texto de Gabriel Pinheiro
Uma mulher aguarda há mais de duas décadas o retorno de seu noivo, durante a ocupação indonésia no jovem Timor, no sudeste asiático. Até que um dia, um homem, de quem nada sabemos, chega em sua casa. A partir deste encontro, a narradora passa a compartilhar suas memórias com ele, dando início a um longo relato acerca da história de seu país e suas tragédias, suas guerras, as diferentes ocupações por países estrangeiros e sua resistência. Vencedor do Prêmio Oceanos, “O plantador de abóboras” (2020) é o primeiro livro do autor timorense Luís Cardoso publicado em 2022 no Brasil pela Todavia Livros.
Se nada sabemos sobre este interlocutor misterioso, pouco parece saber também a mulher. “Não tenho memória das tuas mãos. Não sei quem sejas”. Este homem deseja aprender a plantar abóboras. O que ela acha estranho, não entende, já que por experiência de sua própria família, este é um cultivo de pouco rendimento – melhor seria plantar café. “Ainda queres plantar abóboras? Ou foi algo que te ocorreu dizer para justificares a tua vinda? Onde andaste escondido?”. Essas serão algumas das perguntas frequentemente repetidas pela personagem ao longo de todo romance. A repetição incessante, aliás, é uma marca da narrativa e de sua protagonista, o que diz tanto das obsessões da personagem quanto da fragilidade da própria memória. “Calculo que estejas farto de ouvir da minha boca a mesma música de uma mesma partitura e ainda não sei quando e como acaba aqui”.
Memória esta habitada pelo triste passado de conflitos desta pequena e jovem nação asiática. “Somos um pequeno país que viveu um grande pesadelo e de repente acordou abastado. Não sei se vivemos uma vida de sonhos ou de faz de conta”. O Timor tem um longo histórico de guerras e ocupações violentas por nações estrangeiras. Todo esse passado sangrento ganha vida pelo vertiginoso discurso da personagem. Dos “malae colonialistas” de Portugal aos “kamikazes japoneses”. Mais recentemente, o país foi ocupado pela Indonésia: “Nem queiras saber o que fizeram os bapak enquanto aqui estiveram. Nem queiras saber. Não precisas de saber”.
Luís Cardoso desenvolve uma contundente reflexão acerca dos males da guerra e da violência inerente ao colonialismo. Seus efeitos devastadores sobre os cidadãos, sobre a população nativa e, especialmente, sobre as mulheres. “Numa guerra ninguém faz considerações morais: ou se mata ou se morre. Mata-se e pronto. Mastate quantas pessoas, antes de entrares nesta casa para me dizeres que gostarias de plantar abóboras? Não precisa me responderes”. Um ciclo de violência que se perpetua, mesmo após o fim dos domínios estrangeiros, também entre irmãos contra irmãos.
“O plantador de abóboras” é uma narrativa singular, numa prosa profundamente lírica. Se traz certa fluidez da língua falada, Luís Cardoso nos pede calma e atenção para a leitura do labiríntico relato de sua personagem, onde habitam personagens históricos e fantasmas de seus antepassados. “Cada pessoa carrega dentro de si os seus fantasmas à espera da ocasião propícia para os largar”. Se a dor é uma constante nas lembranças desta mulher, há também uma sensível beleza, em sua persistência, na resistência frente aos horrores que marcam a história de seu país. Como diz o engenhoso fidalgo Dom Quixote para seu fiel escudeiro Sancho Pança – o clássico de Miguel de Cervantes é outra obsessão da personagem: “Porque no es posible que el mal ni el bien sean durables, y de aquí se sigue que, habiendo durado mucho el mal, el bien está ya cerca” (porque não é possível que o bem e o mal durem para sempre, e segue-se que, havendo o mal durado muito tempo, o bem deve estar por perto).
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.