Ao vivo: Com o poderoso “Rastilho” como fio condutor, Kiko Dinucci lança luz sobre o apagamento do povo preto em São Paulo

texto por Marcelo Costa
fotos de Arthur Waismann

Centro histórico de São Paulo, sábado, 11h50 da manhã, maio de 2023. Na praça que atualmente leva o nome do advogado, fazendeiro, empresário e primeiro prefeito da cidade, Antônio Prado, quem mais se destaca é Zumbi dos Palmares, imponente e eternizado em bronze numa estátua do artista plástico José Maria Ferreira dos Santos exposta no local desde 2016. Zumbi não está aqui à toa. A área, antigamente conhecida com Praça do Rosário, abrigava a antiga Igreja do Rosário dos Homens Pretos, que promovia congadas e outras tradições perdidas de escravos, e que foi desapropriada pela prefeitura em 1903 para uma “reformulação” do entorno e reerguida com dinheiro de indenização num terreno no Largo do Paissandu (em frente a Galeria do Rock).

Na reformulação e ampliação da Praça do Rosário futuramente surgiriam espaços para bancas de jornais, engraxates e um relógio público (de Nichile) de oito metros. O terreno do pequeno cemitério da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que ficava ao lado da capela, porém, foi parar nas mãos da… família do prefeito, que construiu o Palacete Martinico Prado (irmão do prefeito). Esse palacete abrigou o jornal O Estado de São Paulo em 1906 e, futuramente, a Bolsa de Valores brasileira, a B3, que neste sábado irá receber num charmoso anfiteatro construído no subsolo, cerca de 7 metros abaixo da terra, Kiko Dinucci apresentando seu álbum “Rastilho”, melhor disco brasileiro de 2020, segundo votação no Scream & Yell, abrindo a programação paulista do excelente MIMO Festival 2023.

“’Rastilho’ não é meu trabalho mais recente”, apressa-se em explicar Kiko logo no começo do show. “Eu já lancei outro – o EP “VHS” – que é mais… underground. ‘Rastilho’ funciona melhor aqui”, salientou, e talvez seja ingenuidade acreditar em coincidências, porque o bom público presente presenciaria não só uma ode emocional e poética ao povo preto embalada pela condução nervosa e arisca do violão punk de Kiko desfilando as canções poderosas do álbum, covers e até uma faixa ainda inédita (embora bastante executada ao vivo), mas, principalmente, ouviria recados certeiros contra o apagamento histórico desse povo nas áreas centrais da cidade, tema que iria circundar a apresentação, já que muitas das canções do disco e do repertório de Kiko tem, em suas letras, essa região como ambiente e saudações a divindades desse povo em forma de homenagem.

Pontualmente ao meio-dia, com a capa do álbum decorando o espaço e acompanhado das cantoras Dulce Monteiro, Maraysa e Juçara Marçal, Kiko deu início à apresentação com as intensas “Olodê” e “Marquito” seguidas das deliciosas “Foi Batendo o Pé na Terra” e “Vida Mansa”, do repertório de Cyro Monteiro que Kiko descobriu numa playlist em streaming. “Febre do Rato” faz a conexão descritiva com a região: “Tem coisas nessa letra que acontecem por aqui… Parque Dom Pedro”, pontuou o músico ao falar do parque (hoje um terminal rodoviário) que está a 750 metros do local do show. Sozinho em cena, Kiko mostra o samba canção “Habitual”, faixa gravada nas sessões de “Rastilho”, mas que ficou fora da versão final do álbum – entrou num compacto presente na edição britânica com outras duas faixas. “Ela é bem Lupicínio, bem angustiada”, avisa Kiko. “Quando fiz, fiquei pensando no Paulinho da Viola, no Elton Medeiros… imaginem o Paulinho cantando ela”…

Após o lado b, uma bela surpresa: “Eu vou tentar tocar uma música do Jards Macalé, pois já entrei nesse cenário da música anterior, que também é cenário de Jards, Wally Salomão, Torquato… vou tentar tocar uma música que fiz com o Jards para o último disco dele, chama-se ‘Coração Bifurcado’ e eu não decorei a letra ainda”, revela Kiko, e a versão surge nervosa, com pancadas nas cordas, muito intensidade e beleza genuína. Ao final, humor: “Fiquei com uma vontade de imitar o Jards no meio da música… (risos) mas ia avacalhar… (e então imita o sotaque grave de Macalé para sorrisos gerais).

A parceira Juçara Marçal é convidada novamente ao palco, e Kiko Dinucci relembra que os dois moraram no mesmo prédio durante a pandemia: “A gente já tinha superado o Whatsapp e só conversava por interfone”, brincou. A proximidade num ambiente de quarentena permitiu aos dois comporem uma série de músicas, que renderiam “Delta Estácio Blues”, o grande disco de 2021 para os votantes do Scream & Yell, e também a inédita “Iyami Ile Oro”, que ficou fora do disco e se tornou um dos grandes momentos do show, e uma música maravilhosa para as mães que já foi tocada em apresentações do Metá Metá, do Padê, e do próprio Kiko, e aqui receberá aplausos efusivos da audiência, que aproveitará a pausa posterior para pedir um disco novo do Metá: “Está nos planos…”, avisa Kiko.

Ele, então, relembra que muitos sambistas paulistas eram engraxates e também trabalhavam nas praças centrais, fazendo samba em latinhas de graxa nas horas vagas (o assunto já rendeu tese de pós-graduação na USP): “A gente vai tocar um samba enredo agora de um cara que a gente ama, Geraldo Filme, um grande compositor de São Paulo. Ele, Germano Mathias, Oswaldinho da Cuíca eram engraxates e esse samba foi composto para a Escola de Samba Paulistana da Glória, que era do Glicério, Cambuci e Liberdade, alguns dos bairros mais pretos da cidade de São Paulo… É preciso contar essa história, pois estão tentando apagar dos livros”, diz Kiko, que puxa a empolgante “Oração em Tempo de Festa”, do carnaval de 1977, cantada por Juçara.

“Gaba” vem na sequência, e Kiko conta que tanto Juçara quanto Ava Rocha participam do disco, mas não cantando, e sim usando a voz como instrumento, fazendo texturas. Rodrigo Ogi, outro parceiro presente no álbum, é relembrado na versão da poderosa “Veneno”, que abre caminho para o retorno das cantoras Dulce Monteiro e Maraysa, que cantam a empolgante “Tambú e Candongueiro” e fecham o set com a faixa título, “Rastilho”. Para o bis, sambão: “Roda de Sampa”, do disco “Padê”, faz com quem alguns se levantem para sambar e deixem o B3 com um sorriso no rosto e, provavelmente, olhando a região (que, como toda a cidade, está abandonada por uma zeladoria incompetente do atual inexistente prefeito) e a praça que se descortina a frente com olhos… pretos. Zumbi dos Palmares permanece imponente, pois sabe que por mais que tentem apagar a história sempre haverá alguém semeando e contando / cantando verdades.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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