entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
“Está quase”, diz-me Ricardo Jerónimo, esboçando um leve sorriso enquanto aguardo que os Birds Are Indie acabem de transportar o seu equipamento de som para o interior da sala de espetáculos onde iriam tocar dali cinco horas. Encontramo-nos no Bota (Base Organizada da Toca das Artes), um espaço cultural com atividades artísticas multidisciplinares situado na freguesia lisboeta dos Anjos, que é igualmente o local combinado para a minha entrevista com o grupo de Coimbra. “Este lugar tem carisma e se vivesse em Lisboa vinha aqui mais vezes”, confessa-me Jerónimo, à medida que contemplamos o look anos 70 do recinto do show na companhia de Joana Corker e de Henrique Toscano e por fim ocupamos uma mesa numa acolhedora sala contígua.
Começamos por recordar o período que sucedeu à edição de “Migrations”. O álbum foi lançado em Abril de 2020 (um mês após o eclodir da pandemia), numa época em que muitas bandas optavam por adiar o lançamento dos discos e cancelar shows, mas os Birds Are Indie não sofreram um grande transtorno, fizeram profissão de fé e durante dois anos realizaram várias apresentações em Portugal e Espanha e o trabalho foi bem recebido ao nível de vendas e de crítica. “Claro que nos espetáculos as pessoas estavam com máscaras e havia esse lado de anormalidade, mas em termos do funcionamento da banda, lançamos o disco, tocamos, demos entrevistas e tudo decorreu normalmente”, conta o vocalista Ricardo Jerónimo.
Avançamos para o álbum “Ones & Zeros” (editado em 14 de Abril pelo selo Lux Records) que revela uma banda apostada numa maior intensidade rítmica e vocal, adicionando caixas de ritmos e sintetizadores analógicos a uma base sonora anteriormente mais minimal. A temática do grupo centrou-se agora nas inquietações distópicas, na relação com a inteligência artificial e na ambiguidade entre o mundo real e virtual, dando corpo a um trabalho conceitual habitado por diferentes personagens e por vários estados de espírito. O prineiro single do disco, o impetuoso “21st Century Heroes”, é significativo da nova postura do grupo, tal como o magnífico exercício de blues rock “It Doesn´t Sound Real”, enquanto “No Show” aborda um território mais complexo do que a maioria das canções do álbum e “Empty Screen” simboliza o indie pop que define o trio de Coimbra. “Procuramos desafiar-nos, algo que era estranho para nós, fizemos um trabalho diferente e julgamos que resultou bem”, explica o baixista Henrique Toscano.
Globalmente, existe um caráter eminentemente transversal na música dos Birds Are Indie que faz com que mais pessoas sigam os passos da banda. No fundo, as boas vibrações que a música e os shows provocam no público não são alheias à sensibilidade do conjunto, mas prevalece um desígnio criador coletivo e objetivo. “Gostamos que as pessoas vão aos nossos concertos e que comprem os nossos discos, mas não pode ser isso que nos conduz a fazer alguma coisa. Tem de ser uma consequência de estarmos satisfeitos com o que produzimos e com a forma como nos entregamos ao trabalho”, refere Ricardo Jerónimo e a multi-instrumentista Joana Corker conclui o raciocínio: “Em primeiro lugar, temos de fazer o que nos apetece no momento e neste álbum estávamos inclinados a ter um som mais pesado, usar novos instrumentos e empreender esse investimento pessoal. Depois, a reação do público seria a que iria suceder se lançassemos mais um disco típico dos Birds Are Indie. Fizemos apenas o que servia ao trabalho e depois aguardámos”.
De Lisboa para o Brasil, os Birds Are Indie conversaram com o Scream & Yell. Confira:
O novo álbum (“Ones & Zeros”) percorre novas temáticas como a distopia, a inteligência artificial ou a alienação e propõe uma reflexão sobre os possíveis equilíbrios entre o mundo real e virtual. Qual foi o fator determinante para avançarem com um trabalho conceitual sobre estas temáticas?
Quando editamos o álbum “Migrations” (2020), a banda comemorava 10 anos de existência e decidimos que ia ser um fim de ciclo. Portanto, desejavamos que o trabalho seguinte fosse diferente e representasse um desafio para nós próprios. Seria, eventualmente, uma espécie de Birds Are Indie 2.0. Ainda não sabíamos onde iríamos porque acima de tudo queríamos tocar aquelas canções e tratar bem o disco. Nós começamos a compor as músicas novas em junho e julho de 2021 e estavamos expectantes relativamente ao que viria a acontecer em termos musicais. Fomos para a nossa sala de ensaios, que é uma garagem, muito bem isolada acusticamente (risos), e desta vez compusemos os três em conjunto (normalmente, o processo de composição dos Birds Are Indie começa em Jerónimo e Henrique e Joana contribuem com pequenas partes, ideias ou arranjos) e foi muito bom. Isso talvez tenha influenciado a mudança geral. Na parte das letras, e se calhar um pouco no ‘art work’ e na imagem, pendemos para o lado conceitual que você refere. A pandemia pode ter tido efeito, porque acentuou algumas coisas. Um desses exemplos é a nossa relação com a virtualidade. Ela já vinha de trás, mas aumentou exponencialmente e começaram-se a normalizar as videoconferências ou o teletrabalho. Há coisas ótimas, claro, mas quase que se extremou a dualidade sobre o que é real ou virtual, o que é estar com uma pessoa ou vê-la num ecrã. Então, começou a construir-se uma ideia de pretos e brancos, de ‘ones and zeros’ e de coisas binárias. Depois há a lógica atual em que estás de um lado ou do outro e se não estás comigo estás contra mim. O cinzento, o intermédio e o senso comum parece que desapareceram e esse patamar fica difícil de alcançar. Como eram temas mais pesados e diferentes do nosso normal, pensamos nas letras e na interpretação enquanto personagens e os clipes que gravamos vão ao encontro dessa ideia. Não o fizemos numa base em que a música conta uma história da Maria e do João narrativamente. As figuras que criamos não têm nome. É quase como estar nos seus olhos, por isso vemos o que elas vêm, pensamos o que elas pensam e sentimos o que elas sentem. Foi esse o processo que desenvolvemos nas letras.
É certo que no disco anterior, “Migrations” (2020), já haviam pistas relativamente ao endurecimento do vosso som, como foi o caso da faixa “Black (Or The Art Of Letting Go)”, mas o incremento rítmico e a urgência lírica que vocês desenvolveram agora resultou de uma tentativa de adequar a vossa sonoridade a este conturbado período pós-pandémico ou a novas referências musicais e literárias da banda?
Nós sentimos necessidade de tocar músicas mais pesadas, porque estivemos vários anos num registo pop. Quem nos conhece, sabe que gostamos do lado roqueiro e de utilizar sintetizadores. Sentimo-nos bem a tocar com pujança e a temática do novo álbum deu sentido a essa intenção. Foi uma progressão natural relativamente ao que estavamos fazendo ao vivo. Em disco, as músicas estão gravadas de uma forma relativamente calma mas, nos shows, elas têm outra roupagem e podem adquirir intensidade. Isto já acontecia nos álbuns anteriores. Na parte da gravação e da composição deste trabalho, assumimos que iríamos ter um som mais forte. Por isso, compramos uns sintetizadores, umas caixas de ritmos e vários pedais para as guitarras com o objetivo de chegar a esse ponto. Estávamos cansados de tocar as mesmas coisas e de forma idêntica, por isso avançamos com determinação para este trabalho.
O álbum é composto por várias histórias e diversos personagens. Verifico que existe uma aparente resignação na figura central de “Empty Screen”, mas em “Living In The Trenches” o protagonista exibe uma faceta mais afirmativa. Como foi conciliar estas duas ideias?
É mesmo isso. Para cada uma das músicas existe um sentimento diferente. Mas é algo transitório, como acontece com as pessoas habitualmente. Enquanto atravessamos estes tempos reais, porque o disco é uma ficção, temos dias na nossa vida em que nos sentimos mais esperançosos com a tecnologia e noutros momentos imaginamos que no futuro seremos comidos por robots. É natural que ocorram fases de maior resignação ou de maior combatividade. Isso tem a ver conosco e, nesse caso, a lógica é haver alguém que atravesse as 10 músicas e que vá passando por situações ou assistindo a coisas e transmite-as nas canções. O disco não tem uma narrativa sequencial. No entanto, a primeira música, “Empty Screen”, tem um caráter humano, de alguém que instala a dúvida: “Eu estou aqui ou não estou? O que faço aqui? Isto é real ou não?”, numa perspectiva de questionar a sua humanidade para algo a que não está habituado na vida. Depois, canção após canção, a personagem entra num portal com vários mundos imaginários e na última música (“Behind The Sun”), parece que o pesadelo acabou e há um respirar fundo e ela percebe que voltou a ser humana. Este é o fio condutor do álbum e em cada canção há diversas inquietações e emoções.
Na última vez que vos entrevistei, vocês referiram que o papel do Estúdio Blue House e da editora Lux Records estava a ser decisivo para dinamizar a cena musical de Coimbra e que brevemente iríamos ver os frutos da colaboração entre os diversos artistas da cidade. Pelo meio eclodiu a pandemia mas, posteriormente, já se podem vislumbrar alguns frutos desse trabalho conjunto?
São duas estruturas importantes. A Lux Records tem 25 anos e o Estúdio Blue House, formalmente, leva quase cinco anos de existência. Ambas são muito ativas e complementam-se, porque o Blue House tem um estúdio de gravação e a Lux Records edita discos. Também desenvolvem um trabalho de promoção de shows e festivais e têm existido frutos dessa complementaridade. Desde a última vez que falamos consigo aconteceram muitas coisas interessantes em Coimbra. Relativamente ao Estúdio Blue House, recordamo-nos dos From Atomic (um trio que faz uma ponte entre o pop vanguardista dos anos 80 e o indie-noise dos anos 90), dos Eigreen (um projeto musical que contempla o registo acústico, o dreampop, passando pelo trip-hop e o downtempo) e do Filipe Furtado (um músico natural dos Açores que percorre a bossa nova, o jazz e o cancioneiro português). O Filipe Furtado lançou o seu disco de estreia, “Prelúdio” (2022) pela editora açoriana Marca Pistola, mas tanto ele como os Eigreen e os From Atomic gravaram os seus discos no Estúdio Blue House. O John Mercy (vocalista da banda blues-folk A Jigsaw) também tem feito colaborações muito interessantes. Nós estamos um pouco no meio, mas o pessoal da velha guarda continua bastante ativo e as parcerias também têm acontecido nas gerações mais novas de Coimbra.
O tour que vocês iniciaram a 6 de Abril é bastante extenso e vai percorrer 11 cidades portuguesas e seis cidades espanholas. O que esperam destes espectáculos?
O show da Guarda (cidade do norte de Portugal onde começaram o tour) correu bastante bem ao nível da performance do grupo e da reação do público. Por isso, estamos com boas expectativas relativamente às próximas atuações. Para além dos concertos que já estão marcados vamos fazer mais. Temos datas que estão em processo de marcação ou ainda não se podem divulgar e há outras que pretendemos anunciar em conjunto por outros motivos. Ao longo dos anos tocamos com regularidade e em Lisboa devemos ter se apresentado cerca de 15 vezes. Nos arquivos da banda, onde registramos os nossos shows, Lisboa é a cidade onde devemos ter feito mais concertos. Passamos por locais que já não existem e noutros repetimos a presença. O Bota é um sítio legal porque entre 2011 e 2013 tocamos em vários pontos do país em lugares deste gênero, promovidos por associações e grupos de pessoas que tinham gosto pela música ou pensaram juntar as pessoas e fazer algo pela sua cidade a nível musical. Estamos curiosos para ver este espaço funcionando como sala de espetáculos durante a noite.
Ao fim de 13 anos de atividade, os Birds Are Indie contam com seis álbuns, vários singles e EPs editados e muita estrada percorrida. Gostaria de saber como avaliam a relação com as pessoas que seguem a banda e se acham que os vossos melhores dias de criação ainda estão para vir?
Felizmente, nunca tivemos um pico enorme com uma música ou uma situação que nos fizesse ganhar notoriedade. O que acontece é que há mais pessoas a gostarem de nós, a seguir-nos, a ver o que fazemos e a comprar os discos. Mas sempre foi uma coisa gradual e espontânea. Muitas das pessoas que nos acompanham e vêm ver o show de Lisboa já nos conhecem e viram outros concertos e até falamos com elas pelas redes sociais de várias formas. Portanto, também há esse lado que nos mantém ligados às pessoas reais e ao que elas são. Há bandas que têm fãs e quando eles as vêm entram numa espécie de estado paranormal, mas nós não nos sentimos numa redoma. O nosso objetivo é que o público leve memórias do show e pontos de contato de pequenas histórias ou coisas que aconteceram e não só a sensação de que gostaram apenas da música ou que foi um grande espetáculo. Temos casos de espectadores que viram as nossas apresentações, conheceram novas pessoas e aquilo mudou as suas vidas. E inclusivamente já nos convidaram para tomar um chá na casa deles. Houve uma vez em Viana do Castelo (cidade do norte de Portugal) uma garota que disse para a Joana Corker autografar o disco em nome da Leonor (a filha que ia nascer), porque ela ia oferecê-lo a uma pessoa e seria assim que lhe ia contar que estava grávida. Deve ter sido um momento incrível quando ela entregou o CD. Há muitas histórias dessas com os Birds Are Indie. Gostamos de falar de diversas coisas, dissecá-las e pôr-nos em várias perspectivas porque isso até ajuda a escrever canções. Mas, a inspiração é uma coisa estranha. Parece que o criador é um veículo de algo divino e nós somos os escolhidos. A nossa posição é outra. No entanto, desconhecemos de onde ela vem. Como não é um aspecto trabalhado a nível técnico, preferimos que a inspiração faça o seu trabalho como fizer. Esperamos que os nossos melhores dias criativos sejam à frente porque não somos nostálgicos.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Tiago Cerveira / Divulgação.