entrevista por Ananda Zambi
Três anos após seu elogiado autointitulado álbum de estreia, o LADAMA, coletivo formado por mulheres do Brasil, Colômbia, Venezuela e Estados Unidos que visa usar a música como ferramenta de transformação social e empoderamento, chega ao segundo disco de estúdio. Lançado pelo selo Six Deegree Records e produzido por Kassin, “Oye Mujer” (2020) busca tratar da experiência humana diante das crises globais e das grandes catástrofes pelos quais o planeta vem passando, como a destruição ambiental sem precedentes – incluindo o rompimento de barragem em Brumadinho, em 2019 – e as precárias políticas de imigração, sempre levantando também a questão do empoderamento feminino.
Formado em 2014 durante o programa OneBeat, residência artística na Califórnia, o grupo une as forças da colombiana Daniela Serna, da brasileira Lara Klaus, da venezuelana Mafer Bandola e da estadunidense Sara Lucas, e chegou a levar seu primeiro álbum ao número 1 dos rankings de música latina do iTunes e da Amazon. “Oye Mujer”, por sua vez, é um disco tão político quanto democrático: as integrantes se revezam nos instrumentos e nas vozes, misturando diversos ritmos como ijexá, cumbia, samba, soul e pop e entoando canções em português, espanhol e inglês, com participações especiais de maestro Spok e Lucas dos Prazeres (Brasil), Betsayda Machado e Mesticanto (Venezuela) e Eliot Krimsky (EUA).
Na entrevista abaixo, Daniela, Lara, Mafer e Sara falaram sobre processo de construção da identidade da banda, relação com a sociedade nas esferas local e global, educação musical, entre outras coisas. Confira:
Em “Oye Mujer” vocês falam, através da ótica da mulher, de temas e acontecimentos muito pertinentes ao mundo atual, como a destruição ambiental sem precedentes e as políticas falhas de imigração, e misturam vários ritmos, como ijexá, fandango, merengue dominicano, cumbia, samba, soul, R&B e pop. Como foi o processo de alinhar temas tão pesados com sonoridades tão leves?
Daniela: Para falar dessa relação entre letra e música é preciso entender que, como banda, estamos em um processo de crescimento, e “Oye Mujer” é uma evolução, é nosso testemunho do que vimos viajando pelo mundo. Entramos em estúdio no Rio de Janeiro com a clara intenção de experimentar, e durante a gravação entendemos que arriscar era importante. Assim, criamos um som próprio para “Oye Mujer”, diferente não só do que soa nosso primeiro disco como também do que cada uma de nós já compôs e já gravou em outros projetos. O aporte, a guia, a cumplicidade e a simplicidade da ética laboral de Kassin foi a chave para alcançá-lo. Lembro-me que o Kassin nos disse no terceiro dia de gravação: “É difícil definir vocês como banda”, e não disse como algo negativo, mas foi vital reconhecer desde o princípio que isso precisamente segue sendo nossa fortaleza. A diversidade não só cultural, mas também de pensamento permitiu que “Oye Mujer”, além dos ritmos que você mencionou, alimentou-se constantemente de diversas influências e inquietudes. É o caso de “Mar Rojo”, uma canção que nasceu em parceria com Monokike (músico colombiano) em seu estúdio em Bogotá a partir de um sample de uma bandola llanera e com a inquietude de criar um joropo-trap que se transforma em cumbia. Para mim, “Oye Mujer” é um álbum muito rico em termos de textura e de cor de som, mas também tem uma ampla gama de emoções. Existe uma emoção coletiva de cada canção e creio que precisamente essa capacidade de mudar emocionalmente como mulheres foi a ponte perfeita para equilibrar a mensagem das letras com a liberdade criativa de experimentar com sons novos para a banda.
Vocês são três mulheres da América Latina (Brasil, Colômbia e Venezuela) e uma dos Estados Unidos. Apesar de fazerem parte do mesmo continente, são dois lugares completamente diferentes no que diz respeito a privilégios. Nesse sentido, o que vocês aprenderam, trocaram umas com as outras desde que o conjunto foi formado?
Mafer: Desde que nos encontramos e por tudo o que atravessamos, reconhecemos poderosamente a diversidade como um aspecto que nos define. Constantemente discutimos aspectos de nossas experiências e contextos para compreender privilégios, injustiças ou desigualdades baseando-se em uma visão polidimensional. Buscamos compreender de que maneira a injustiça sistemática e a desigualdade social afeta nosso entorno. É dizer que nosso enfoque interseccional nos faz reconhecer que nós não só viemos de quatro países diferentes como também de famílias, culturas, educação e oportunidades diferentes, aspectos que tratamos de estudar em sua total complexidade para dar explicações mais claras aos comportamentos sociais. Venezuela, Colômbia, Estados Unidos e Brasil são universos muito diferentes não só porque uns estão ao sul e outros ao norte. Os privilégios ou desigualdades são relativos se olharmos para eles através de cada uma de nossas lentes.
No TED Talks, vocês afirmaram que “Ao invés de pensar globalmente e agir localmente, o Ladama atua globalmente e pensa localmente, usando a música para entender a globalização”. Qual a diferença, na prática?
Sara: A música é um jeito de entender como cada comunidade cria formas únicas de expressão. Quando o LADAMA entra em uma nova comunidade para interagir, tocar ou criar música com outras pessoas, reconhecemos que, em vez de insistir no uso de uma estrutura pedagógica considerada “mais correta”, as comunidades locais possuem sua própria maneira de se expressar através de som, do movimento, do ritmo e da música. Nós tentamos acessar isso primeiro usando a percussão corporal, que é um jeito básico de internalizar em nossos corpos os ritmos que são compartilhados entre culturas do mundo inteiro, para comunicar. E sabemos que, a partir disso, qualquer coisa pode acontecer e nós esperamos e aceitamos o que vier. Nosso objetivo é criar um diálogo, não necessariamente um produto. Dessa maneira esperamos combater muitos dogmas da globalização – apagamento da diversidade, de idiomas e de culturas que com frequência são assimiladas ou perdidas na corrida por conseguir um capital industrial. Mas não seríamos uma banda se não fossem os subprodutos da globalização, isto é, tecnologia, facilidade de deslocamento, negócios da indústria musical que alcançam virtualmente todas as partes do planeta. Então, nosso papel como uma banda internacional é, de fato, global, mas nossa filosofia e pedagogia são muito enraizadas na crença de que comunidades locais possuem a infinita capacidade de falar por si mesmas.
Vocês também promovem atividades educacionais. Pra vocês, qual é a importância da educação musical?
Lara: A educação musical é um dos pilares do LADAMA. Dizemos o tempo todo que “criar é existir”. Acreditamos que a educação, aliada à música, é uma poderosa ferramenta de transformação social. Desde a criação do LADAMA, o nosso objetivo principal sempre foi compartilhar nossa música e cultura com comunidades que naturalmente não teriam acesso a elas, além de mostrarmos em especial às meninas e jovens, que elas podem ser líderes de suas próprias vidas, seus próprios futuros. Por meio das nossas oficinas, buscamos fazer com que as pessoas se conectem com quem realmente são, com seus desejos e aspirações. A música possibilita o desenvolvimento cognitivo e motor, além de estimular a criatividade e promover o bem-estar e a saúde social e mental. Nós usamos ferramentas de criação musical, composição e dinâmicas que envolvem expressão corporal e o canto, fazendo com que as pessoas acabem percebendo suas capacidades e habilidades, olhando para si mesmas e se empoderando de quem são.
O mundo já está em estado de alerta por conta do Coronavírus. Além disso, está vivendo sob fortes movimentos de extrema direita – que promovem o racismo, o machismo, a xenofobia, entre outros preconceitos – e governos autoritários como, por exemplo, o de Trump nos EUA e o de Bolsonaro no Brasil. O release de vocês diz que “Cada Uno defende a manifestação de ideias revolucionárias para aumentar a unidade coletiva. Defender o que você acredita é um veículo vital para a mudança social.” Como vocês acham que essa mudança social pode ser possível através da música?
Sara: Falando a verdade ao poder. Porque os Estados Unidos e o Brasil estão rapidamente se transformando em países fascistas, e falar a verdade é necessário para sobreviver. Nós iremos usar nossa música e nosso meio para fazer isso. Educação também é uma chave. A aprendizagem experiencial permite que pensadores críticos floresçam e desenvolvam complexas e compassivas sociedades baseadas nas necessidades das pessoas. E nossa pedagogia como educadoras é baseada em práticas de aprendizagem experienciais.
– Ananda Zambi (@anandazambi) é jornalista e editora do Nonada – jornalismo travessia. Nas horas vagas, também brinca de fazer música.” A foto que abre o texto é de Desdemona Dallas