Zona para Respiradores #07, por L. Lyra
No Deserto, com os Tuaregues
(uma playlist inspirada na coluna / leia as colunas anteriores)
“Eu sou a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma”. Este verso poderia ser de Bob Dylan, mas é de Caetano Veloso. Nem só o Bardo de Duluth nem Walt Whitman contêm multidões: nosso Caê também. Ele é quem dá o mote para o tema desta semana:
Hoje partilharemos a música tuaregue, feita no deserto do Saara. Canções cujo sentido não compreendemos, pois é praticamente impossível encontrar qualquer tradução sequer para o inglês. O que sabemos apenas, confiando nos pesquisadores que registraram alguns desses artistas, é que as letras têm conteúdo político e denunciam a opressão e falam do cotidiano empanado de violência no continente africano.
O meu preferido é o Group Inerane, que já apareceu no texto passado, e que merecia um texto solo. Não se sabe bem até que ponto tudo é planejado ou defeito de fabricação, isto é, falta de meios suficientes pra fazer algo melhor e perfeito. O caos desta canção, por exemplo, lembra Velvet Underground, ou melhor, faz parecer que o Velvet Underground ouviu isto e decidiu mergulhar na insanidade:
Menção especial deve ser feita para Les Filles de Illighadad. Illighadad é um pequeno vilarejo na Nigéria, e Fatou Seidi Ghali, a desbravadora e pioneira, a primeira mulher tuaregue a tocar guitarra profissionalmente – repare também na percussão. Não fazemos mínima ideia do que elas cantam, mas tudo neste vídeo é bastante compreensível, imediato e apaixonante:
Mdou Moctar é tão surpreendente quanto as meninas nigerianas. Fácil e difícil definir este extraterrestre: o Prince do Deserto (ele interpretou Prince num remake cinematográfico de “Purple Rain”), o Jimi Hendrix de Agadez (note o espetáculo que é ver ele fazer miséria na guitarra), o Jeff Beck tuaregue (ele não usa palheta), o Van Halen de Abalak (lá pelo meio do solo ele começa a fazer um tapping e depois incorpora uns petelecos na coisa toda, o que estranhamente também recorda os dedilhados só com polegar e indicador da Elizabeth Cotten). Eu também não acreditaria. Só vendo pra crer, segura o queixo:
Em entrevistas, alguns guitarristas dizem que só foram conhecer Hendrix depois que o Ocidente os descobriu. O que é bastante curioso, e fortalece a tese de que o blues é sempre a raiz de tudo (mesmo que eles usem outra escala, o sentimento está ali, a estrutura está ali, basta ouvir pra perceber). Esta que é uma das canções mais conhecidas de Bombino, outro guitar hero, é exemplo perfeito dessa ligação ao blues:
Ry Cooder, o slide guitar inconfundível de “Paris, Texas”, se reuniu a Ali Farka Touré, uma das lendas da guitarra, num disco lindíssimo. Aqui vai “Bonde”:
Ainda de Mali vem Toumani Diabaté, o gênio da kora (espécie de harpa). Sua união com Farka Touré gerou alguns discos juntos, por isso deixo apenas a faixa inicial de um deles para dar o tom:
Damon Albarn, que só foi bobo o bastante pra brigar com o Oasis por uns par de anos antes de decidir que não valia a pena se medir por tão pouco, também sacou logo o talento do Toumani Diabaté:
Nos despedimos com uma nota de esperança, na nossa guitarrista favorita, Helen Ibe. O canal dela no youtube é recomendadíssimo, tem desde covers de Prince, Hendrix, Sam Cooke, até aulas de guitarra africana. Impossível resistir ao seu carisma e ao seu talento. Boa semana!