Texto por Bruno Capelas
Fotos por Fernando Yokota
O ano é 2003 e uma moça baiana aparece nas rádios e na MTV, fazendo um rock com refrões prontos para as massas, em uma mistura de rebeldia e retidão pop. Pitty é seu nome e, na época, ela parece o antídoto perfeito para o roqueiro brasileiro médio – aquela criatura que não suporta um pandeiro, uma viola ou uma batida eletrônica com cara de terceiro mundo e prefere ir para a cruz a passar um carnaval em Salvador. Corta para setembro de 2019. Audio, casa de shows na zona oeste de São Paulo: a mesma Pitty surge descendo até o chão ao lado de Russo Passapusso e Roberto Barreto. Ela dança ao som dos samplers embatucados do BaianaSystem, unindo a roda de samba à roda punk em uma só canção – cujo nome, óbvio, é “Roda”.
Não se trata, nem de longe, de uma incoerência – apesar de parecer à primeira vista. Não é só o espaço temporal de 16 anos nem só o Brasil que mudou. A cantora que está em cima do palco soube avançar em sua obra e trazer à tona suas raízes sem perder aquilo que a fez popular por seu trabalho. A cena descrita acima, porém, é apenas um flash. É um dos vários grandes momentos do show de lançamento na capital paulista do novo disco de Pitty, “Matriz” – realizado para uma plateia de cerca de 3 mil pessoas em uma noite suada do inverno paulistano, no último sábado, 15 de setembro.
Lançado no primeiro semestre, “Matriz” é a espinha dorsal do show. É um disco curioso: ele traz a retórica e a energia de Pitty, em canções como “Ninguém É de Ninguém” ou “Noite Inteira”. Mas há diferenças, há uma mescla com referências que sempre estiveram perto da cantora baiana, mas não foram exatamente assumidas até aqui – o afoxé, o carnaval, o reggae e a música caribenha (“Te Conecta”), a roda de samba, até mesmo um lamento em uma conexão Mississipi-Pelourinho (“Bahia Blues”). Não à toa, a frase “eu preciso falar dessa nossa verdade que vem do Nordeste”, da já citada “Roda”, ecoa por todo o trabalho. Porque Pitty é rock, mas não significa que não possa ser todas essas outras coisas também.
Em estúdio, “Matriz” é um disco que às vezes soa enérgico demais, ou um pouco deslocado, desfocado. Ao vivo, ele funciona muito bem. Primeiro, funciona porque Pitty tem atrás de si uma banda muito bem azeitada, a começar pelo discreto virtuose Martin Mendonça. Segundo, porque a energia percussiva presente no disco se espraia melhor ao vivo. Terceiro, porque a presença dos convidados especiais amplia o escopo do trabalho – seja nos agudos de Lazzo Matumbi, no carisma de Russo Passapusso (que também cantou a sua “Duas Cidades”), a malemolência da guitarra de Roberto Barreto ou na força de Larissa Luz, todos presentes em São Paulo.
Por fim, mas não menos importante, funciona principalmente porque Pitty é uma grande frontwoman. Em cima do palco, ela é capaz de conquistar os poucos presentes que não chegaram à casa paulistana com todo o álbum já na ponta da língua. Basta um grito ou um gesto para que ela convença a plateia toda a balançar os braços ou seguir um coro de “ooo” em uníssono. E sua potência é versátil: vai da lascívia à rebelião, do suingue ao romance, quase como se não precisasse de transições.
Fosse só pelo repertório de “Matriz”, o show de São Paulo já teria sido bastante interessante. Mas é preciso ressaltar que ele se valoriza ainda mais ao ser exibido em meio a um caminhão de hits que Pitty colecionou ao longo da última década e meia. Eles aparecem em todos os cantos do show, a começar logo na segunda música, “Admirável Chip Novo”, suficiente para incendiar a pista. É curioso notar como a letra da canção, que soava distópica e futurista lá em 2003, se tornou familiar neste nosso 2019 – é difícil ouvir “nada é orgânico, é tudo programado” sem pensar nos produtos de Mark Zuckerberg, Sergey Brin ou mesmo da próxima startup que surge na rua de baixo.
Outra demonstração da atualidade de Pitty vem logo na sequência, quando ela introduz, no meio de “Memórias”, uma citação de “Bad Guy” – o primeiro hit global composto por alguém que não tinha nascido no 11 de Setembro, a cantora Billy Eilish. Não é mero disparate moderninho: Pitty incorpora a canção como ela fosse sua, com guitarras e um rebolado próprio. Ao mesmo tempo, é preciso notar que nem todas as canções envelheceram bem da mesma forma – alguns sucessos da cantora, como “Sete Vidas” ou “Teto de Vidro”, soam um bocado juvenis hoje em dia. (Talvez seja também o que justifique a ausência de outros hits, como “Semana Que Vem” ou “Pulsos”, do setlist). Embora isso nem importe tanto para muita gente ali presente, claro.
Ter o público na mão, claro, é um trunfo que a baiana tem à sua disposição. Isso fica claro quando o público canta sozinho refrões como “Máscara” ou “Me Adora” – uma das músicas que Roberto e Erasmo poderiam ter escrito nesse século XXI, mas não o fizeram. Essa ligação com a plateia é o que justifica ainda que Pitty seja capaz, por exemplo, de interromper a alta voltagem do espetáculo para propor um momento mais íntimo, como se estivesse em seu “quartinho em Salvador”, para mostrar a fofinha (e só isso mesmo) “Dançando”, do projeto Agridoce.
O que os anos de estrada ensinaram a Pitty, porém, é como fazer transições especiais e aproveitar a energia que emana das pistas. Ela demonstra isso muito bem com a conexão que faz entre o hit “Na Sua Estante” – outro que poderia ter sido cantado até o final sem que Pitty dissesse uma palavra sequer, tamanha a devoção da plateia – e uma das grandes canções de amor dos nossos tempos, “Motor”. Composta pelo conterrâneo Teago Oliveira, da Maglore, “Motor” faz parte de “Matriz” e também do último disco ao vivo de Gal Costa, “A Pele do Futuro Ao Vivo”, lançado este ano. No palco, Pitty dá voz às palavras de Teago deitada, em meio a luzes de LED, como se estivesse sob o capô do carro abandonado que dá título à canção, em uma interpretação (perdoe o trocadilho, leitor) iluminada.
Tudo isso aconteceu em cerca de 100 minutos de show. Mas havia mais – e havia uma lembrança importante a ser feita. Ela aparece logo no início do bis, com a primeira balada que mostrou que Pitty tinha estofo e não só alguns gritos de ordem: “Equalize”, composta por ela e pelo parceiro Peu Sousa, morto em 2013. Dezesseis anos depois de sua primeira gravação, “Equalize” soa fresca, como se tivesse sido feita ontem. Não é só uma potente canção de afeto romântico, mas também uma declaração de amor à música e a todos que a ela se dedicam.
Transformar a vida em música, para muita gente, é o jeito de registrar pra sempre a sua própria história ou até transcender a própria vida. A beleza de ser um fã de canções é que isso pode acontecer a qualquer (inesperado!) momento. Em São Paulo, “Equalize” foi uma maneira não só de reviver paixões adolescentes (que são bem diferentes de paixões vividas na adolescência, caro leitor), mas também reviver por alguns minutos a memória de Peu, o primeiro guitarrista da banda de Pitty. Ele também é o responsável pela bonita “Para o Grande Amor”, que surgiu na sequência e está no repertório de “Matriz”. E para fechar a conta, “Serpente”, reunindo todos os convidados e também um solo de cair o queixo de Martín Mendonça.
Ao final do show, ecoa um mantra na cabeça: “a gente só passa pelo que tem que passar”, do refrão de “Sol Quadrado”, que encerrou o set inicial do show. Em dezesseis anos, Pitty passou por muita coisa – mas foi lá e de volta outra vez, como convém a uma jornada de heroína moderna. O saldo final deste retorno é mais do que positivo: enquanto colegas de geração catam uns trocados em nostalgia barata ou estão mais uma vez dançando a dança dos nem tão famosos, a baiana mostrou que é um bicho solto e não pode parar. Evolui, avança, recupera o que ficou pelo caminho e não deixa de lado aquilo que lhe trouxe até aqui, mas mistura tudo em uma cumbuca que é só sua, muito particular. O resultado da receita é um grande show que merece ser visto se passar pela sua frente e pode deixar saudade em quem o vê.
E o que é saudade, esse sentimento que é toda uma estrada musical? Pitty mesma responde: “saudade é vontade daquilo que já se sabe que gosto”.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista do caderno Link, de O Estado de São Paulo. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/
Ótima Resenha, o show foi Lindo!
Apenas uma Observação: Em Sol Quadrado se fala a Frase ”A gente só passa, pelo que tem que passar” e não em Serpente.
Não tem absolutamente nada de bicho solto em uma pessoa que se apropria de jargões progressistas mas na prática é a reprodução fiel do padrão e não coloca em prática nada que prega mas tudo o que dizia criticar, Pitty desenvolveu a carreira baseada na imagem como queria ser vista, a “””heroína””” fabricada e só
Como ela disse a Monica Bergamo “você é a sua obra”, não é sobre a música é sobre ela, a grande “”heroína””” que não questiona o egocentrismo da sociedade mas se conforma a ele