entrevista por Bruno Lisboa
introdução por Bruno Lisboa e Marcelo Costa
Após uma terça-feira movimentada devido a um mandado de busca e apreensão da Delegacia de Repressão a Entorpecentes por investigação sobre “open maconha” em sua festa de aniversário no mês passado, o rapper carioca Filipe Ret desculpou-se via Stories com sua família pelo incomodo causado pela polícia, que o procurou em cinco endereços e o encontrou em um resort em Angra dos Reis, e finalizou dizendo que já estava bem.
O caso escancara o atraso não só da lei brasileira em relação ao consumo e compartilhamento de maconha (é notória uma história contada pelo CEO da Lagunitas, na Califórnia, sobre agentes disfarçados que tentavam comprar maconha dos funcionários da cervejaria para criar um flagrante de tráfico, mas ninguém vendia: “eles ofereciam de graça aos agentes”) como a falta de foco da Delegacia, que prefere autuar um artista a ir atrás dos verdadeiros traficantes.
Assim como o Planet Hemp nos anos 90, Filipe Ret virou foco da delegacia porque vive o auge de sua trajetória, e a polícia adora surfar na onda de quem é famoso (ao invés de ir atrás de políticos e militares envolvidos seriamente com o tráfico). Com números expressivos em redes de streaming, as músicas de Filipe Ret são ouvidas mensalmente por milhões de pessoas. Mas o sucesso de agora é fruto de longa caminhada de quase 20 anos de estrada.
Sua trajetória foi iniciada em 2003, época em que participava dos duelos de MC no bairro carioca da Lapa. Seis anos mais tarde, Ret lançaria seu primeiro disco, “Numa Margem Distante”, mas sua escalada de popularidade começaria a partir de “Vivaz” (2012) e do sucesso do single “Neurótico de Guerra”, e aumentaria ano após ano. Vieram, então, os álbuns “Revel” (2015), “Audaz” (2018) e “Imaterial” (2021), além de mais de três dezenas de singles!
Agora, em 2022, o músico colocou na praça seu projeto mais audacioso, “Lume”, que conta com participações de Anitta, L7nnon e MC Hariel, entre outros, investindo na fusão do trap com o funk e apostando numa linguagem crua / suja nas letras. Visualmente, o álbum foi lançado no Spotify em formato “Enhanced,” oferecendo uma imersão ao longo da audição com vídeos exclusivos, comentários e curiosidades sobre cada uma das faixas.
Em entrevista concedida por vídeo chamada no começo de julho, ou seja, depois da festa da aniversário e antes da perseguição policial, Filipe Ret fala sobre suas intenções com o lançamento de “Lume”, a fusão entre o trap e o funk, o mercado fonográfico de ontem e de hoje, sua verve lírica sem retoques, sua relação com a nova geração, seu novo selo (a Nadamal Records) e muito mais. Leia abaixo!
“Lume” chegou ao mercado fazendo barulho e das mais diversas formas. Seja por seu caráter visual, seja pelas músicas que tem uma cara mais moderna ou ainda pelas parcerias firmadas. Nesse sentido, quais são suas intenções com esse trabalho?
Cara, boa pergunta. Espero que tenha acontecido, de certa forma, uma fusão mais interessante, mais honesta do funk com o trap e o mainstream – com a participação da Anitta. Quero muito colocar o funk carioca no trap. Quero oficializar essa mistura trazendo nosso trap RJ junto com gente mais mainstream, o próprio MC Hariel também, que já está já está num outro patamar. Então acredito que a intenção é misturar esses gêneros, mas de uma forma bem legítima, tá ligado? Até porque minha criação musical, ela passa muito pelo funk. E eu nunca tive oportunidade de mostrar tanto o meu lado funk como nesse trampo. Ao mesmo tempo é moderno, né? É trap com funk mais do “futuro”, vamos dizer assim. Os funkeiros, aliás, estão fazendo trap pra caramba e estão fazendo muito bem.
Mas tem sempre uma galera do rap mais purista que acha que essa mistura de trap e funk é um negócio que não dá liga, que não deveria se misturar. Dai, como tem sido a recepção desse novo disco, principalmente dos seus fã das antigas? Tem gente torcendo o nariz?
Eu vejo o trap como vejo o rap, só que com muito mais liberdade. E acho que muita gente que não tinha coragem de fazer rap no trap pode experimentar buscando uma coisa com mais liberdade. Acho que o trap tem uma vantagem enorme porque não costuma ter muito “guardinha”, vamos dizer assim. Já o rap tem seus guardiões. Então isso é um ponto muito a favor do trap, que permite essa liberdade (de misturar). Tanto que consegui colocar a Anitta pra rimar no trap, mas não conseguiria botar pra rimar num boom bap, num rap, entende? E ninguém falou nada porque botei a Anitta no trap, muito pelo contrário: acharam ótimo. Se fosse no rap iriam ter falado, entendeu? Então é muito natural a liberdade do frescor que o trap traz e é muito importante também. O artista que cria com base no que o público quer, pra mim é um artista duvidoso. Porque eu acho que o artista determina, cara! Ele determina pra onde ele quer ir e as pessoas seguem o que ele está fazendo. Eu tenho certeza que em toda a minha caminhada do boom bap pro trap eu converti uma porrada de gente naturalmente, entendeu? Então não acho que tenho que olhar o que esses fãs antigos querem. Com todo carinho e respeito. Até porque eu até faço alguns sons mais boom bap ainda. A última faixa (“Todo Poder”) é pra esse tipo de fã. Mas deixo bem claro que já avançamos, entendeu? Porque se não perde muito sentido. A gente fica se orientando muito pra consequência, os fãs são uma consequência e eu não posso… aliás, agora estou criando meu próximo disco. Eu já estou lá em 2023. Então até sair esse meu disco para a galera ouvir, pra criar história, criar vida sobre aquelas músicas, eu já vou estar em 2025. Não tem como eu ouvir os meus fãs que recebem minhas músicas com muito delay, com muito atraso.
Sua carreira foi iniciada em 2003, período em que mercado da música era totalmente diferente de como é hoje. A internet cresceu de tal forma que se tornou a principal forma de produção de conteúdo para a classe artística. Como alguém que acompanhou in loco essas mudanças, como você vê o cenário atual?
Eu nem considero ali começo de carreira… porque fiquei de 2002/2003 até 2012/2013 para conseguir começar na carreira de fato, entendeu? Foram 10 anos para começar a viver disso. E aí quando eu começo a viver disso são mais 10 anos…
Eu entendo o que você quer dizer, mas cito esse início como parte do seu processo enquanto artista… E aí eu tô perguntando para, justamente, esse Ret de 2003. Quando você olha agora, para 2022, aquele Ret lá atrás pensava que você ia chegar aonde você está hoje?
Cara, acho que era o grande sonho dele, pra ser sincero. Porque, assim, tem uma coisa que as pessoas esquecem, que é curioso, que é muito coisa de fã, de quem tá de fora mesmo. É difícil de entender o artista porque eu sempre falei sobre adaptação nas minhas músicas, tá ligado? E você tem que fazer aquilo naquele momento e vender o que você tem ali. Tipo, as pessoas têm uma falsa sensação de que o meu primeiro disco é super original. Porque ele é o primeiro, né? Então tem aquela coisa do Ret puro. Mas não é. E por que não é? Porque fiz o “Vivaz” (2012) com aquele flow, com aquelas batidas, porque na época eu estava próximo daquilo que estava acontecendo naquele momento. Então, nunca quero estar muito distante daquilo que está acontecendo. Sempre há uma leitura minha próxima de onde está o olho do furacão, se ligou irmão? Então se você prestar atenção, o “Vivaz” tem o mesmo flow do Emicida, do Projota, do Rashid, que estavam estourados na época. Eu só coloquei a minha leitura sobre aquilo, falando de maconha, que é algo que eles não falavam, e usando melodias que eles não botavam. Lógico que também tem minha filosofia, minha lírica, trazendo toda a minha linguagem pra isso. Mas a parte técnica é muito da época. Então as pessoas criam uma ilusão de aquele era o Ret puro, mas já era o Ret se adaptando, igualzinho ao de hoje.
Aí entra o que eu acho que é ser artista: ele é fruto do seu tempo, né? Então, por exemplo, quando peguei o “Lume” pra ouvir a primeira vez eu vi ali, de certa forma, o Ret das antigas, vamos dizer assim, abordando o cotidiano. Mas você sempre faz isso de uma maneira muito pessoal e crua, de certa forma, sem temer represálias, que muitas vezes é um caminho que nem sempre todo mundo opta por essa questão de retratar o cotidiano sem medo. E por que você opta por seguir esse caminho? Qual a importância para você de não ter esse medo de representar as coisas como elas são?
Eu acho que a forma de contar as coisas mudou de lá para cá. O apelo estético também mudou e, a meu ver, melhorou muito. A tecnologia melhorou. Ainda acho maravilhoso o auto-tune. Pode ser que logo ali na frente também eu mude de ideia. Mas, não querendo me diminuir, não tenho a pretensão de ser pretensioso pra caralho no meu trabalho comercialmente. E sou bem pretensioso. Mas não tenho a pretensão de inventar a roda nas faixas. Posso fazer uma coisa aqui, posso fazer uma coisa ali, mais experimental? Sim, fiz, tá ligado? Mas normalmente estou bem próximo onde o olho do furacão está, contando da minha forma aquele momento. Acho que é isso exatamente o que eu faço. O lance da represália, de contar como as coisas são, você está falando de ser explícito nas paradas?
Isso. Eu vou dar um exemplo: tem gente que não gosta do funk ostentação e prefere optar por outro caminho. Você, por exemplo, consegue transitar tanto nessa linha quanto ter um pouco de caráter político nas suas letras. E hoje falar de política é um caminho que muita gente tem medo de trilhar. E você não impõe limites para a sua arte…
Fico sempre pensando muito em como montar (um álbum) e ser essa persona no imaginário das pessoas. Penso muito sobre isso. Trabalho muito essa questão de gosto. Então demorei muito tempo para saber como que eu ia encaixar as últimas duas faixas (do “Lume”), entendeu? E elas encaixaram. E foi ótimo assim. Eu queria muito que elas entrassem, que a última faixa entrasse. Acho que o meu maior prazer é mostrar todas as faixas, todos os meus lados. O que a gente quer, no fim das contas, existencialmente é ser amado. O sonho é que todos os nossos lados sejam abraçados. Que todo mundo veja que é só você. Que é uma pessoa com todos esses lados, o que acho que configura esse meu desejo de querer mostrar o máximo de lados possíveis, o mais honestamente possível e fazer as pessoas gostarem de todos os meus lados. Eu também não acredito muito no artista que tem muito filtro ligado. Acredito que tem que ser um pouquinho fio desencapado, tá ligado, mano? Eu tenho isso naturalmente. O “Lume” é um disco bem desbocado. Eu, pessoalmente, sou muito desbocado. Falo muito palavrão, é uma coisa comum pra mim. E esse é o disco com mais palavras, vamos dizer, explícitas. E tudo se vai completando…
Eu queria que você falasse um pouco de como você é um cara que veio de um outro tempo da indústria. Quando você lançou o seu primeiro disco, a indústria da música não era como é hoje, onde, por exemplo, o Spotify, as redes de streaming, de modo geral, mandam muito mais do que o formato físico, por exemplo. E analisando essas diferenças daquela época, de quando você começou e de como é hoje, você sente muita diferença? Você gosta do cenário hoje, da maneira como as coisas são lançadas? Ou você é um pouco saudosista e gostava da época anterior?
Posso dizer que sou zero saudosista. Ainda mais vendo o retorno que tenho hoje. Recebi hoje a planilha do pagamento e o meu maior lucro foi do meu último mês. Então tenho zero saudade daquele tempo que eu era duro (risos). E a parte boa é também proporcionar aumento de cachê da equipe. Isso pra mim, mano, é a mudança de fato. É poder ter liberdade para trazer uma Anitta, trazer um Caio Luccas, que veio da Baixada, que está explodindo, que nasceu ontem na cena. Eu sou um entusiasta dessa cena atual. Sou o cara apaixonado por esse momento. Por essa cena. Choro vendo moleques que nem são da minha banca. O Domlaike e o MD Chefe, por exemplo, eu me lembro de chorar vendo-os subindo no palco, porque foram os primeiros shows deles. Me emociono como um irmão de verdade.
Isso talvez tenha a ver um pouco com você lembrando de como foi para você lá atrás também, de certa forma, o seu início…
Eu entendo como é essa correria. Na época em que eu estava fazendo eu não conseguia enxergar porque eu estava muito na batida. Então hoje eu, talvez, com um pouquinho mais de idade, consigo olhar eles começando e choro de ver a importância do quanto isso vai transformar a vida deles ainda. O quanto eles têm carinho pelo trampo. Isso é transformador. Isso é revolucionário. Então, sou apaixonado por essa cena de hoje. Outro dia eu estava trocando ideia com os moleques e eles me ouvem. A gente está sempre trocando uma ideia e um está sempre acrescentando no trabalho do outro. A gente tem que saber mexer nos números. A gente tem que ter mais cabeça no lugar. Não dá para ser aquele rockstar drogado que não sabe de porra nenhuma que está acontecendo. Isso já acabou há muito tempo. A gente tem que saber estar em todos os lugares. Montar, melhorar, fortalecer os selos, entendeu? Acho que o Rio de Janeiro, assim, modéstia à parte, o nosso lado aqui está fazendo isso, dando aulas para o Brasil através de relacionamentos de selos, de feat, de união. Acho que a gente tem feito uma coisa bem legal no Rio.
Já que você falou em selos, para finalizar gostaria que você falasse da Nadamal Records. Você fundou o selo no ano passado e acho que vem um pouco nessa linha de tentar dar uma visibilidade para uma galera que você admira. De certa forma, você está também alimentando a cena a partir da sua curadoria. Então como é que nasceu essa ideia e como tem sido a experiência?
Cara, eu estava há dez anos cuidando da Tudubom (selo musical), ganhando mais de 1 milhão de seguidores. E aí tive um certo afastamento natural com meu produtor, que também queria criar com outros artistas e ele ficava muito preso a mim. E, enfim, naturalmente, a gente foi se distanciando e comecei a trabalhar com o Dallas, com o Anezzi, com Johnny Monteiro, que era de uma outra galera. Acabou que depois eu fiquei um tempo no limbo pra entender o que ia acontecer. E teve um momento em que eu fui e criei a Nadamal, que seria uma Tudubom 2.0 do trap, com outros negócios, entendeu? Só que tendo o Ret em comum. Eu acredito muito nesse game dos selos, das crews. Acho que isso fortalece e muito e aquece muito bem a cena. Tá ligado? Acho que a Nadamal é essa transformação. Comecei a trabalhar e me identifiquei. E estamos vivendo esse momento, tá ligado? É basicamente isso. Já temos o TZ, Caio Luccas, Anezzi, PJ Houdini, Dallas. Vai ter agora o anúncio do próximo MC, que vai ser junto com o lançamento do “Visão de Cria 2”, que é projeto da Nadamal. Aqui a gente tem uma outra visão, a gente preza muito pela nossa relação no grupo. É tipo uma academia de construção de flows, de estudo, de todo mundo melhorar as técnicas. Então a gente troca muita informação e a gente está sempre promovendo as festas e a tropa vem. A gente está sempre celebrando esse momento também, trocando informação com outros selos. Mas o que eu ia falar é que a Nadamal tem um sistema que é o seguinte: todos os artistas do selo, cada um, tem o seu canal, mas no canal do selo a gente se une para fazer os projetos. Já tem alguns singles lá que bateram bastante, acho que 8 milhões. O canal é bem pequenininho, mas já tem umas conquistas expressivas e com certeza vai crescer. E virão outros projetos. Um acústico… quem sabe. Veremos.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014.
Os feats hoje são as melhores formas de impulsonar os artistas da cena, Anitta sempre ajuda os parceiros a subir pro topo das plataformas