texto de João Paulo Barreto
“Breaking Bad” (2008/2013), pilar da TV no século XXI e série definitiva em termos de construção de roteiro no que tange aos arcos dramáticos de seus protagonistas, trazia Walter White, personagem magistralmente interpretado por Bryan Cranston, em uma perfeita curva dramática de 180 graus a representar todas as violentas mudanças que a sua vida teve em dois anos de trajetória errática. Refletindo de modo exato o “ficando mau” do seu título original na figura de Walter a se transformar gradativamente no “cozinheiro” de metanfetamina e assassino Heisenberg e, claro, tendo que lidar com as brutais consequências de seus atos, a série trazia um brilhantismo na escrita de seu criador, o roteirista e diretor Vince Gilligan.
Na escrita de Gilligan era perceptível um respeito pela sua audiência fiel, colocando de maneira crível as situações daquele mundo do crime em paridade às frustrações profissionais de um inteligentíssimo, mas fracassado, White, que se vê, aos 50 anos, com uma esposa grávida, um filho com paralisia cerebral e com a data de sua morte agendada por um câncer devastador. Torcíamos por aquele homem que, devagar, vai ganhando nosso asco e rejeição por seus atos. Assistindo “Breaking Bad”, o público sentia a segurança de estar diante de um seriado dramático que privilegiava tanto a humanidade de suas figuras centrais (o Jesse Pinkman de Aaron Paul e sua devastação psicológica, por exemplo), quanto a noção de realidade que os profundos temas da série traziam consigo.
Dentro desse variado grupo de personagens inesquecíveis estava Saul Goodman, o competente advogado com um, digamos, flexível código moral. Vivido pelo notório comediante do programa de auditório Saturday Night Live, Bob Odenkirk, Goodman, a partir de sua aparição original na segunda temporada de “Breaking Bad”, passou a roubar (sem trocadilhos) todas as cenas nas quais participava. Sua sagacidade como advogado só se equiparava com o poder que ele tinha em observar as brechas legais do Direito e como isso o ajudaria a lidar com seus clientes traficantes, assaltantes, espancadores e trambiqueiros em geral, para usar apenas quatro adjetivos. Todos eles culpados, friso.
Odenkirk, na pele do asqueroso Goodman, tinha uma personalidade magnética, que levava os olhos dos fãs de “Breaking Bad” diretamente a ele. Ao acabar a série, no distante setembro de 2013, mais do que um encerramento do perfeito arco dramático de Walter White e da curiosidade pelo que aconteceu a um liberto Jesse (algo que só descobrimos ano passado, no não menos brilhante “El Camino”), ansiávamos por saber mais da trajetória de Saul Goodman (ou it´s all good, man!, em sua referência à malandragem inerente ao dono daquele pseudônimo).
Corta para fevereiro de 2015, e o primeiro episódio de “Better Call Saul” vai ao ar pela Netflix. Nele, não é o repugnante Saul Goodman que aparece, mas, sim, um adorável Jimmy McGill, o carismático e boa praça advogado que se esforça para ganhar (pouco) dinheiro como defensor público em causas onde os réus são pessoas sem condições financeiras para arcar com os custos processuais gerados pelos seus crimes. Passando-se cinco anos antes dos eventos iniciados em “Breaking Bad”, “Better Call Saul” trabalha o desenvolvimento e mutação de seu protagonista de modo parcimonioso.
Esse é o ponto mais notável no crescer dessa, digamos, gênese de vários elementos que vimos na outra série criada por Vince Gilligan, que, aqui, tem como co-criador o roteirista e diretor Peter Gould. Não há pressa em criar rimas temáticas forçadas entre as duas séries visando qualquer catarse dos fãs. Um dos méritos é uma independência temática e de ritmo entre os programas. Claro que, logo de cara, estão dois queridos e conhecidos personagens: o próprio Goodman (ou Jimmy) e o competente “consultor de segurança” da rede de restaurantes Los Pollos Hermanos, Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks). Mas Gilligan e Gould, juntamente a um azeitado grupo de roteiristas (muitos deles oriundos de “Breaking Bad”), sabem de modo preciso como construir aquelas pontes entre os seriados.
Vivendo à sombra do peso do nome McGill, que tem na figura do seu irmão mais velho, o renomado e bem sucedido advogado Charles “Chuck” McGill (Michael McKean, o eterno David St. Hubbins, de “This is Spinal Tap”), a imponência e o respeito social advindo da nata da profissão do Direito, Jimmy é apresentado pela série que leva seu futuro bordão como nome, em uma rotina de trabalhos estafantes e de cuidados pelo irmão doente e semi-aposentado. No carisma e personalidade magnética do homem, além do seu histórico de trambiques e problemas com a lei, um disfarçado atrito com o irmão idoso, que suporta Jimmy por precisar dele, mas não nutre a mínima confiança no caçula.
Nessa construção de amor e desprezo, a necessidade da presença de Jimmy em sua vida gera a Chuck uma amarga sensação de manter por perto alguém que precisa estar em constante vigilância devido ao seu histórico de desonestidade. Tendo, hoje, um diploma de advogado, as tendências perigosas de seu irmão mais novo se multiplicam. E essa relação é um dos pontos para entendermos como Jimmy caminhou para se tornar Saul, alguém cuja necessidade de andar na linha já ficou para trás há tempos.
Nas citadas pontes entre as duas séries, vemos ressurgir pouco a pouco personagens marcantes como Hector “Tio” Salamanca e Gustavo Fring, figuras cujas origens já conhecemos, mas que têm, aqui, seus desenvolvimentos a pavimentar suas personalidades insanas, assassinas e calculistas. Mas é na figura de Mike, o articulador de olhos mortos, mas um adorável vovô preocupado com o futuro da neta, o outro lado de uma balança dramática precisa.
Tendo seu passado violento e traumático como o ex-policial que perdeu um filho para colegas corruptos na força, destrinchado de maneira densa pela série, o Mike Ehrmantraut de “Better Call Saul” dá a Jonathan Banks uma oportunidade de (des)construir aquela figura anti-heróica que aprendemos a amar em “Breaking Bad”. Em tal desconstrução, a dor do pai que perdeu o filho, mas soube vingá-lo de maneira catártica, é o que é salientado de maneira pontual na melhor origem que a série trouxe logo em sua temporada inicial.
Caminhando para o seu sexto e derradeiro ano em 2021, “Better Call” Saul se consolida, junto ao recente “El Camino”, como o terceiro pilar desse universo ficcional indefectível criado por Vince Gillingan há 13 anos. A inteligência do seu público cativo agradece.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.