra em afinação diferente do convencional. Max foi até o braço do instrumento explicar o equívoco: “toca nessa corda”. Jairo levou numa boa, mas seria (muito) melhor se tivessem evitado o episódio. De qualquer forma, estava no palco a formação que deu origem ao legado. Max não se conteve e, ao final, pediu o grito de “Verdadeiro Sepultura!”. Jairo deixou o palco sob gritos e aplausos.

Fazendo juz ao figurino, Max ainda puxou um coro de “Viva a Sociedade Alternativa” que angariou participação imediata da plateia carioca. Na sequência, veio “Refuse Resist” para lembrar que “Roots” tem pai e seu nome é “Chaos AD” (1993). Antes do encerramento, mais uma surpresa pinçada do álbum “Schizophrenia” (1987): “Escape to the Void”, que levou a pista a quebrar tudo novamente. A derradeira da noite foi, novamente, “Roots Bloody Roots” desta vez em versão acelerada.

Os irmãos Cavalera têm feito um ótimo trabalho em se manterem na ativa e está mais que provado que a chancela Cavalera é tão imponente e autônoma quanto a marca Sepultura. Seja surfando na onda dos “shows de discos” ou com a Cavalera Conspiracy, a dupla tem talento de sobra e público cativo em qualquer capital do país graças a história que construíram juntos desde os tempos da ascensão da música “Troops of Doom”.

A banda de Jairo “Tormentor” Guedz, por sua vez, carrega todas as expectativas possíveis e tem tudo para ocupar merecido espaço de destaque em qualquer festival do mundo. Além do peso de carregarem um integrante da cena que ajudou a desenhar o próprio gênero, a The Troops of Doom só precisa mostrar seu trabalho para construir a história que merecem. Ao que tudo indica, é só uma questão de tempo.

Quem teve oportunidade de assistir ambas as bandas dividindo palco em Curitiba ou Rio de Janeiro, vai ter uma boa história pra contar. Seja por ter visto os primeiros shows da The Troops of Doom, seja pelo show “Return of Roots” que é histórico por natureza. Acima de tudo, há o teor épico do encontro do trio que é a semente do metal brasileiro, que, se hoje tem lugar de prestígio mundo afora, é graças a esses três mineiros.

Saiba como foi o show “Return of Roots” em São Paulo

–  Alexandre Biciati é fotógrafo: www.alexandrebiciati.com

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