entrevista por Bruno Lisboa
Dois anos após o lançamento do álbum “O Caçador de Androides”, Yannick Hara está de volta ao Scream & Yell para falar sobre seus trabalhos mais recentes, os EPs “Terra em Transe” (divididas em dois volumes) em que presta homenagem ao cineasta Glauber Rocha, dono de uma das filmografias mais elogiadas da história do cinema brasileiro –são dele clássicos como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e o essencial “Terra em Transe” (1967).
O primeiro EP tem como subtítulo “Brasilis”, e o segundo, “Politiki”. Neles, Hara segue mantendo em voga que o que lhe é peculiar: beats complexos que se somam aos versos afiados sobre a dura realidade brasileira com uma descrença direcionada ao sistema político institucional. O beatmaker CrackPiece, o rapper Max B.O., o cantautor Tatá Aeroplano e o diretor Pedro Paulo Rocha (filho de Glauber) são algumas das participações presentes na série, que deve ganhar um terceiro volume em breve.
Na entrevista e no faixa a faixa abaixo, cedidos por e-mail. Yannick Hara fala sobre a nova fase (“Hoje não me preocupo mais em alcançar as pessoas, apenas faço música e as deixo para a posteridade”), a sua relação com o cinema de Glauber Rocha (“Ele é do povão e o rap é a linguagem desse povo que está cansado da política brasileira”), intenções para com o público a partir dos novos discos, participações especiais (Max B.O. e Tatá Aeroplano são os meus ídolos e trabalhar com eles foi uma imensa honra!”), a nova turnê e muito mais. Leia tudo logo abaixo!
Retomando o papo que tivemos em 2020 aqui no S&Y, queria que você falasse sobre como foi esse período de três anos para você. Sei que você é um cara que pesquisa muito e isso acaba por refletir no seu trampo. Então quais as diferenças artísticas que você percebe no seu trabalho quando se compara, por exemplo, com o disco “O Caçador de Androides” e essa sequência de novos EPs?
Primeiro gostaria muito de agradecer por estar novamente aqui no S&Y, o trabalho de vocês é incrível e maravilhoso. Nesse período de três anos eu realmente tive que recomeçar, tive que resetar a vida e mudar. Não foi fácil, foi doloroso, mas, depois que a dor passou, veio o despertar de uma nova maneira de viver e estou amando esse momento. É importante dizer que artisticamente, tanto o “Também Conhecido Como Afro Samurai” (2016), como o “Caçador de Andróides” (2019) e o “Terra em Transe Vol 1 e Vol 2” (2021/2022), são trabalhos pendentes dentro dessa minha mente de operário da arte em construção. Todos eles eu perdi a oportunidade de fazê-los antes porque procrastinei durante anos e anos e, se não fosse eu abrir mão de certas coisas nessa vida, nada disso seria possível.
Comparando hoje o processo do “Caçador de Andróides” com o do “Terra em Transe 1 e 2”, no “Caçador” eu não pude dar sequência ao trabalho por causa da pandemia – tive muita sorte de fazer o show de lançamento deste disco no Teatro do Sesc Belenzinho, em janeiro de 2020, mas, logo em seguida, veio o lockdown e todo um planejamento de desenvolvimento deste trabalho encerrou. Pude, sim, lançar singles com a narrativa cyberpunk, mas eles serviriam para acrescentar no “Caçador” o desenvolvimento maior dessa ficção, dessa prosa e até de uma possível cena, pois conheci muita gente que faz música cyber. Infelizmente, dentro do contexto da pandemia, pude apenas lançar e deixar para a posteridade essas músicas. Tenho certeza de que no futuro falaremos muito sobre alta tecnologia e baixa qualidade de vida, mesmo porque o “Caçador de Andróides 2” já está pronto.
“Terra em Transe Vol 1 e 2” nasceu de uma ligação que recebi do Pedro Paulo Rocha, filho do cineasta Glauber Rocha. Ele me contou que uma amiga muito querida, a artista Marina Veneta, havia falecido. Fiquei extremamente triste com aquilo, pois eu tinha a visto meses atrás do ocorrido e percebi, diante das várias circunstâncias, que essa morte poderia ser minha e que a vida é realmente um sopro. Como artista, tenho muitas ideias e naquele momento não poderia mais conceber procrastinação. Esse despertar me fez retornar ao Pedro Paulo Rocha e dizer “Irmão, bora fazer o Terra em Transe? Eu não quero morrer sem deixar de fazer esse trabalho com você”. Ele, claro, sempre muito sensível, topou, pois o convite já tinha sido feito em 2013, período em que o conheci – nas lutas, no ativismo daquele momento. Em três semanas, o “Volume 1 Brasilis”, como ele mesmo batizou, estava pronto. Ali, percebi que quando ponho ação criativa em qualquer coisa, algo acontece, algo nasce. Hoje entendo que inconscientemente esse tempo em que fiquei procrastinando, ou seja, deixando pra amanhã aquilo que eu poderia fazer hoje, auxiliou no expurgo que tive nessas três semanas e entendi também que, se eu paro, pesquiso a fundo e escrevo, a parada sai e a coisa flui, sabe?
Depois disso, veio a produção do filme que fizemos, um momento histórico na minha vida: ser dirigido pelo filho do Glauber Rocha, que com certeza tem a mesma didática, a mesma metodologia, o mesmo poder criativo do pai, foi um instante incrível na carreira. No meio de tudo isso, o “Volume 2 Politiki” já estava pronto e esperando a situação certa para o lançamento. Retornar ao Sesc Belenzinho (na primeira quinzena de julho), na Comedoria, foi um momento que marcou mais um renascimento do artista Yannick Hara e venho percebendo que renascerei muitas outras vezes como artista.
Resumindo: a diferença de um para o outro é que tive que abrir mão do “Caçador” e recomeçar o “Terra em Transe Vol 1 Brasilis e Vol 2 Politiki”, pois sempre foi uma vontade minha extrema falar sobre política como protesto e denúncia dentro do contexto do rap e ir contra o sistema, voltar à essência para reiniciar a minha vida artística.
Como se deu a relação / proximidade com o cinema do Glauber? Quais elementos serviram de base se encaixaram ao seu modus operandi?
Quando conheci o Pedro Paulo Rocha, ele me falou do pai dele e quando, na época, lá em 2013, assisti ao “Terra em Transe” eu simplesmente fiquei estarrecido pensando em como alguém faz um filme desse em 1967? Anos após, fiz o que faço quando me inspiro em algo: me aprofundei, mergulhei até onde podia ir e comecei a entender que o filme “Terra em Transe” é um rap, tem ritmo, tem atitude, tem poesia e muita, sabe? Muita mesmo. Glauber Rocha é do povão e o rap é a linguagem desse povo que está cansado da política brasileira.
Você retrata de forma crua e direta as dores do Brasil contemporâneo nessa série de EPs. Nesse sentido quais são as intenções você alimentou e deseja alcançar a partir desses trabalhos?
O “Volume 3”, que pode ser chamado “A Esquerda e a Direita Brasileira” ou “O Transe”, ainda estamos decidindo, está sendo gravado neste exato momento. Iremos ainda desenvolver o “Vol 2 Politiki” fazendo dois filmes que serão produzidos nesse ano (2022). A intenção é denunciar e descrever as fendas de 1964, 2013, 2015, 2018 e 2022. Hoje não me preocupo mais em alcançar as pessoas, apenas faço música e as deixo para a posteridade.
O novo EP, “Politiki”, é composto por sete faixas nas quais você reafirma parcerias com o beatmaker CrackPiece, mas promove novos encontros com Max B.O. e Tatá Aeroplano. Como foi o processo de composição do novo trabalho? Quais as contribuições o time de participantes / feats trouxeram para o resultado final?
Trabalhar com o CrackPiece é sempre incrível, a capacidade dele de criar cada timbre… A sensibilidade dele é gigantesca, fiquem de olho nesse garoto, fiquem de olho! Ter a benção de Tatá Aeroplano e Max B.O., dois artistas maravilhosos que deram todo um sentido para a obra… Max, pela proximidade que tivemos ao longo dos anos através de amigos em comum e da relação fã e ídolo… Vou aproveitar o momento aqui pra relatar um caso que rolou nos ensaios: toda vez que ele estava no estúdio, eu gelava, mano (risos). Fiquei muito nervoso, pois é um dos seus ídolos ali na sua frente, sacou? Errei a nossa música várias vezes nesses ensaios (risos). Tatá, conheci mais também pelo Pedro Paulo Rocha, já fizemos um jam juntos na Casa Amarela, talvez em 2014 ou 2015, e o conheci na época da antiga MTV (em meados de 2003) com o Cérebro Eletrônico e Jumbo Elektro. Um artista diferente, fã de Glauber Rocha, alternativo, que quando gravamos a faixa pro “Vol 2 Politiki” me ensinou muito e nos ensaios também me deixou muito nervoso (risos). São os meus ídolos e trabalhar com eles foi uma imensa honra!
“Politiki” gerou, para além do disco, um curta dirigido por Pedro Paulo Rocha, filho de Glauber. Não é de hoje a sua relação intrínseca com o universo do cinema, mas como a experiência de estar por detrás das câmeras?
Ser dirigido por Pedro Paulo Rocha foi um dos melhores momentos de 2022 com toda certeza, ele me ensina muito. Já acompanho os filmes do Pedro há anos e inspirado nele fizemos o documentário, o também “Brasilis”, que lançamos em maio no Cine Satyros Bijou. Essa obra ainda não está disponível na internet, pois haverá outras partes, a 2 e a 3, e queremos lançá-la todas juntas.
Como seu trabalho é carregado não só pelo som e / ou caráter lírico como será a produção visual para as apresentações que virão pela frente?
Teatral (como um musical), cenas do filme, performance corporal, execução das músicas. É um espetáculo para ver sentado, como um filme, como uma peça de teatro.
Faixa a faixa: “Terra em Transe Vol 1 Brasilis” e “Vol 2 Politiki”, por Yannick Hara
BRASILIS
01 – O BRASIL É A TERRA EM TRANSE
O disco ‘Brasilis’ inicia relatando o transe brasileiro durante a pandemia onde “Aqui não existe consciência / O que existe é ignorância misturada com fé e ciência”. Em seguida eu questiono sobre as mudanças na sociedade brasileira. Para mim, a mudança é permanente e não retrógrada, mas, sim, “só troca de lado”.
02 – O SANGUE DAS MASSAS
“O Sangue das Massas” descreve como o sangue do povo é usado até hoje como negócio dentro do sistema capitalista e como esse mesmo sangue é taxado por impostos pela política brasileira.
03 – A INGENUIDADE DA FÉ A IMPOTÊNCIA DA FÉ
Essa canção é inspirada na poesia do poeta Mário Faustino, a mesma poesia passa numa cena do próprio filme “Terra em Transe”.
04 – O QUE SABE VOCÊ DAS AMBIÇÕES
Inspirada na fala da personagem Sara, interpretada pela atriz Glauce Rocha, aqui falo sobre progresso e regresso; o que aconteceu com os protestos regados a Iphones e selfies.
POLITIKI
01 – CENÁRIO DE GUERRA (FEAT MAX B.O.)
Na canção que abre o “Volume 2 Politiki”, eu e Max B.O. falamos sobre esse Brasil do ódio, da guerra, do tempo sem paz, suas causas e consequências.
02 – PRPP (PARTIDO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS PROMÍSCUAS)
PRPP é uma sigla fazendo alusão a sigla dos partidos políticos, aqui conto como funciona esses partidos e suas relações promíscuas em nome do Poder.
03 – POLÍTICA É UMA ARMA PARA OS ELEITOS PARA OS DEUSES
Essa música usa um trecho da fala do personagem Diaz, interpretado pelo ator Paulo Autran. Aqui o óbvio é exposto: a política é uma arma para os eleitos, eles se tornam deuses.
04 – MORRA DIAZ E TODOS OS POLÍTICOS CORRUPTOS
Em tom de deboche declaro morte a todos os políticos corruptos. Nessa canção questiono os benefícios que os políticos têm, sendo que eles trabalham para o povo. Na lógica do capitalismo, se trabalhamos para alguém ganhamos menos que esse alguém; na política, não.
05 – A REVOLTA É RADICAL A MUDANÇA É RADICAL
É a revolta em forma de música em um trecho da música falo “E pra você que apertou 17 / Te desejo a lei do retorno / O retorno do 70×7 / Do seu perdão quero o estorno”.
06 – A IRRESPONSABILIDADE POLÍTICA (FEAT TATÁ AEROPLANO)
Inspirada numas cenas do filme “Terra em Transe”. Aqui eu e Tatá Aeroplano relatamos as consequências de ser irresponsável dentro da política.
07 – ACORDE ME DO TRANSE
É o clímax do disco, o grande final apoteótico onde convido o ouvinte a sair do transe. Antes, descrevo o transe e aponto ao despertar dele.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014.