Faixa a faixa: Conheça o álbum “Canto Coral Afrobrasileiro”, disco de 1983 d’Os Tincoãs que, enfim, ganha lançamento oficial

faixa a faixa por Zezão Castro

O precioso legado d’Os Tincoãs está prestes a alcançar mais ouvidos e almas com o lançamento do álbum inédito “Canto Coral Afrobrasileiro” (Sanzala Cultural) pela Natura Musical. O registro realizado em 1983, semanas antes de o trio vocal formado por Dadinho, Mateus Aleluia e Badu, em Cachoeira (BA), partir para Angola, já está disponível nas plataformas digitais. No disco, o grupo combina a complexidade rítmica e melódica de temas do candomblé à sofisticação barroca da cultura católica, e encontra-se com o Coral dos Correios e Telégrafos do Rio de Janeiro em seis músicas. Nas outras quatro faixas prevalece o som d’Os Tincoãs no formato que os consagrou.

No ano em que a obra completa 40 anos de sua gravação, Mateus Aleluia, o remanescente vivo que integrou o lendário trio baiano por mais tempo, desejou disponibilizar as dez faixas, quatro delas nunca gravadas antes. Com o violão de Dadinho, os atabaques de Mateus e o agogô e ganzá de Badu, todas as músicas do álbum foram compostas e adaptadas pela dupla Mateus e Dadinho e também serão lançadas em vinil. A idealização do projeto é do produtor do trio na época, Adelzon Alves. Com Os Tincoãs desde 1973, ano de lançamento do disco de estreia homônimo, que trazia a cultuada “Deixa a Gira Girar”, o produtor identificava no grupo, segundo Mateus Aleluia, “uma projeção para um coral de cantos indefinidos, o verdadeiro canto coral afrobrasileiro”.

Graças aos conhecimentos musicais fruto de sua atuação como radialista, ouvido em todo Brasil na década de 1970, Alves aproximou o gênero musical spirituals – cânticos religiosos entoados por corais de pessoas pretas do Sul dos Estados Unidos – do trio. “Eu queria fazer algo assim com Os Tincoãs: um gospel afrobrasileiro, mas com as músicas que eles cantam em iorubá e banto, cuja origem tem mais de 2500 anos, segundo especialistas, um repertório de grande importância antropológica e histórica para o Brasil e o mundo”, explica o carioca de 83 anos, que produziu e lançou nomes como Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Martinho da Vila, Alcione e João Nogueira.

Gravado nos Estúdios Transamérica (RJ) e remasterizado por Tadeu Mascarenhas, no Estúdio Casa das Máquinas, em 2022, os registros foram realizados semanas antes de o trio vocal originado em Cachoeira partir para Angola, em excursão com Martinho da Vila. As bases dos três integrantes, gravadas em separado, ficaram prontas no Brasil aguardando apenas os prometidos complementos vocais. No período das gravações, o trio batizado com nome de pássaro planava num voo indeciso. Já tinha quatro LPs e cinco compactos gravados, além de ter alcançado o reconhecimento entre colegas e público.

Em Angola, os africantos ecoavam mais longe do que nunca. Os búzios ainda estavam sendo movimentados nas mãos do destino e antes de completar um mês de chegada em Luanda, Badu informou a Dadinho e a Mateus que voltaria para o Rio de Janeiro. A decisão precipitou o fim do trio já que a dupla remanescente continuou em Angola. Mateus passou a atuar com publicidade (voltou à música em 2002) e Dadinho, no comércio, tendo falecido de derrame em Angola, em 2000. A dupla ainda gravaria um LP, em 1986. Badu é, atualmente, cantor, produtor musical e vive nas Ilhas Canárias (Espanha).

Enquanto os Tincoãs ganhavam o Velho Continente, no Brasil, Adelzon dedicava-se à missão de completar o projeto afro-coralístico. Para escrever os arranjos vocais, escolheu o maestro Leonardo Bruno, então colaborador de Gilberto Gil, Golden Boys, Clara Nunes, Erlon Chaves e do próprio trio baiano, para o qual arranjou a faixa “Chapeuzinho Vermelho” no LP de 1977. A próxima etapa seria eleger um coral apto para a empreitada e seu regente. A incumbência coube ao maestro Armando Prazeres que regia o Coral dos Correios e Telégrafos – além do próprio Leonardo Bruno, que também assinou a batuta. Para reforçar as bases rítmicas nas faixas com coral, foi arregimentado o não menos lendário percussionista brasileiro, Pedro Sorongo.

No meio do processo, a instituição que custeava o disco cortou as verbas. Tempos depois, as fitas de rolo foram enviadas ao produtor do grupo, faltando algumas das orquestrações planejadas. Adelzon Alves pré-mixou o material, ainda no Rio de Janeiro, e o entregou já digitalizado em CD para Mateus Aleluia, após seu retorno de Angola, em 2002. Neste mesmo ano, Seo Mateus, como é carinhosamente chamado, já morando na capital baiana, leu no jornal local que o jovem produtor Tadeu Mascarenhas inaugurava seu estúdio de gravação e sonhava trabalhar com o veterano ou qualquer material relacionado ao trio Os Tincoãs.

Dias depois, Seo Mateus vai ao estúdio no Rio Vermelho, para surpresa e deleite de Mascarenhas. Já amigo e parceiro do produtor, Aleluia confiou a ele o registro para um possível lançamento futuro. O resgate de fato aconteceu por meio da parceria com a cineasta e produtora Tenille Bezerra, diretora do documentário “Aleluia, O Canto Infinito do Tincoã” (2020). Entusiasta do grupo e do lançamento da obra inédita, abraçou a produção executiva e, enfim, toda esta magia está disponível para todo o público, 40 anos após as gravações originais.

O que seria uma deficiência financeira acabou por tornar-se um toque singular de ”Canto Coral Afrobrasileiro”. Uma parte do álbum ficou orfeônica, como queria o produtor, e a outra, “tincoãs-raiz”, apenas com as três vozes e seus respectivos instrumentos (violão, atabaques, agogô e ganzá). Assim, o público é contemplado com a rara oportunidade de apreciar os oníricos vocais de Dadinho, o mais agudo; Badu, o médio; e Mateus, o barítono; em ambos formatos: trio vocal e trio vocal com coral. No lado A, estão as faixas orquestradas (com exceção da 1ª). No B, as “cruas” (com exceção da última e da penúltima). Um diamante musical devidamente lapidado com duas concepções de música magistrais.

O projeto tem patrocínio da Natura Musical e do Governo do Estado, pelo Fazcultura, da Secretaria de Cultura e Secretaria da Fazenda. “Canto Coral Afrobrasileiro” foi selecionado pelo edital Natura Musical, por meio da lei estadual de incentivo à cultura da Bahia (FazCultura), ao lado de Casa do Hip-Hop Bahia, Cronista do Morro, Festival Pagode Por Elas e Marujos Pataxó. Abaixo, Zezão Castro, mestre em Cultura e Identidade, jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), diretor, roteirista de cinema, produtor fonográfico e cordelista, comenta o disco faixa a faixa!

Faixa a Faixa “Canto Coral Afrobrasileiro”
Por Zezão Castro

01) ”Ajagunã”: O Lado A abre com a faixa ”Ajagunã”. Lançada em compacto no ano de 1982 (RCA), é um canto de louvação a Oxaguian, (avatar de Oxalá quando jovem). É, também, a única faixa não-orquestrada nesta face do disco. Trata-se de um orikí, palavra iorubana originada da junção de orí (cabeça) e ki (saudação), ou seja, um canto de saudação “à cabeça” ou ao guia que rege a cabeça de alguém. “Tudo começa na cabeça”, relembra Mateus Aleluia. Esta música era o sucesso da época do grupo, que a defendeu no Festival MPB Shell no ano em que foi lançada.

02) “Oiá Pepê Oiá Bá”: A segunda faixa abre o grupo das inéditas em disco. Cantada em idioma iorubano, é outro oriki, dessa vez em louvação a orixá Iansã (Oyá), identificada na mitologia afrobrasileira como a rainha dos raios, senhora das tempestades, rainha guerreira. Foi esposa de outros orixás, destacando-se Ogum e Xangô. Numerosos terreiros do Recôncavo e da capital baiana tem essa divindade como figura maior de suas casas de culto ancestral.

03) “Misericórdia”: Na sequência vem ”Misericórdia”, pinçada de um compacto lançado em 1974 (Odeon). A música reflete a osmótica formação artístico-musical dos habitantes do Vale do Paraguassu. Naquelas paragens, dorme-se ninado pelos toques da ritualidade africana e acorda-se com o dobrar dos sinos da Matriz. Mateus participava do Coral da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Cachoeira, na adolescência, e seu tio Clarício era instrutor musical na Filarmônica Lira Ceciliana. Nas décadas de 40 e 50, os cultos católicos eram celebrados em latim e sempre havia a parte do Miserere Nobis (Tende Piedade de Nós). Com o brilhantismo de sempre, Os Tincoãs, harmonizam a litúrgica mea culpa, revezando suas vozes com os contracantos do Coral dos Correios e Telégrafos, africanizando a missa ibérica, como só eles sabiam fazer.

04) “Key Iemanjá”: Outro oriki inédito em disco que, só agora, ganhou seu registro definitivo. Cantado em Iorubá em louvação à rainha das águas, à mãe de todas as cabeças, inclui também preces a Oxumaré. Em Cachoeira, na beira do Rio Paraguassu, os filhos de Iemanjá esperam até a maré cheia tornar a água do rio mais salobra, a fim de que se torne propícia para as oferendas à rainha do mar. Na maré baixa, as águas, menos salgadas, tornam o rio mais propício às oferendas para a orixá Oxum, rainha das águas doces.

05) “Obaluaê” é o número que fecha o lado A do vinil. Nesta releitura, mais lenta que a original, lançada no disco homônimo de estreia da fase afro (Odeon, 1973), o ouvinte é induzido a pensar que o canto gregoriano surgiu n´algum quilombo do massapê canavieiro do Recôncavo. A divindade da saúde e da cura é reverenciada, aqui, em canto bilingue (português e Iorubá). Protetor dos pobres contra as doenças, ele rege as questões de vida e morte. Carrega sempre sua lança de madeira para espantar energias ruins e espíritos errantes.

06) “Cequecê”: O Lado B abre com ”Cequecê”, uma reverência aos candomblés da linha Banto / Congo / Angola. Saúda os inquices (orixás), e, ao mesmo tempo, relembra a acolhida que Os Tincoãs tiveram em sua estada angolana, de 1983 até os anos 2000. Com versos adaptados por Dadinho e Mateus, o cântico chama a atenção pelo entrosamento entre as vozes e o tripé violão, atabaques e ganzá.

07) “Ogundê” é uma faixa que revela uma mescla de mistério e solenidade espiritual, consagrados ao orixá Ogum. Ogun-dê, em iorubá, significa Ogun “chegou’. Gravada pela 1º vez em 1973, é a sétima faixa deste novo LP. Sete é, também, o número desta divindade. Já no início, com o violão dedilhado de Dadinho e o arranjo das três vozes, a música passa a sensação de que a senzala, a aldeia e o monastério se confundem na gênese dessas harmonias vocais. Os atabaques, tocados por Mateus, e o agogô, tocado por Badu completam, com maestria, a vestimenta da música.

08) “Pelebé Nitobé” é outra faixa também inédita na discografia do grupo. É dedicada ao orixá Ossanha (ou Ossãe), aquele que sabe o segredo medicinal das folhas. O título, por sinal, também vindo do iorubá, significa que as folhas, (Ewe) “tem duas faces”. A primeira frase da faixa, “axé, babá”, significa “força, pai”. É uma interpretação, como as demais, repleta de espiritualidade, onde se pede à divindade reverenciada que as doenças não encostem, se afastem, salientando que as folhas, por ele manipuladas, tem o poder da cura.

09) “Salmo” é uma oração lançada, originalmente, no LP “O Africanto dos Tincoãs” (RCA, 1975). Realça a influência da religião católica na formação do grupo. As vozes do coro, regidas pelos maestros Leonardo Bruno e Armando Prazeres, em conjunto com a lírica empregada, tornam a canção perfeitamente adequada para qualquer culto cristão. O eu lírico suplica intervenção de Jesus para que acabe com a seca que queima as pastagens e pede compaixão para com os contritos romeiros. O instrumental tincoã, como sempre, fornece a atmosfera de terreiro, dotando de ritmo afro-caboclo a espiritual melodia.

10) “Lamento às Águas” fecha o trabalho. Assim como a anterior, tem a presença do coral. Gravada originalmente no outro LP homônimo (RCA, 1977), a faixa rende homenagens aos orixás e caboclos. O coral, mais uma vez, empresta um caráter divinal, com sua divisão de vozes. É destinada também aos caboclos Onymboiá e Eru, também citados antes do encerramento do cântico. Axé.

Zezão Castro é mestre em Cultura e Identidade, jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), diretor, roteirista de cinema, produtor fonográfico e cordelista.

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