entrevista por Leonardo Vinhas
Quando o assunto é a integração latino-americana pela música, o nome de Fernando Rosa é inescapável, e não apenas em território nacional. Fundador do Senhor F (misto de site, selo fonográfico e, agora, literário também), organizador do festival El Mapa de Todos e integrante da REDPEM (Rede de Jornalistas Musicais Ibero-Americanos), esse gaúcho residente em Brasília há anos se dedica em pesquisar e promover a música feita em tudo que está entre México e Uruguai, criando pontes entre os países sempre que possível.
Há poucos meses, Rosa editou “Ondas Tropicais – A invenção da lambada e do beiradão na Amazônia moderna”, primeiro livro sob a égide Senhor F Livros e que traz uma ampla pesquisa sobre a música amazônica, especialmente a feita no Pará. No livro, ele resgata/apresenta o trabalho de músicos de diferentes gerações, dos mais célebres aos menos lembrados. Então, se há espaço para Pinduca, Mestre Cupijó, Mestre Vieira, Manoel Cordeiro e Alípio Martins, há também para Souza Caxias, Oseas (o “guitarra maravilhosa”) e André Amazonas, entre muitos outros, além de trazer a história bastante peculiar da indústria fonográfica local, que garantiu que o cenário do Pará se desenvolvesse à parte do mercado nacional.
Com um texto jornalistico “de raiz”, direto e fartamente informativo, “Ondas Tropicais” é livro para quem se interessa por descobrir nova música ou conhecer a história da mesma. Melhor ainda se lido com pausas para ouvir as canções e fuçar num terreno que vai do brega ao inovador, sem nunca deixar de ser acessível nem popular. Fernando Rosa abriu o Messenger para falar com o Scream & Yell não só sobre o livro mas também sobre a última edição do El Mapa de Todos, que aconteceu em Porto Alegre nos dia s 7 e 8 de maio. Em dois dias, com seis atrações somadas, foi a menor das oito edições da história do festival – sinal de tempos em que tanto a relação com os países vizinhos como as propostas culturais encontram-se em situação periclitante por conta das políticas conduzidas pelo Governo Federal.
Há anos você pesquisa a música do Brasil e de toda a América Latina. O que te motivou a focar especificamente na música do Pará como objeto de seu livro?
Sempre tive interesse pela Amazônia do ponto de vista geral, geográfico, geopolítico e cultural. Quando jovem, li o poema épico / amazônico / psicodélico “Cobra Norato” – por acaso de um gaúcho (Raul Bopp). Nos anos 70 e 80, ouvi a música da região, com Paulo André Barata, Fafá de Belém e outros. Mas, a descoberta do que resultou em “vício” e, agora, no livro, se deu em meados dos anos 2000. Foi quando me dei conta da importância, da dimensão cultural da lambada e da guitarrada do Norte.
Você diz que a lambada é o único gênero genuinamente brasileiro construído na guitarra. Sei que você explica isso no livro, mas pode apresentar essa ideia para quem ainda não leu?
O que digo é que a lambada, a verdadeira, do Norte, é o gênero musical mais importante pós-bossa nova, jovem guarda, tropicalismo. Surgiu e se desenvolveu em pleno anos 80, sob a pressão da hegemonia do rock, construindo um mercado e um público à parte. É síntese sonora de muitas influências particulares, que passam pelo chorinho, carimbó e ritmos latinos como mambo, cumbia e merengue. A lambada também faz da guitarra um instrumento popular, como em poucas regiões do mundo. Na América Latina, apenas no Peru a guitarra tem essa mesma singularidade (com a cúmbia psicodélica).
O Pará tem um cenário musical artisticamente rico, e em muitos casos, autossustentável. Porém, ele raramente faz um “crossover” com a música mainstream do país. A que se deve essa estranha dicotomia?
Acho que tem a ver com alguns aspectos, em especial a posição geográfica, distante do centro do país, e muito próxima do Caribe. Isso fez com que a região desenvolvesse uma lógica própria de produção, distribuição e consumo de música, do que os anos oitenta são exemplares. Por outro lado, dizem alguns artistas, o músico do Norte é um pouco desconfiado com a “apropriação” de sua cultura. O caso da música “Lambada”, por exemplo, ajuda a entender um pouco a situação. Sem nada a ver com a verdadeira história da lambada, desde a França, tornou-se o mega-hit do gênero.
O que fez historicamente a cena paraense se desenvolver de maneira tão diferente da de outros Estados do Norte/Amazônia?
Belém teve uma gravadora, a Gravasom, que promoveu uma verdadeira revolução na indústria da música brasileira. A Gravasom contou com um estúdio, sob comando de Alypyo Martins e Manoel Cordeiro, uma banda de estúdio, uma rede de rádio e distribuição regional. A partir dela, uma quantidade enorme de artistas gravaram, tiveram seus discos vendidos e fizeram sucesso em toda a região. Por outro lado, a região Norte contou com a influência muito forte da música latina, seja pelos discos editados pela Rozemblit, de Recife, seja pelas rádios, com a rádio Habana, sintonizada em toda a Amazônia.
Muitas regiões do país dialogaram, de diferentes maneiras, com a música de nossos vizinhos latino-americanos. O Rio Grande do Sul. por exemplo, já foi chamado informalmente de “Uruguai do Norte”, de tão estreita a relação com o país austral. Apesar disso, você diria que no Pará a aproximação foi mais profunda e intensa que em outras regiões? Por que?
A presença da música latina é muito forte na região, desde o bolero, o mambo, a cumbia, o meregue, que chegaram em diferentes momentos, e por várias “portas de entrada”. O beiradão, no Amazonas, com base instrumental no saxofone, tem grande proximidade com o merengue, por exemplo. Não sei se a mistura é mais intensa, mas diria que se deu de uma maneira muito particular, mais livre, permitindo mutações futuras. A localização geográfica, a proximidade com Colômbia e Peru, a navegação, os portos, por exemplo, são elementos importantes para a integração. O Norte, de fato, é um mundo à parte ainda por ser devidamente descoberto e incorporado ao Brasil.
Vamos falar um pouco do momento atual… Desse lado de cá, do dito “jornalismo cultural”, há quem veja o rock ou o rap como gêneros “rebeldes”, mas a verdade é que há muito foram assimilados e cooptados. Você vê alguma espécie de resistência cultural e política no que é feito no Pará hoje?
Acredito que não, ao contrário, vejo que a música do Norte tem uma intensidade cultural, uma poética, um ritmo capaz de conquistar qualquer cidadão do mundo. Dona Onete, por exemplo, é atualmente uma artista internacional, com apresentações marcadas por profunda identidade musical paraense. Outros artistas também conquistaram esse espaço nacional e, mesmo, internacional. O Rock in Rio terá uma Noite do Norte, ou do Pará.
A última edição do festival El Mapa de Todos foi a menor da sua história em número de atrações. Como você viu essa edição?
Foi a menor em número de artistas, mas uma das mais intensas em qualidade musical, com uma diversidade interessante para o momento atual. Em duas noites, com três shows por dia, mantivemos o espírito do festival, com a qualidade artística e de infraestrutura que marca a história do festival. A questão da dimensão tem a ver com a questão financeira, com os patrocínios, com a atual conjuntura. Realizamos o festival com patrocínio da Secretaria de Cultura do RS, sem mais nenhum tipo de apoio. Consideramos que foi uma vitória política e cultural, considerando o momento pelo qual passamos.
E o que podemos esperar para o festival daqui pra frente?
As coisas ficaram difíceis na atual conjuntura. Temos um governo que trata os vizinhos como inimigos, e isso tem reflexo junto aos patrocinadores, por exemplo. Mas, claro, não desistimos e vamos continuar. Podemos, inclusive, trabalhar com a ideia de realizar o festival em outros estados.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Iano Andrade / Divulgação.