texto por Marcelo Costa
Pouco mais de dez anos atrás, Jennifer Egan sacudiu o mundo (pop e acadêmico) literário com “A visita cruel do tempo”, trama deliciosamente extravagante e rock ‘n’ roll que pode tanto ser vista como um romance quanto como uma seleção inebriante de contos interligados mas estilisticamente diversos, da qual fazia parte um capítulo em forma de perfil/entrevista para uma revista e outro todo apresentado em slides de PowerPoint. O livro que rendeu a Egan o Pulitzer e o National Book Critics Circle Award de Ficção ganha, agora, não uma sequência, mas um irmão, pois, mais do que seguir com a história anterior, “A casa de doces” (2022) amplifica a lista de personagens (retomando alguns de “A visita cruel do tempo”), enquanto se debruça sobre questões caras do mundo moderno, tais como privacidade, tecnologia e autenticidade num cotidiano cada vez mais digital.
A relação entre real e virtual é um dos pontos marcantes de “A casa de doces”, pois um de seus personagens centrais, Bix Bouton (colega de faculdade de Sasha em “A visita cruel do tempo”), desfila nas páginas como um Mark Zuckerberg estiloso, criador não só da Mandala, uma espécie de Facebook, só que com um twist inovador: os usuários podem armazenar suas memórias e compartilhá-las com toda a rede em um banco de dados possível de ser acessado por qualquer um. A consciência coletiva permitirá que muitos usuários reconstruam lembranças e fatos passados, mas não é preciso pensar muito para chegar à conclusão de que uma ferramenta como essa pode se tornar um objeto de manipulação nas mãos erradas – ainda que, talvez, pudesse facilitar as consultas de terapia expostas em “A visita cruel do tempo”.
Dessa forma, “A casa de doces” flerta levemente com o mundo surreal de Black Mirror, uma série cuja característica principal é questionar com voracidade o poder incontrolável da tecnologia. Se em “The Entire History of You”, episódio lançado um ano depois de “A visita cruel do tempo”, as pessoas implantam um “chip” atrás da orelha que lhes permite gravar tudo o que veem e ouvem, com a opção de reproduzir suas memórias diretamente nos olhos ou em um monitor de vídeo, em “A casa de doces” há o Domine Seu Inconsciente, que tanto poderia ser utilizado para questões pessoais (“Quem era aquele menino que me bateu? Por onde anda aquele professor que me tocou? Quem matou meu amigo?” Ou, sendo mais otimista: “Quem fez aquela massagem nas minhas costas no show do Green Day?”) quanto para que empresas conheçam profundamente seu público e produzam produtos específicos – algo como se comentássemos sobre uma determinada marca, e, do nada, fôssemos “bombardeados” por propagandas em nossas redes sociais (já aconteceu com você, caro leitor?).
Como é de se esperar com criações inovadoras do tipo de Domine Seu Inconsciente, sempre existirão pessoas na contramão, que não apenas irão se recusar a participar desse projeto “manipulativo”, como também se tornarão soldados numa guerrilha que tentará nublar os dados da rede de maneira a tornar os resultados mais confusos possíveis. Essa é outra premissa explorada em Black Mirror, e que Jennifer Egan aprofunda com perícia em “A casa de doces” através da Mondrian, uma organização sem fins lucrativos com sede em São Francisco que administra perfis como forma de esconder da realidade que o ocupante original de uma identidade a deixou, para confundir os dados da Mandala. “A casa de doces” ainda traz um capítulo sobre espionagem (escrito em tweets!) e outro sobre uma personagem que, muito incomodada, busca uma maneira de verificar se não há nenhum objeto (tal qual um chip) implantado em seu corpo que o utilize para espionar outros.
Ainda que isso tudo seja “muito Black Mirror” (e também “Matrix Resurrections“), “A casa de doces” também pincela temas “mundanos” como amor, redenção, vício e a maneira que lidamos com o passado – algo que “A visita cruel do tempo” também colocava em discussão –, além de falar sobre a necessidade de desempenharmos um papel na sociedade na era da superexposição social. Sobre como vem daí uma sensação que fragmenta em centenas de milhares de pedacinhos tudo o que somos na busca do que queremos ser (ou do que achamos que querem que a gente seja). Replicamos certos padrões de comportamento para muitas vezes aparentar algo que não somos, imersos em uma teia delicada e confusa que diz mais sobre o mundo que vivemos do que sobre nós mesmos.
Mais do que qualquer outra coisa, porém, “A casa de doces” busca deixar claro que, seja no mundo real, seja no virtual, não existe almoço grátis. O surgimento do Napster e o compartilhamento de MP3 via redes p2p – atividades que mudaram completamente a relação das pessoas com a música e desmoronaram o império construído por Lou Kline, um magnata da indústria musical presente tanto em “A visita cruel do tempo” quanto em “A casa de doces”, cuja família, que inclui a esposa Miranda e as filhas Roxy, Lana e Melora, será bastante atuante nas páginas do novo livro – marca também o momento em que o benefício imediato da música gratuita surge em detrimento da privacidade do usuário, validando a frase: “Nunca confie em uma casa de doces!” É inocência acreditar em tanta bondade (ainda mais no século XXI). Uma hora, o boleto chega (principalmente se, a fim de vasculhar as memórias dos outros, você decidir compartilhar a sua).
Ainda que funcionem muito bem separadamente, “A visita cruel do tempo” e “A casa de doces” crescem ainda mais quando colocados lado a lado – e não estou me referindo apenas ao número de personagens, que, somados, deve chegar facilmente a cem nomes! São livros que, mais do que se valer de exemplos táteis no mundo moderno, falam de temas caros às pessoas sem soarem pedantes, piegas ou explicativos demais. Egan entretém enquanto coloca pulgas imaginárias atrás da orelha do leitor, deixando-o curioso não apenas pela página seguinte, mas pelo desenrolar daquela sociedade encapsulada nas páginas – que, bem, pode ser a nossa, ou quem sabe vir a ser. “A casa de doces” mantém o nível de uma escritora que não só parece brincar com as palavras, como também com a variedade de técnicas, sem perder o controle da narrativa.
“Saber tudo é muito parecido com não saber nada: sem história, tudo é apenas informação”, pontua em algum momento um personagem de “A casa de doces”. Outro avisa: “Todo labirinto tem uma saída.” E um terceiro: “Os finais felizes são pura questão de enquadramento.” Em um tradicional jogo labiríntico de gato e rato em que o leitor, curioso, anseia por antecipar os passos dos protagonistas, Jennifer Egan despista não só com a forma quanto com a profusão de protagonistas, e o resultado, delicioso, é uma obra que soa constantemente fresca, e que cresce com visitas posteriores. Num mundo em que poucos livros passam ilesos pela segunda leitura, “A casa de doces” não parece apenas se expandir; deixa fios propositadamente soltos, prontos para uma trilogia, e ficamos nós com aquele sorrisinho de curiosidade, além de muita expectativa. Será?
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.