entrevista por Pedro Salgado, de Lisboa
A história dos Mancines começou em 2010, na cidade de Coimbra, quando Pedro Renato (composição, guitarra e teclas) se juntou a Raquel Ralha (letras, voz e auto-harpa), Gonçalo Rui (guitarra e teclas) e Toni Fortuna (letras, voz e guitarra) com o objetivo de criar um projeto que servisse de trilha sonora para retratar vidas pessoais, viagens e férias, entre outros assuntos. Pedro e Raquel já tinham sido colegas no Belle Chase Hotel, Toni esteve mais ligado ao rock nos Tedio Boys e M’as Foice e em conjunto com Gonçalo Rui iniciaram o processo de gravação do álbum de estreia. Ao fim de alguns anos, quando reuniram as músicas num todo coerente, estrearam-se com o disco “Eden’s Inferno” (2015).
Em “Eden’s Inferno” é notório o conceito estético de Pedro Renato (que já fez música para cinema), apoiado em ambientes escuros, nos quais se retêm as faixas “Time” e “Una Notte Indecisa” e onde a banda encena livremente um jogo de sombras e tentações. Outras das características do trabalho dos Mancines é variedade de línguas em que é cantado. “Não há um idioma específico para cantarmos os nossos temas. Acho que é uma coisa meio cinematográfica, que serve para apresentar qualquer filme, seja europeu, americano ou numa língua mais estranha. Por isso, não existe um limite para a forma como expressamos uma determinada mensagem”, explica Toni Fortuna.
Após a edição de “Eden’s Inferno”, o quarteto esteve cinco anos sem lançar um novo disco. O motivo do silêncio discográfico deveu-se a diversas atividades dos seus integrantes. Entre outras ocupações, Pedro Renato e Raquel Ralha editaram “The Devil´s Choice Vol. 1” (2017) e Toni Furtado fez trabalhos com o d3o (banda coimbrense que Toni também integra). “Temos vários projetos e os Mancines é um deles. Isso não significa que seja menor que os outros, pelo contrário. Envolvemo-nos tanto que nem demos conta de terem passado cinco anos”, conta Pedro Renato.
Relativamente ao novo trabalho (“II”), a banda não usou o processo clássico de gravação, em que todos os elementos estão presentes no estúdio e gravam juntos (fruto da pandemia) e as questões geográficas levaram a que tudo fosse feito por partes. Mesmo assim, o resultado final foi bastante animador e representou um decolagem do ambiente negro de estreia para um pop solarengo, que contempla sonoridades como o funk ou a new wave e as novas canções sugerem diversas imagens e significados. Pedro Renato justifica a via seguida pelo fato dos músicos dos Mancines terem “evoluído moral e musicalmente com o passar do tempo” e acrescenta: “A vivência de 2020 é diferente de 2015 e os temas de “II” representam melhor o atual estado do grupo”.
O imediatismo do single “Is This A Go?”, no espírito ‘good clean fun’, um pop requintado cantado em português, “O Poço” (com letra de Samuel Úria), tal como a releitura agradável de “Fado”, dos Heróis do Mar ou a interpretação de “Come Tu Mi Vuoi” (do compositor italiano Nino Rota) sobressaem. Mas, o álbum destaca-se também pela magnífica “Spirit Of The Blues”. Sobre a canção, Pedro Renato recorda uma velha história quando era parceiro de JP Simões no Belle Chase Hotel e partilharam a sua composição antes da edição do disco de estreia do grupo (“Fossanova”, de 1998). “O JP escreveu a letra e eu fiz a música. Temos um carinho muito grande pelo tema mas, na verdade, ficou guardado numa gaveta durante todos esses anos. Como o Belle Chase Hotel acabou e não o gravou, senti que fazia sentido incluir a “Spirit Of The Blues” no alinhamento do álbum dos Mancines. Pedi autorização ao JP Simões para me apropriar da música e gravá-la com a letra dele e foi assim que aconteceu”.
Quando lanço o desafio para deixarem uma mensagem aos leitores do Scream & Yell, Toni Fortuna apela ao interesse do internauta brasileiro: “Nós pretendemos fazer a trilha sonora do cotidiano de uma pessoa e esperamos que alguém do outro lado do Atlântico também se identifique e divirta-se com a nossa música”. Enquanto Pedro Renato revela a sua paixão pela música brasileira e acredita na reciprocidade. “Desde garoto que eu coleciono discos de bossa nova e tropicalismo e a música brasileira foi muito importante na minha vida. Nesse sentido, espero que nos recebam de braços abertos como nós acolhemos os seus artistas”. Complementarmente, Pedro mostra igual admiração por bandas mais recentes como o Los Hermanos e o Pato Fu e exprime um desejo: “Nós adoraríamos tocar no Brasil e, provavelmente, ficaríamos lá (risos)”, conclui. De Coimbra para o Brasil, Pedro Renato e Toni Fortuna, dos Mancines, conversaram com o Scream & Yell. Confira:
Qual é a origem do nome Mancines?
Quando procuramos um nome para o grupo, algo que é sempre complicado, resultou numa dor de dentes incrível (risos). Por um lado, queríamos que tivesse uma associação ao universo cinematográfico. Por outro lado, pretendíamos criar um vínculo familiar entre os integrantes da banda, como acontece com o Ramones. Nesse sentido, Mancines, que foi uma das primeiras hipóteses, agradou-nos. Tem um pouco a ver com Henry Mancini e soou melhor do que Morricones (risos).
Os músicos dos Mancines integraram bandas históricas como o Belle Chase Hotel e o Tédio Boys e atualmente fazem parte de outros grupos de Coimbra como The Twist Connection, Azembla’s Quartet ou d3o. Gostaria de saber se foi difícil encontrarem uma ideia que se traduzisse num caminho musical comum?
Esse caminho está mais fácil agora. Olhando para o disco atual (“II”), existe uma identidade diferente neste grupo de pessoas. Realmente, o que faz sentido neste projeto e no fato de estarmos todos juntos, mesmo com backgrounds diferentes, é o querer juntar diversas experiências, que nós temos, por tudo o que já fizemos, mas procurar fazer algo distinto do que já fizemos. Se estivermos satisfeitos com o produto que vai saindo, excelente e se as pessoas gostarem, melhor ainda.
A animação, o romantismo, a sedução e o sonho estão bem presentes no novo álbum. No entanto, essas características parecem concorrer para um sentimento mais amplo. Concorda?
O novo álbum, ao contrário do primeiro, é alegre, colorido e arejado. Enquanto o “Eden’s Inferno” (2015) fazia jus ao nome, era mais escuro e tinha uma espécie de paraíso dentro do inferno. É interessante verificar que as letras do novo álbum não foram escritas em conjunto, mas dirigem-se para um lugar comum. Quando juntamos as peças, verificamos que estamos falando a mesma linguagem. Até o layout das fotografias do grupo, que parecia ser do século passado, deixou de ser soturno e ficou mais aberto e colorido. Por isso, este trabalho tem mais frescor e romantismo do que o anterior.
Os Mancines fazem parte de uma cena musical que continua em franca ascensão. Atribuem esse fato ao papel de Rui Ferreira e do selo que ele dirige (Lux Records) ou acreditam que existe uma característica comum às bandas de Coimbra que as torna apelativas?
Acho que há um denominador comum, mesmo que as pessoas agora não estejam na mesma área geográfica. Mas, tudo passa por gostarmos de determinados assuntos. Houve uma colheita em várias décadas que foi criando raízes semelhantes, desenvolvendo aptidões e preferências por alguma coisa, que quando se juntam podem ser mais ou menos apelativas, dependendo de quem vê. Isso passou por apreciar determinados filmes, trilhas sonoras, livros e por uma cultura que era divulgada por fanzines e outras pesquisas. E essa necessidade tornou-se um gosto. Quando tudo é conjugado torna-se interessante. Mas, de fato, há muita gente criativa em Coimbra fazendo música. Para além disso, temos a sorte de ter uma pessoa como o Rui Ferreira, que é apaixonado pela música e pelas bandas que edita. O Rui cria as condições todas para os grupos locais poderem extravasar e darem o seu melhor.
Em face da atual conjuntura, pretendem fazer lives para divulgar o disco ou têm outras ideias para promover o “II”?
Vivemos um momento de incógnitas. A live pela Internet não é muito apelativo para os Mancines e em termos sonoros terá pouca qualidade. No entanto, estamos tentando trabalhar mais as redes sociais, porque deixámos essa realidade um pouco de lado durantes esses anos todos. Estou falando de clipes e animação para alguns temas do disco e à medida que formos avançando, lançamos esse material na Internet. Atualmente, os palcos físicos estão fechados e não sabemos quando irão abrir, por isso temos de improvisar. Mas, o fato de não haver concertos, para já, pode gerar a necessidade das pessoas procurarem a música e de a escutarem de uma forma mais concreta, seja em disco ou nas redes sociais. No entanto, julgo que num futuro próximo teremos shows ao ar livre.
Qual é o grande objetivo da banda?
O objetivo principal dos Mancines é sobreviver, fazendo o melhor que pode num país de 10 milhões de habitantes. No momento, as coisas não estão fáceis, porque os artistas vivem dos palcos e não dos discos. Como todas as bandas, alimentamos um sonho maior: sair um pouco de Portugal e atuar internacionalmente. Mas, isso não é uma obsessão. Para já, pretendemos continuar fazendo música, lançar discos com um interregno menor do que cinco anos (risos), dar o máximo e tentar que o nosso trabalho chegue ao maior número de pessoas. E se aquilo que fazemos e gostamos de fazer agradar-lhes, ótimo.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Bruno Pires / Divulgação.