entrevista por Renan Guerra
“Eu quero é cantar / eu quero é dizer sim para os meus sonhos de criança”, canta Noal em “Sonho de Criança”, quarta faixa de seu disco de estreia. Cantor e compositor nascido em Tapera, no interior do Rio Grande do Sul, e radicado em Porto Alegre, Noal habita e viaja por diferentes bandas com seu “Bicho Solto” (2020), trabalho de estreia que apresenta de forma sólida um compositor e cantor instigante, que merece sua audição atenta.
Sempre linkado à música, Noal passou por diferentes bandas na adolescência, porém só se descobriu como compositor em 2015 e é desse processo de encontro com sua própria poesia que nasce o novo disco. 12 canções inéditas, compostas por Noal e construídas sonoramente em conjunto com sua banda, composta por Leonardo Bittencourt no piano, André Mendonça no baixo, André Garbini na bateria, Bernard Simon e Ives Mizoguchi nas guitarras. O disco foi gravado no estúdio Casona, em Porto Alegre, mixado em Buenos Aires, no estúdio EL PIE, por Bernard Simon e Ives Mizoguchi, ambos produtores do disco, e masterizado, em São Paulo, por Carlos Freitas no Classic Master.
“Bicho Solto” tem uma poética que o faz transitar pela MPB, por ecos do rock gaúcho e por uma estrada bastante pop, com um olhar delicado sobre o universo ao nosso redor: amor, amizade, cotidiano e o certo nonsense de tudo isso transformado em canção. Para apresentar um pouco do universo de Noal, conversamos com o artista via e-mail, em papo que pode ser conferido abaixo:
Na sua biografia consta que agora depois dos 30 você decidiu se dedicar inteiramente à música. Como foi esse processo, quais eram suas ocupações posteriores e como foi o momento de realmente entender-se como cantor e compositor?
Acredito que a pergunta seja sobre as ocupações anteriores. Bem, eu iniciei aulas de violão aos 7 anos incentivado pelos meus pais, nasci numa casa musical, com vinil na sala e alguns violões das minhas irmãs espalhados pela casa – elas tentaram, mas a música não era a praia delas. Na juventude tive inúmeras bandas e ali já me descobri como cantor, mas não como compositor, escrevi algumas músicas na época, e lembro que não gostava muito, tinha vergonha e acabei nunca mostrando elas nem mesmo pros meus colegas de banda. Aos 18 anos ingressei na faculdade de administração, na época meus pais não apoiaram que eu fizesse faculdade de música, e assim iniciei meu ”primeiro trabalho” reconhecido pela sociedade, fui estagiário no banco do estado do RS e posteriormente broker em empresas de investimentos. Durante essa época de facul, montei também uma produtora de eventos junto com um amigo de Tapera e posteriormente tive uma casa de shows no município de Ibirubá, no interior do estado. Foi a forma que consegui me manter conectado com a música naquele período, já que havia parado de tocar, após ver eliminada a opção de fazer faculdade de música. Mas tive o privilégio dos ventos conspirarem ao meu favor e poder produzir eventos, festivais, colocando no palco bandas de pouca expressão da região norte do estado e também inúmeros outros artistas renomados que sou fã, como Titãs, Calton Coffie, Humberto Gessinger, Cidadão Quem, Chimarruts, etc. Logo após finalizar a faculdade me desfiz da produtora e voltei a trabalhar como broker, dessa vez de commodities, profissão que atuei até julho de 2019. A real é que muitas coisas aconteceram entre os anos de 2013 a 2015 na minha família e no mundo, problemas de saúde, acidentes, perdas de pessoas próximas, catástrofes, crises políticas, sociais, ambientais, além do retorno de saturno, astrologicamente falando! Isso tudo mexeu muito comigo e aí veio a necessidade de mudança de vida ao me enxergar estressado, desgostoso com o trabalho, com a minha rotina, 100% afastado da música e desconectado do meu corpo e com o que acredito que seja a minha essência. No final de 2015, decidi tirar um tempo sabático, para refletir, para me cuidar e resolvi mergulhar nas profundezas do meu mar interior. Acabei tendo a sorte de encontrar violão nas duas casas em que me hospedei durante esse processo. Foi uma conexão muito forte com o instrumento, aquela vontade de tocar e sentir a música ressoar em mim estava guardada e me esperando a muito tempo. Em 5 meses compus mais de 20 músicas, me descobri como compositor, e retornei a Porto Alegre a fim de gravar e mostrar elas pro mundo. Foi então que descobri que o meu amigo Bernard Simon, vizinho de infância e também guitarrista de algumas das minhas bandas na juventude, havia acabado de abrir um estúdio em Porto Alegre. Mostrei as canções pro Ber, que me recomendou trabalha-las com o Ives Mizoguchi. Fui fazer aulas com o Ives, e no homestudio dele estudamos uma a uma das canções, funcionou como um verdadeiro laboratório sonoro, experimentamos ritmos, cores, timbres, formas, jeitos e lá que se formou o esqueleto do álbum “Bicho Solto” durante esses últimos anos. Com isso, acabei ganhando dois produtores pro meu disco, o Ives e o Ber decidiram assinar juntos esse trabalho e foi muito legal ver eles se fundindo e serem um só durante esse trabalho todo.
Você é bem do interior do RS, hoje em dia morando em POA, porém suas canções habitam lugares bem múltiplos, não necessariamente dentro de caixas como “rock gaúcho” ou “neo MPB”. O que te influencia e o que você andava ouvindo durante a construção de “Bicho Solto”?
No interior a música chegava pra gente via rádio, sou filho dos anos 80 e cresci ouvindo as bandas nacionais de maior sucesso que permeavam as programações, como Legião Urbana, Barão Vermelho, Mutantes, Capital Inicial, Lulu, Skank, Jota, várias bandas do rock gaúcho e logicamente chegavam artistas internacionais, mas esses geralmente via cd, através dos colegas de banda. Mas em 2015, quando compus a maioria das canções do “Bicho Solto”, estava escutando muita bossa nova e mpb, porém estava morando nos EUA e o streaming chegou como uma biblioteca que eu não imaginava ser tão grande e me deliciei nela! Neste ano, recebi a retrospectiva do Spotify 2019 e ouvi mais de 750 bandas/artistas, faixa de 2 novos por dia, é muita gente! E acho que o “Bicho Solto” tem um tanto dessas nuances no seu DNA, vindo de muitas vertentes e também de muitas mãos, principalmente dos produtores do disco que estudaram uma a uma das canções e também dos músicos que comigo arranjaram as músicas nos ensaios pré-gravação.
Você acredita que ainda há algum tipo de restrição ou distância para quem constrói uma carreira fora desses eixos sempre esperados, como Rio-São Paulo?
É o meu primeiro disco, estou no início dessa caminhada e vou sentir com o passar do tempo, mas creio que hoje a arte não tem mais fronteiras, se ela for verdadeira poderá habitar qualquer espaço. Porto Alegre está com uma cena artística muito forte, cheia de talentos e trazendo também muitos artistas de fora para se apresentar aqui. Ontem mesmo fui no show do Paulo Novaes, casa lotada, e ele comentou que mora atualmente em Lisboa, o artista está com uma tour e um público bem legal aqui no Brasil. Mas se em algum momento surgir a oportunidade/necessidade de mudança de cidade/estado na carreira estou aberto para encarar.
As canções apresentadas em “Bicho Solto” foram construídas quase que de forma coletiva com a sua banda em estúdio, já que você trazia as músicas em voz e violão e a partir daí vocês montavam o todo. Como foi esse processo de gravação?
Foi um processo aberto, de trocas, de sentirmos em banda as canções, o que cada uma tinha para dizer e onde poderíamos chegar juntos. Eu e os produtores já tínhamos um norte, um esqueleto do que queríamos, esse montado durante anos de trabalho, mas o estúdio é um laboratório e deixar os musicistas livres para arranjarem nos seus instrumentos com abertura pra opinar, dar ideias, foi um processo bem interessante e nos levou pra outros lugares.
Antes do lançamento, saíram três clipes visualmente muito bonitos, essa preocupação estética era algo importante para você? Como funciona para você esse casamento entre a canção e as imagens propostas?
Quando estávamos com o trabalho musical pronto, começamos a estudar formas de divulgação e notamos a importância de se ter videoclipes no lançamento dos singles. A escolha estética surgiu em cima da análise de cada canção. Fizemos o primeiro teste com “Lola”, fomos presenteados com uma animação linda criada pelo João Salazar, artista que assina capa e encarte do disco, e tivemos uma resposta muito bacana do público. A partir daí trabalhamos os outros dois singles também com vídeos, nos misturando com outras artes como cinema, teatro, dança e notamos o quanto a música cresceu com essa união.
O seu disco foi fruto de um financiamento do Governo do Estado do RS e da Secretaria da Cultura chamado Pró-Cultura, como você percebe a importância desse tipo de fomento para que novos artistas floresçam?
Políticas públicas que visam o desenvolvimento da cultura do nosso povo são essenciais. Os artistas emergentes necessitam muito de apoio e ter leis de incentivo acessíveis a esses ajudam a trazer seus trabalhos à tona. “Bicho Solto” é um exemplo disso, nós não conseguiríamos ter o trabalho que temos hoje aí na rua sem esse financiamento. E o mais legal é que toda cadeia produtiva que envolve a gravação de um disco é valorizada e tende a se profissionalizar, produtores, músicos, estúdios, designers, gráficas, fotógrafos, filmakers, contadores, empresas de divulgação, masterização, prensagem, transporte, etc. No final tudo retorna para sociedade, principalmente o impacto cultural gerado por essa necessária política.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.