Texto por Dri Cruxen
Fotos de @bieco.garcia
Cultura isentona em 2022? Combina não. E em festivais de música independentes, menos ainda. Quem já é frequentador está acostumado com as manifestações políticas dos artistas desde o golpe de 2016, e agora intensificadas com o pesadelo do desgoverno Bolsonaro. Com a censura pairando no ar, a resistência cultural se faz cada dia mais necessária e presente na música independente como um grito de BASTA!
Para que não seja mais um discurso vazio entoado para uma juventude supostamente engajada e sim um movimento de ação, a ONG Engajamundo se uniu ao Fervo no stand “Engajafervo” e chamou os frequentadores do evento à responsabilidade de votar, já que a única forma de acabar com esse desmantelo é nas eleições. A campanha #SemVotoSemVoz deu chance para quem quisesse tirar ou regularizar o titulo de eleitor durante o evento para votar este ano. Os músicos tampouco deixaram de frisar essa chamada ao voto consciente no decorrer das performances, como vem acontecendo em todos os festivais do país nesta retomada pós Covid.
O primeiro dia de Fervo começou com longas filas e atrasos na passagem de som, o que fatalmente atrasou tudo. Isso foi um problema? Não. À medida que as pessoas iam entrando, já corriam ao bar – o evento era open bar incluindo gin, vodca, cerveja, whisky, água e refrigerantes, o que elevou o valor dos ingressos, que chegaram a ser vendidos a R$260 reais (por dia) no último lote. Quem quisesse comer por lá, tinha opção de hambúrguer convencional ou vegano por R$35, pizza de sabores variados ou batata frita, R$15 reais.
A grande sacada do festival foi colocar a Orquestra Backstage (PE) na entrada do evento tocando grandes sucessos, desde Beatles até Nação Zumbi, em ritmo de frevo. As pessoas bebendo, curtindo a música, nem sentiram os atrasos dos shows. Parecia carnaval. Aliás, o festival teve o nome Fervo de Carnaval não foi à toa, já que tudo era para ter acontecido em fevereiro. Só que nas datas do carnaval, o governo de Recife impediu todas as festas com mais de 300 pessoas, inviabilizando o Fervo e todo o carnaval pernambucano.
O Festival tinha originalmente no cartaz Marina Sena, Duda Beat e Gilsons, que acabaram substituídos por conflitos de agenda.
DIA 1
As 20h, Natiruts subiu ao palco do Fervo “na positiva” e deram o tom de como seria a noite de abertura, com toda aquela vibração elevada a que estamos acostumados. “Há uma luz que vem pra me dizer, ‘tudo vai dar certo’”, cantou Alexandre Carlo e sua big band profissionalíssima, trio de metais, backing vocais, percursão, e toda aquela chuva de hits que os acompanham nesses 26 anos de carreira. Enquanto a plateia ensaiava um “olê olê olê, olê, Lula, Lula”, Alexandre, sempre moderado e de fala mansa, nutria os corações com seu otimismo “O Brasil vai melhorar, vamos votar”.
A Francisco El Hombre subiu ao palco com aquela energia de quem vai correr uma maratona e já gritou para a plateia “quem não pula é miliciano”. Se você já viu alguma performance deles sabe que ter preparo físico é importante para sobreviver até o final do show, porque não existe a menor possibilidade de alguém ficar parado. Diferente do tom moderado do Natiruts, a Francisco é aquela banda que fez música chamando o presidente de escroto (Bolso Nada), fala abertamente para os fãs pararem de mandar ele tomar naquele lugar, porque é uma delícia e emenda sempre um “Bolsonaro é o carai” em ritmo de cumbia.
Além dos sucessos que poderiam ser facilmente tocados numa aula de ginástica, como “Chão, Teto, Parede – Pegando Fogo” e “O Dólar Vale Mais Que Eu”, existe “Triste, Louca ou Má”, que é uma canção feminista tão potente e que ganhou mais relevância ainda com a entrada da Helena, no baixo. A música “Arranca a Cabeça do Rei”, inédita, foi testada com ótima resposta do público. A Francisco terminou sua apresentação de uma horinha do jeito que começou, pulando: “Vamos fazer ele cair, vamos fazer o chão tremer”, com a ótima “Calor da Rua”.
A grande atração do dia 1 foi o BaianaSystem. Era pra ter sido uma catarse coletiva como acontece rotineiramente nas apresentações do Baiana, e no final acabou sendo, mesmo com o som baixo e abafado. Mais cedo, na passagem de som, o Baiana teve problemas técnicos. Regados com bebida à vontade, alguém ia se incomodar com som baixo? A galera cantou tudo. O frenesi do público segurou as pontas e tudo foi bom de qualquer jeito. O Baiana é famoso por sua identidade visual e pelo caráter afrolatino de suas obras, e esse intercâmbio de sons se elevou ainda mais com o piano erudito de Ubiratan Marques, que tem acompanhado essa tour do “OxeAxeExu”.
Quase duas da matina, tocando em casa, Shevchenko & Elloco entraram com muita pirotecnia, dançarinos e fogos de artifício. Vários funks, Nação Zumbi e o mega sucesso “Chapuletei”. Quem cogitou ir embora não foi.
DIA 2
O segundo e último dia de festival, que estava previsto para começar 18:30, teve mais filas e mais atrasos de shows. A produção, esperta, deixou o público tranquilinho com mais uma dose de orquestra, dessa vez a Orquestra do Maestro Oséas, o mais requisitado do carnaval de Olinda. Frevo, muito frevo e mais frevo para todo mundo ensaiar pro carnaval de Olinda 2023.
Atrasado, Johnny Hooker, artista da cidade, subiu ao palco para iniciar os trabalhos. Performático, com seu slut pop com altas doses de brega bolero, sua bailarina com seios à mostra e seu bailarino sexy deram show à parte. Ele abriu o show com “Amante de Aluguel”, single bastante conhecido dos fãs, que estará no novo disco, que tem previsão de sair ainda este semestre. Sedento por palco, dois anos sem tocar em casa, Hooker presenteou o público com a inédita “Cuba” – “Só de te ver eu tenho vontade de largar tudo e fugir pra Cuba”, muito aclamada pela plateia.
Quem acompanha Johnny nas redes sociais sabe o quanto a pandemia foi um divisor de águas em sua vida. Pouco tempo antes de liberarem a vacina, Hooker perdeu para a Covid um de seus melhores amigos, André Soares, com quem tocou por mais de 10 anos. “Amor Marginal” a ele foi dedicada. Com menos de 1h de apresentação, o artista foi avisado pela produção que estava sem tempo para tocar; ignorou e convidou o amigo também pernambucano, Jáder, para cantar junto “Larga Logo Esse Boy”, parceria deles. Jáder é outro que está prestes a lançar seu disco, o debute intitulado “Quem Mandou Chamar”. Johnny Hooker sempre engajadíssimo lembrou todo mundo de tirar o título e votar em outubro, não quis citar o presidente, mas mandou um “Olê Lula”, megahit do festival. Para encerrar a noite, “Desbunde Geral” em clima de carnaval com serpentinas saindo do palco e a plateia delirando.
Todo mundo estava pronto para ver o Silva tocando “Bloco do Silva”, mas ele resolveu começar devagarzinho com sua voz de veludo e deixar os axés mais para frente, e por fim entregou o que a galera sedenta por carnaval queria ouvir. “Toda Menina Baiana”, “Nobre Vagabundo”, “A Luz de Tieta” e o hit mais lindo “A Cor é Rosa”, todos cantados e bailados.
Depois de explodir na cena do rap com “Esú” e “Bluesman”, Baco Exu do Blues estava de volta à Recife para tocar seu recém saído do forno, “QVVJFA”. Falar de amor e sexo nunca foi um problema para Baco, que tem esse tema escrachado em suas canções mais famosas. Entrou no palco com a potente “Dois Amores”, suficiente pra fazer os fãs se esguelharem. Seguiu com “Mulheres Grandes”, a linda “Lágrimas Negras”, sampleada com a voz da Gal Costa, “Sei Partir”, a deliciosa “Samba em Paris”, surra de novidades nunca tocados ao vivo em Recife mas que pareciam velhas canções conhecidas do público, que cantava tudo.
A cantora pernambucana Mirella Costa dividiu o microfone com ele em “Me Desculpa Jay Z” e ainda emendou “Ain’t No Sunshine” em “20 Ligações” com vozeirão que arrepiou a plateia. Mirella está fazendo backing vocal nessa tour com o Baco, e encheu os pernambucanos de orgulho nessa conexão REC-SSA. Ao cantar a autobiográfica “Autoestima”, Baco mostrou que nunca esteve tão orgulhoso de si, e até arrancou uns gritos de “gostoso” das fãs mais assanhadas. Com “Inimigos Mortos” pregou o não ataque e sim a resistência. “Todo mundo no amor, ninguém vai se machucar”. Encerrou com “Te Amo Disgraça” e “Flamingos”, que, claro, não poderiam ficar de fora.
A missão de encerrar o Fervo de Carnaval era do Àttøøxxá. O open bar rolando solto, ninguém estava a fim de ir embora. O que o Baiana não entregou o Àttøøxxá transbordou. Som altíssimo, sucessos “Pra Te Machucar”, “To Te Querendo” com a linda voz da Luedji Luna, “Aquele Swing”, muito funk, reggaeton, rave, rodinha punk, putaria satisfaction, o Àttøøxxá entregou tudo. Imagina a cena: 3 da manhã, e os baianos tocando “Eu Não Vou Embora” no ritmo de “Seven Nation Army”. De enlouquecer. A música “Vai Ferver” que virou hino do festival, foi tão quicada, tão arrochada, que nessa hora não existia ninguém, desde a galera que estava trabalhando no bar até o pessoal da limpeza, que já tinha começado a limpar o cenário, não existia um ser humano que não estivesse suado da cabeça aos pés. E o Fervo terminou assim, fervido, fritado, suado. E ensaiado pro carnaval 2023.
– Dri Cruxen é uma jornalista nômade digital, que desde 2011 viaja pelo país em busca de vivenciar um pouco da cultura brasileira. Acumula festivais de música na bagagem desde o SWU e ama comer em restaurantes veganos.