texto de Renan Guerra
Para pensar em “Sem Ursos” (“Khers Nnist” no original, 2022), novo filme do iraniano Jafar Panahi, é preciso retornar ao passado e entender o cenário em que o diretor está embrenhado. Panahi começou a carreira como diretor assistente do mestre Abbas Kiarostami estreando na direção em 1995, com “O Balão Branco”, um filme que é a epítome do que se espera de uma película iraniana: o bucolismo de uma pequena criança tentando comprar um peixinho para manter uma tradição de ano novo. É um filme lindo e Jafar ganhou o prêmio Caméra d’Or em Cannes com ele. Mas depois disso, nos anos 2000, o diretor foi cada vez arriscando mais em filmes politizados. “O Círculo”, de 2000, fala sobre as condições das mulheres no Irã; “Ouro Carmim”, de 2003, é sobre um entregador de pizza que acaba cometendo um assalto; já “Fora de Jogo”, de 2006, é sobre mulheres tentando assistir um jogo de futebol, mesmo que o governo as proíba de entrar nos estádios. Todos esses filmes citados foram banidos no Irã.
Enquanto o prestígio internacional de Jafar ia crescendo, ele ia sendo cada vez mais detestado pelo governo iraniano. Em 2010, depois de anos de conflitos com o governo e de curtas prisões, Jafar Panahi foi oficialmente preso, junto de sua esposa, sua filha e mais 15 amigos. As acusações incluíam propaganda contra o governo do Irã e obscenidade (o governo recolheu a coleção de filmes do diretor e considerou que clássicos do cinema eram a tal “obscenidade”). Panahi foi condenado a 6 anos de prisão e 20 anos proibido de dirigir filmes, escrever roteiros, dar entrevistas e sair do país. Em prisão domiciliar, é óbvio que ele não obedeceu às restrições e em 2011 filmou “Isto Não é Um Filme”, espécie de diário-documental. O filme saiu de sua casa em um pen-drive, escondido dentro de um bolo, e de lá foi direto para o festival de Cannes.
Nesses mais de dez anos de exílio dentro do seu próprio país, Jafar Panahi não parou de filmar e já lançou obras excelentes como “Taxi Teerã” (2015) e “Três Faces” (2018). “Sem Ursos” é o primeiro filme dele pós-pandemia e foi produzido de forma secreta no início de 2022. No filme, Jafar interpreta uma versão dele mesmo, um misterioso diretor que aluga um quarto em um pequeno vilarejo na fronteira com a Turquia e, de lá, dirige um outro filme, que é gravado do outro lado da fronteira e que mistura ficção e documentário para contar a história do casal Bakhtiar e Zara, que buscam passaportes falsos para poder fugir da região. O filme terminou de ser filmado em maio de 2022, e no mês seguinte o diretor foi novamente preso. O motivo: Jafar fez um post on-line defendendo a libertação de outros dois diretores, Mohammad Rasoulof e Mustafa Al-Ahmad, e o resultado foi prisão para Jafar por “propaganda contra o governo iraniano”. “Sem Ursos” foi selecionado para o Leão de Ouro do Festival de Veneza, isso enquanto Panahi estava já preso, e óbvio, gerou a fúria do governo local, que considera o filme como um “jogo político do diretor”.
Jafar Panahi ganhou o prêmio do júri em Veneza pelo filme, mas seguiu preso no Irã até o início desse ano. Após uma greve de fome em fevereiro de 2023 e devido a grande pressão internacional, o diretor foi liberado da prisão naquele mês, porém sua sentença de 6 anos de prisão e de 20 anos de proibição de filmar retornou. E você deve estar se perguntando: mas e o filme é bom mesmo ou vamos falar apenas de fatos reais? Essa realidade toda apresentada aqui acaba atravessando “Sem Ursos” gerando aquele que talvez seja o mais duro e forte filme de Panahi. O diretor que vemos na tela é confrontado em diferentes cenários: extremamente próximo à fronteira, ele tem a possibilidade de atravessar e de fugir e isso fica pairando sobre o filme; além disso, inserido nessa tradicional comunidade do interior do país, ele acaba se debatendo com as tradições locais e tensiona assim a falta de sentido de muitas dessas tradições.
“Sem Ursos” é como uma pequena alegoria do próprio mundo em que Jafar está preso: as acusações não fazem sentido, as tradições não têm lógica e as suas perseguições parecem vir de locais inesperados. Enquanto tenta filmar à distância, Jafar Panahi ainda encara o sofrimento dos próprios atores e da produção de seu filme, que também ficam nesse jogo de gato e rato com as leis locais e com o medo da perseguição. E para se pensar como a realidade se embrenha nos filmes de Panahi, é interessante pensar na história de uma de suas atrizes, Mina Kavani, iraniana que vive exilada na França, uma vez que sua atuação no filme “Red Rose” (Sepideh Farsi, 2014), foi extremamente criticada no Irã. Mina conseguiu apoio da atriz Isabelle Huppert e do diretor Bertrand Bonello para assim conseguir um visto de refugiada política na Europa. No filme de Panahi, sua personagem Zara consegue um visto falso para ir para França, porém sofre com a decisão difícil de ter que ir sozinha e deixar seu marido para trás.
Além de todas essas histórias, “Sem Ursos” ainda é dedicado para Hengameh Panahi, a criadora da Celluloid Dreams, produtora e distribuidora francesa que é a responsável pela distribuição dos trabalhos de Jafar Panahi pelo mundo. Nascida no Irã, Hengameh mudou para a Europa ainda na adolescência e criou nos anos 1980 a produtora Celluloid Dealers, que em tradução seria “os traficantes de celuloide”. Mercadologicamente disseram para ela mudar esse nome, pois poderia resultar em problemas na hora da distribuição internacional, mas, de todo modo, é um nome excelente para uma produtora que realmente distribuiu muitos filmes proibidos e polêmicos.
Enfim, o novo cinema iraniano – denominação usual para o cinema pós-revolução iraniana de 1979 – sempre foi marcado pela metalinguagem e pela intersecção entre realidade e ficção. Panahi acabou se tornando um dos grandes mestres dessa forma de se contar histórias: a realidade como pano para a ficção, o uso de não-atores e as liberdades da câmera na mão. “Sem Ursos” é o ato mais forte do diretor até esse momento e soa como uma junção ampla de suas técnicas e possibilidades narrativas em favor da liberdade. A sensação final é dolorosa, pois trata-se de um filme que acaba como um soco no estômago, mas para o espectador é só mais um filme, os créditos sobem e a gente sai para a rua de novo de forma livre; por isso o que mais dói nessa história é saber que aquilo que está na tela é apenas um recorte de algo muito maior que segue acontecendo e se repetindo.
O amargor é forte, mas é ainda mais forte a necessidade de se defender a liberdade de artistas e criadores como Jafar Panahi. Parece incompreensível para nós que ele não fuja do Irã ou que ele não saia de lá exilado – sabemos que ele tem os meios para isso e possui o apoio internacional para tal, tanto de artistas quanto de organizações de direitos humanos. Mas o que o leva a continuar em sua terra? A continuar narrando histórias sobre o Irã? “Sem Ursos” é um pouco sobre esse mistério que nos liga à nossa terra, ao nosso espaço no mundo e como, às vezes, não conseguimos abandonar tão fácil aquilo em que acreditamos. Jafar não é só um dos grandes cineastas iranianos da atualidade, ele é sim um dos grandes cineastas do nosso tempo, pois seu trabalho reforça a potência do cinema e como as narrativas podem ser múltiplas, instigantes e inteligentes, mesmo em sua maior simplicidade.
Até a finalização desse texto, a última notícia que tínhamos é que Jafar Panahi conseguiu novamente seu passaporte e viajou para a França no final de abril de 2023.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.