texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Saiba como foi o Dia 2 e o Dia 3
É incontornável. A ideia de sair de uma pandemia que isolou grande parte de nós em nossas casas por mais de dois anos e vitimou 685 mil pessoas (números de setembro de 2022), ou seja, muito mais do que a população da grande maioria das cidades brasileiras, torna a possibilidade de encontrar pessoas em um ambiente aberto repleto de milhares de outras pessoas algo muito mais especial do que poderia ser. Estamos vivos, celebrando a vida, a amizade, o encontro e, no caso de um festival de música, celebrando também a cultura e tudo que está em seu entorno, de memórias a sonhos. Tudo soa mais bonito que era antes, afinal, quando nos é tirado algo, a gente passa a valorizar ainda mais quando nos é devolvido.
Nariz de cera básico, porém necessário, já que a felicidade estampada no rosto de 90 e tantos porcento do público presente no primeiro dia do Coala Festival 2022 (e que também pode ser replicado aos dias de Lollapalooza Brasil e Rock In Rio) deixa uma interrogação provocante: o público está se entregando de corpo, alma e reais buscando recuperar um tempo perdido e/ou querendo ser feliz a qualquer custo – afinal, agora está mais claro do que nunca, a vida é breve (se você não for da família real britânica) – pois tudo (absolutamente tudo) passou a ser divino maravilhoso (“atenção para o refrão”) e nada, quase nada, pode tirar a alegria tatuada em todos os rostos? Fomos vacinados contra a Covid e, também, quanto a infelicidade eterna?
“Sério que você quer jogar água na nossa cerveja?”, pode replicar o leitor, mas tome também como uma autocrítica, pois a sensação de caminhar no jardim de cimento de Oscar Niemeyer numa sexta-feira de garoa tipicamente paulistana andando com um sorriso de lado a lado num ambiente cujo Datapovo era óbvio (após um “Olê Olê Olê Olá, Lula, Lula”, Gilberto Gil emendou: “Tá chegando gente, é isso que a gente quer, espero que o Brasil inteiro queira também, ao menos é o que nós -aqui- queremos”) faz soar tudo uma pegadinha (trauma de “Marte Um”?), e mais do que isso, valida a máxima de que só é feliz quem não tem olhar crítico, o que pode gerar um monte de outras coisas e, bem, talvez não seja a hora e lugar, certo. A gente retoma…
As gêmeas Tasha e Tracie tentaram ser pontuais, mas uma falha no som atrasou o show das garotas do Jardim Peri, zona norte de São Paulo, em cerca de 20 minutos, o que foi bom, já que grande parte do público ainda estava nas filas de entrada do evento. “Diretoria” (2021), um dos discaços do ano passado presente na lista da APCA, foi tocado na integra e cantado pela geral, que celebrou a faixa título, “Lui Lui” (“Minha buceta é igual piano / Ele vem me amaciando”) e o single mais recente, “Willy”, num show redondinho – o público fazia brotar a ideia de que esse era o ambiente perfeito para “auri sacra fames”, canção de Don L que conta com presença poderosa das gêmeas, cuja parte delas faz falta no show dele, mas a regra não escrita – todos perceberiam depois – era não dizer nem se preocupar com o coiso. Nova era, novas regras.
Após um DJ set confuso (algo que se repetiria durante o dia, com uma feliz exceção), Liniker entrou saltitante no palco para “50 minutos de amor, esperança, alegria, negritude” e teve o público em suas mãos desde o começo da apresentação. Trabalhada na energia “Índigo Borboleta Azul” de seu elogiado disco de estreia solo e de uma banda pra lá de competente, com a metaleira comendo solta e o som chegando perfeito no ambiente, Liniker, totalmente à vontade em cena, relembrou sua primeira participação no Coala, em 2017, e também de onde veio cantando “Intimidade” e “Calmô” (gravada com os Caramelows) e seu primeiro grande hit, “Zero”, do EP “Cru” (2015), seguida de uma de suas melhores canções: “Baby 95”. “Diz Quanto Custa”, que no álbum conta com Tássia Reis e Mahmundi, fechou o show em alto clima.
O DJ set da Peroli funcionou melhor, ainda que, se a ideia seja entreter o público “passando o bastão” para a próxima atração, tenho havido certa desconexão. Gilberto Gil retornou ao Coala tocando como se estivesse convidando o público para cantar e dançar em sua casa. O começo (quase) acústico com “Expresso 2222”, “Chiclete com Banana” e “É Luxo Só” (uma velha canção de Ary Barroso) foi… um luxo só. Já a versão de “Garota de Ipanema” (valorizando a neta Flor em seus 13 anos valorizar Astrud Gilberto) soa menor assim como a linda “Drão” em arranjo suave precisando disputar atenção com as conversas do público. A coisa toda mudou de figura assim que Gil pegou a guitarra (e o grande Marcelo Costa colocou mais peso na bateria) para fazer todos dançarem / cantarem “Palco”, “Andar Com Fé”, a maravilhosa “Back in Bahia” (que raramente ele toca mas tocou nesse mesmo festival em 2018 a pedido da produção, e que assim como lá aqui soou desconhecida para o público), “Aquele Abraço”, “Stir It Up”, “Vamos Fugir”, “Tempo Rei” e, a mais celebrada e dançada do set, “Toda Menina Baiana” encerrando um show (família) bonito.
A cantora cabo-verdiana Mayra Andrade, nascida em Havana, que abriu o Coala Festival com um belo side show dois dias antes (entregando festa para os fãs de Rodrigo Amarante que foram reprimidos de bailar), assumiu o palco cantando “Afeto”, single que também abre seu belo registro mais recente de estúdio, “Manga”, de 2019. O show, infelizmente, foi marcado por problemas no som que perduraram durante quase toda a apresentação, o que não diminuiu a entrega e a animação de Mayra ou mesmo do público, que dançou “Limitason” e “Tan Kalakatan” cantando “um chá e incenso, um retrato e o gato, e a panela vazia” (ou melhor: “Só xá ku isensu / Litratu ku gatu / Panéla tan kalakatan, kalakatan, kalakatan”). “Tunuca” foi uma rara concessão a material mais antigo (do álbum de estreia, “Navega”, de 2006) e trouxe ao cabo “Manga”, a canção, dedicada às mulheres, “Vapor Di Imigrason”, dedicada aos imigrantes, e fechando com “Lua”, outra de “Navega”, um show dançante e aconchegante.
O DJ set seguinte não foi um simples DJ set, mas uma aula de apuro técnico e musical, e um dos melhores momentos musicais do primeiro dia do Coala Festival 2022. Simples assim. Kleber Geraldo Lelis Simões, aka, KL Jay, nem precisou mixar o verso que diz “será que ela aceita ir comigo pro baile? Ou ir pra Zona Sul ter um grand finale? Amor com gosto de gueto até às seis da manhã / Me chamar de meu preto e me cantar Djavan” para passar o bastão para o Samurai. Abrindo o set com “Baianá”, dos Barbatuques, mixada na sequência de maneira brilhante com “Boa Noite”, de Karol Conka, “Atípico”, de Djonga, “Ponto de Luz”, de Gal Costa, “De Kenner”, de FBC & Vhoor, “Nave Espacial”, de Liu & Samantha Machado, mais Cassiano, o “Ponto do Caboclo”, Vanessa da Mata, e, em homenagem às influências de Djavan (“Fiz uma pesquisa breve”, avisou), Nelson Gonçalves (“Só Nós Dois”) e Ângela Maria (“Babalú”): sério, foi lindo demais. Dai pra frente, tudo foi lucro. Até “Se Ela Dança, Eu Danço”. “Toca disco é um instrumento”, celebrou o DJ ao final. Pelo que vimos nesse dia 1, apenas para mestres.
Grande atração do primeiro dia do Coala, vindo de um show festejado no Rock in Rio, Djavan foi uma aposta ousada da produção, mas, realmente, era uma bola quicando pedindo para ser arremessada pra cesta. No repertório, um punhado de clássicos incontestes do cancioneiro brasileiro que, independente de terem sido surrados e maltratados em centenas de milhares de barzinhos país afora, soaram inteiras, brilhantes, reluzentes e, por incrível que pareça, únicas: a economia e elegância do arranjo de canções como “Se…”, “Flor de Liz” ou “Açaí”, em que a melodia respira, viva, na música, faz você lembrar de todas as versões repletas de adereços desnecessários tocadas por aí. “Oceano”, “Azul” (dividida com Liniker), “Eu Te Devoro” ou “Sina”, canções que sobreviveram aos críticos roqueiros dos cadernos culturais e revistas musicais dos anos 80 e 90, e também a execução maciça nas Alpha FM da vida, chegando em 2022 como obras primas que são celebradas num show em que o público não tirou o pé do chão, mas até aqueles que torcem o nariz saíram roucos.
Apresentando uma nova disposição, em que utiliza os dois lados do Memorial da América Latina, o Coala Festival acertou e errou ao mesmo tempo: ficou ótimo a abertura de mais espaço na área principal, com um palco lindo ornamentado com samambaias e um coala de prata para ser adorado no meio do espaço, mas deixar apenas um carrinho de pipoca (amanteigando o ambiente) como opção de refeição deixou a desejar, pois fez filas na área de alimentação (bastante variada) do outro lado, que não deram conta do fluxo de todo o público. O palco B nessa área, apenas com DJs, também poderia ser melhor usado (já que montou um palco, abre espaço para uma banda nova fazer um som, uma aposta mais descompromissada – nada contra DJs, apesar de que só funk, funk, funk encha o saco do mesmo jeito que seria se fosse só punk, punk, punk). E um truck de cerveja Lagunitas de cada lado facilitaria muito (hehe), pois cruel ter que atravessar toda hora a ponte para pegar a melhor cerveja do festival. Ou seja, é um novo formato que tem muito potencial, mas necessita de ajustes.
Musicalmente, a sensação é de que a alegria desmedida do público, que de tão feliz por estar novamente podendo compartilhar espaços com outras pessoas (não julgo, muito pelo contrário), e artistas e marcas publicitárias, parecia que qualquer coisa escalada fosse ser amada de maneira intensa e única, criando um certo desencontro tipo a audiência estar no nível 10 e os shows na frequência 7, o que, no decorrer do dia, foi se encaixando enquanto a adrenalina foi baixando – sem, importante, ter chego na comoção desmensurada do Rock in Rio. Ou seja, estava tudo bonito, gostoso de curtir para dançar devagarinho, cantar as letras, levar os filhos, um espaço calmo para a família (apesar dos funks repletos de palavrão), sem uma quebra de ritmo (talvez com KL Jay, ainda que seja outra coisa) ou algo que provocasse a plateia e a tirasse desse transe (quase drogado) de felicidade (que é bom, e a gente gosta, mas a arte pode ir além disso – e um festival de música é, também, um espaço de arte) quase monótona. Música calma para pessoas felizes enquanto o mundo acaba…
Mas esse é só primeiro dia, certo. O Coala segue neste sábado e domingo. Quem sabe…
Saiba como foi o Dia 2 e o Dia 3
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/