por Adriano Mello Costa
Baseado nos últimos quatro anos do cenário político, econômico e social brasileiro, alguns futuros se apresentam como possíveis, sendo que nenhum deles é muito animador. Não se trata de pessimismo ou terrorismo precoce, mas a verdade é que nossa nação retrocedeu demasiadamente nesse período, mesmo considerando as situações propícias para tanto. Desses futuros, um dos que mais assusta é a implantação de um governo baseado e ancorado em doutrinas religiosas acima de tudo e de todos. Inclusive do próprio Deus.
É nesse cenário que o diretor pernambucano Gabriel Mascaro mergulha em “Divino Amor” (2019), que estreou recentemente nos cinemas. Ambientado em 2027, o filme apresenta um país na beira do fundamentalismo e que não recebe em cena quaisquer sinais de revoluções ou insatisfações tão inerentes nesse estilo de ficção. Quando esses sinais aparecem são mais por conta da burocracia extremada para servir aos interesses do governo (retratada de modo excelente em uma cena de um arquivo de pastas), do que por reclamações do estilo de vida.
A protagonista é Dira Paes, que vive Joana, uma funcionária de Cartório que atende a casais querendo se divorciar. Como acredita fielmente no governo e suas crenças (para ela não se trata de distopia e sim de utopia), ela usa de todos os artifícios para interferir na vida desses casais, dando opiniões e colocando empecilhos mil para que eles não se divorciem. E se vangloria para tudo e todos quando consegue “salvar” algum casamento que, na maioria das vezes, recebe o auxílio da igreja que dá nome ao filme e frequenta com o marido Danilo (Júlio Machado).
Narrado em off por uma voz de criança quase robótica, “Divino Amor” mostra sinais da intervenção do estado na vida pessoal como na cena da praia onde as mulheres estão cobertas e os homens de sunga, na maneira que fala dos “desgarrados” ou nos scanners espalhados nas entradas de lojas e repartições. Exibe alguns alívios cômicos que usam da sátira como o Drive-Thru de oração comandado por um pastor interpretado por Emílio de Mello, a festa do Amor Supremo – uma espécie de rave nacionalista religiosa que substitui o carnaval – ou nas práticas para lá de peculiares da igreja frequentada por Joana.
Gabriel Mascaro traz do seu filme anterior (“Boi Neon”, de 2015) as cores, luzes, estilo sonoro e o sexo como força representativa da trama, além da exploração individual de pequenas características dos personagens. Com uma atuação brilhante de Dira Paes, “Divino Amor” tem na fotografia de Diego Garcia e na direção de arte de Thales Junqueira dois fortíssimos pontos técnicos. Por não ser um filme longo (101 minutos), algumas situações apresentadas poderiam ser mais discutidas e acabam ficando meio no ar, contudo isso não afeta o excelente resultado final.
Porque “Divino Amor” é um filme que pode ser interpretado de diversas maneiras, partindo simplesmente da distopia apresentada, que é plenamente possível – onde até os absurdos geram risadas meio tensas – ou indo para discussões sobre individualismo, mística e o uso da religião como força de coação dos pobres e vulneráveis para o ganho de poucos. Mas, sobretudo, expõe brilhantemente que em um sistema fascista, por mais devoto que você seja, basta um pequeno erro ou desentendimento para que esse sistema se volte contra você e o esmague. É simples assim.
Nota: 9
– Adriano Mello Costa assina o blog de cultura Coisa Pop ( http://coisapop.blogspot.com.br ) e colabora com o Scream & Yell desde 2009!