Livro: A coleção O Livro do Disco resgata “Essa tal de Gang 90 & Absurdettes”

Texto por Renan Guerra

Quando escutado hoje, o disco “Essa tal de Gang 90 & Absurdettes”, lançado originalmente em 1983, não é lá a coisa mais genial que se possa esperar: há problemas claros na gravação e tudo soa datado demais, com cheiro de que não envelheceu bem (apesar de conter clássicos incontestes como “Nosso Louco Amor”, “Telefone”, “Noite e Dia” e “Perdidos na Selva”). Ainda assim, qualquer pessoa que queira entender o rock nacional dos anos 80 precisa, de algum modo, passar pela Gang 90 e pelo nome de Júlio Barroso – bem como suas comparsas Alice Pink Pank, May East e Lonita Renaux. O disco pode não dar a dimensão da importância da banda, mas a influência que ele gerou na época é tanta que justifica o recente lançamento de um “O Livro do Disco” sobre a Gang.

O Livro do Disco é uma coleção lançada pela Editora Cobogó, que incluí textos da coleção 33 e 1/3, da editora Bloomsbury. O braço brasileiro da coleção já se deburçou sobre discos diversos como “Refavela”, de Gilberto Gil, “Clube da Esquina”, de Milton Nascimento e Lô Borges, e “Guerreira”, de Clara Nunes. Os mais novos títulos da coleção são “Da Lama ao Caos”, de Chico Science & Nação Zumbi, pelas mãos da jornalista Lorena Calábria, e “Essa tal de Gang 90 & Absurdettes”, pelo holandês Jorn Konijn.

Konijn chegou até o disco da Gang 90 por causa de um amigo brasileiro, conhecido como DJ Trepanado. A curiosidade com o tal disco veio pelo fato do sobrenome de uma das absurdettes ser um nome tipicamente holandês. Era Alice Pink Pank: a garota holandesa que viveu uma aventura surreal na São Paulo dos anos 80 e era com ela que Konijn se encontraria na Europa. Os papos dele e da artista se tornaram um podcast, até que uma das editoras da coleção O Livro do Disco o chamou para escrever essa história. Konijn é especialista em música brasileira dos anos 1970, 80 e 90 e é um pesquisador de arte, mesmo assim achou que o desafio era grande demais: como ele, um estrangeiro, escreveria sobre um momento tão importante da cultura pop brasileira?

A saída encontrada pelo autor foi romancear a história da Gang e contá-la sob o ponto de vista estrangeiro de Alice. Essa foi uma saída excelente, visto que Júlio Barroso, o fundador e principal cabeça da Gang 90, faleceu prematuramente após o lançamento deste primeiro disco (a tecladista Taciana Barros assumiria a frente da banda e lançaria outros dois discos, “Rosas e Tigres”, de 1985, com nove letras de Julio Barroso, e “Pedra 90”, de 1987, com mais duas). Para completar as lacunas dentro da história de Alice, Jorn Konijn entrevistou mais de 30 pessoas, incluíndo aí gente como May East, Taciana Barros, Lobão, Guilherme Arantes e Nelson Motta. No final das contas, isso gerou um livro extremamente informativo, mas ainda assim viciante no sentido de um bom romance, pois nos faz querer mergulhar em cada página e descobrir o que de mais maluco poderia existir depois daquilo.

Dedicar-se a leitura de “Essa tal de Gang 90 & Absurdettes” é entender que só a existência do disco já é uma vitória, pois todo o cenário que há por trás dessa construção é o mais completo caos. Uísque, champanhe e cocaína eram o alimento diário de uma trupe que chacoalhou o cenário de São Paulo e, em outras medidas, do Brasil do regime militar já decadente, mas ativo, com uma visão anárquica da New Wave, fazendo inveja em muitas bandas punk. Nessas histórias clássicas, há desde uma apresentação no Sesc Pompeia em que os músicos escorregavam em champanhe sobre o palco até as apresentações malucas da banda nos Festivais de MPB do início dos anos 1980.

Os Festivais de Música do início da década e a trilha sonora da novela “Louco Amor” (1983), aliás, colocaram a banda nas rádios e fizeram ela explodir como um fenômeno pop, levando-a a turnês pelo país e ajudando para que o caos se tornasse em questionamentos sobre os rumos da banda enquanto criação artística. O livro de Konijn conta especialmente a história do primeiro disco, mas dá pinceladas sobre o segundo disco, “Rosas & Tigres” (1985), lançado por Taciana Barros e a nova formação da banda, após o falecimento de Júlio Barroso – o músico havia composto as canções do segundo disco, mas caiu de seu apartamento, no 11º andar, em 1984, uma morte até hoje não esclarecida.

No final das contas, O Livro do Disco da Gang 90 & Absurdettes é uma aventura pelos anos 80, dando um panorama amplo da cena new wave e da efervescência do rock nacional que viria a dominar as paradas na segunda metade da década. A Gang 90 é banda seminal para essa geração e a sua história é tão surreal que vale a pena ser conhecida por qualquer pessoa que se interesse por música (abaixo você confere a conversa com o autor e integrantes da banda e da cena da época em encontro que ocorreu em São Paulo em outubro de 2019). 

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.

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