Texto por Marcelo Costa
Vivemos um período de obscurantismo. O conhecimento, algo tão importante para que cada individuo se reconheça como tal, com deveres e direitos, está sendo cerceado por governos, afinal, “vida de gado, povo marcado, povo feliz” (já cantava Zé Ramalho décadas atrás), e quanto menos conhecimento, menos educação, menos cultura circulando, a manipulação fica mais fácil. É por isso que os livros tornaram-se objetos perigosos, pois fazem pensar. Não é a primeira vez na história da humanidade (e, infelizmente, não deverá ser a última).
Nesse cenário, abrir uma editora para publicar os livros que deseja – sem censura (e apesar dela!) – é um ato corajoso de liberdade e independência. Nomes como a Terreno Estranho, editora paulista dedicada à publicação de literatura marginal, underground e provocativa que já lançou livros de Nick Cave (“The Sick Bag Song”), Lee Ranaldo (“Jrnls80s”) e Rodrigo Carneiro (“Baritono”) – e que está prestes a lançar a biografia de Jeff Tweedy – e a Editora Sapobemba, responsável pela edição da biografia do Jesus and Mary Chain, estão na luta.
Junto a eles, agora, está a Ponto Edita, de Mauricio Tamboni e Luís Protásio, dois tradutores que decidiram arregaçar as mangas e imprimir papel com ideias de gente como Willa Cather (“Uma Mulher Perdida”) e Gertrude Stein (“Ida – Um Romance”), autores dos dois primeiros títulos lançados. Na conversa abaixo, Maurício conta o que os motivou a abrir uma editora em um período tão surreal da história, como eles chegaram aos dois livros que inauguram a Ponto Edita e o que vem por ai: “Agora é hora de ter coragem, de buscar inspiração na coragem dos outros e estender a mão para encorajar os outros também”, avisa!
Como surgiu a Ponto Edita e como vocês veem o desafio de se ter uma editora em um período tão surreal da história?
A Ponto Edita é uma editora totalmente independente criada por mim e pelo Luís Protásio, dois tradutores, então a princípio vamos publicar obras traduzidas, livros que a gente acha legais e relevantes e para os quais acreditamos existir um mercado. De fato é um momento complicado e, como você disse, surreal, mas, não sei se por essas dificuldades ou não, tem sido uma época de muita criatividade. No fim das contas, todos nós vamos fazer o que a gente faz, cada um a seu modo, de um jeito ou de outro, por mais que as tentativas de censura possam atrapalhar por um tempo. E agora temos que ser mais criativos porque estão tentando censurar todo tipo de arte, de todos os modos. Mas é um respiro olhar em volta e ver o que algumas editoras estão criando, o que os artistas estão criando – é só olhar para o cenário musical atual do Brasil, por exemplo. Agora é hora de ter coragem, de buscar inspiração na coragem dos outros e estender a mão para encorajar os outros também.
Vocês já lançaram “Uma Mulher Perdida”, da Willa Cather, e em breve irão editar “Ida”, da Gertrude Stein. Como vocês chegaram na escolha desses livros para abrir as portas da editora e o que você destaca nestes lançamentos?
São textos relevantes para os tempos atuais, cada um a seu modo. Cather cria em “Uma mulher perdida”, um romance do começo do século 20, uma série de alegorias que chamam a atenção para vários problemas que estamos enfrentando hoje, inclusive o colapso ambiental tão – necessariamente – em pauta agora. O caso de “Ida – Um romance” de Gertrude Stein é bastante curioso. Curioso porque todo mundo conhece o nome de Stein, mas ela é pouco lida e muitas vezes retratada como uma figura ou séria e inacessível demais, ou um pouco caricata. “Ida”, que está para ser lançado, debate a questão da fama, das celebridades, das pessoas que são famosas por serem famosas, e vemos muito isso nas redes sociais, pessoas desesperadas porque a contagem de likes está baixa, pessoas desesperadas porque os likes não são mais contados, pessoas espalhando fakenews e clickbaits e “preciso postar nesse horário”, por mais que queira espontaneamente postar em outro horário… Deve ser exaustivo viver assim. A própria Stein disse que queria escrever um livro sobre personalidades públicas tão públicas a ponto de não existir mais personalidade. E esse me parece um momento propício para levantar essa discussão. Também é um texto muito musical e que dá bastante abertura para experimentações. Para a edição, brincamos com o próprio formato do livro e vamos trazer intervenções artísticas da cantora Badi Assad e do ator e dramaturgo Luiz Päetow, que é um grande estudioso da obra de Stein.
Além destes dois lançamentos, mais clássicos, vocês também vão trabalhar com autores contemporâneos. O que vem por aí e como será o ritmo da Ponto Edita?
Sim, temos autores contemporâneos por vir. O primeiro, que deve ser lançado no começo de 2020, é um romance chamado “Desvio”, do escritor Juan Francisco Moretti, que fala muito sobre o que ele chama de “a última geração da internet discada”, essa geração que agora está vendo o mundo desabar e seus sonhos terem de ser deixados na prateleira por um tempo. Na sequência deve vir o primeiro romance da inglesa Kate Armstrong, que escreve sobre depressão e alienação e usa a narrativa para questionar a própria noção de narrador. Nosso plano é lançar entre quatro e seis livros por ano porque fazer um trabalho assim, sendo uma editora independente, demanda soluções criativas e tempo, precisamos realmente passar tempo com esses textos, entender o que eles pedem, entender se dão abertura para intervenções artísticas e gráficas e de que tipo, então leva um pouco de tempo para produzir um material assim.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.