entrevista por Renan Guerra
Habitando um universo um tanto quanto fantástico, a estreia do duo Los Pajaritos é um trabalho que une MPB, jazz, música erudita e outras vertigens em prol de uma sonoridade onírica, que caminha na corda bamba entre o pop e o experimental. Curtinho, com pouco mais de 20 minutos, o disco “Los Pajaritos” (2018) é o casamento perfeito e surpreendente entre a poesia e o canto. Como disse o poeta Augusto de Campos este disco é “um presente ao país do passado”.
O duo Los Pajaritos é resultado da união de dois Antonios: Farinaci e Sobral. Farinaci é músico e produtor e já colaborou com artistas como Suzana Salles, Rodolpho Parigi e Stereo Total; Sobral é artista visual e escritor, diretor da residência São João, em São José do Vale do Rio Preto (RJ), e da editora Deep. Juntos, eles trabalharam durante três anos na produção do disco autointitulado de Los Pajaritos.
“Los Pajaritos”, o disco, está sendo editado de forma independente em vinil e o duo estreará seu novo show em São Paulo, dia 31 de maio, no Blue Note. Antes disso, os Antonios já se apresentaram de forma pocket na Casa Plana e foi nessa noite que batemos um papo com a dupla sobre os mais variados temas: desde a produção do disco até a composição das canções, passando pelo fetiche do vinil, a poesia e a música brasileira. Confira o papo abaixo:
Vocês já possuem diferentes e longas carreiras. Em que momento sentiram a necessidade e decidiram gravar um disco juntos?
Antonio Farinaci: Foi acontecendo, né?
Antonio Sobral: Aconteceu bastante naturalmente, pois no nosso primeiro encontro a gente ficou cantando o dia todo sem parar e daí aconteceu uma parceria.
Farinaci: Há três anos.
Sobral: Eu estava começando a compor, ele já tem todo um trabalho na música. Eu sou artista plástico, escritor, tenho um outro caminho. E a gente começou a compor juntos, a fazer as canções juntos e a gente ficou três anos. Daí foi sozinho.
Farinaci: Foi sozinho e uma hora a gente percebeu que tinha um disco.
Sobral: A gente começou a trabalhar para o disco, ficamos três anos compondo e gravando.
Farinaci: A gente ia compondo e gravando meio despretensiosamente, mas no fundo da mente, havia sempre aquela ideia de algo, se não a gente não ia gravando. O nosso inconsciente de alguma maneira estava querendo fazer esse disco, mas uma hora a gente olhou e falou assim: “nossa, tem 10 músicas e daria para fazer um disco” e aí a gente começou a de fato viabilizar.
Sobral: É, eu acho que partiu de um ambiente, de uma atmosfera, que era o que a gente vivia juntos: se encontrando, compartilhando música, literatura e esse clima de tranquilidade, de dar risada, então acho que esse clima foi o que moldou o disco. A gente viu a necessidade de ele existir.
E em que momento vocês decidiram pelo nome Los Pajaritos?
Farinaci: Eu não lembro, mas foi ele.
Sobral: Eu não sei quando foi que isso aconteceu, a gente nunca conversou a respeito.
Farinaci: Não, sabe o que é, tinha uma fita cassete de um coro do seu pai.
Sobral: Não era, você que achou essa K7! Os cantos antonianos, “Canti Antonioni”.
Farinaci: Que é um coral de, sei lá, da Itália, de não sei de onde, que eles cantam cânticos de louvor a Santo Antônio e era uma fita que seu pai tinha te dado e daí a gente ouviu. Não tivemos coragem de abrir a fita, mas a gente achou no YouTube, ouviu e são uns cantos em louvor de Santo Antônio, mas a gente achou que “Canti Antonioni” ia ser um nome muito pretensioso.
Sobral: Mas como chegou nos Pajaritos?
Farinaci: Não sei. Foi nesse dia que a gente estava pensando qual ia ser o nome e daí era uma coisa mais comprida. O Antonio falou “Los Pajaritos Cantantes de não sei o que” e eu falei “Ih, não, muito comprido, (que tal só) Los Pajaritos”.
Sobral: E pronto, a gente não ficou debatendo, foi tipo ok.
Farinaci: Comecei a escrever Los Pajaritos nos IDs das músicas. Para a própria organização dos arquivos, e como já estava, continuei usando esse nome. Nunca discutimos se ia ficar isso ou não e acabou ficando. E como tinham duas músicas em espanhol no nosso repertório.
Sobral: Tem isso. A gente curte cantar canções francesas, italianas, etc.
Farinaci: Eu tenho uma história com o espanhol, fui meio alfabetizado em espanhol e, por coincidência, a primeira música que a gente fez era em espanhol, que é “Movimiento”.
Sobral: Comecei a compor ela na Bolívia e a gente continuou compondo juntos.
E como funcionava a composição e construção das canções?
Farinaci: Ele mora numa fazenda no interior do Rio de Janeiro e eu moro em São Paulo. Quando ele vinha pra cá a gente ficava intensivamente, a gente se internava e ficava em casa – eu tenho um estúdio em casa – e ficava fazendo coisas lá, gravando, gravando, gravando e daí ele ia embora, e eu ficava produzindo aquilo, pensando.
Sobral: Pensando em muitos arranjos, convidando músicos para gravar.
Farinaci: Eu chamava pessoas para fazerem participações quando eu imaginava alguma coisa diferente ou a mais no arranjo.
O disco, aliás, tem muitos instrumentos.
Farinaci: Tem piano elétrico, violão, fagote, bateria, viola, violino e tem teclados em geral.
Sobral: Sim, teclados sintetizados.
Farinaci: Ah, tem teremim! Em “Movimiento”, aliás, tem teremim.
Sobral: Acho que o processo de composição reflete um pouco o nosso background, já que a maioria das letras eu que escrevi, e na verdade toda a parte de arranjo, de musicalização e de composição a partir das letras, essa parte ele que fez. A coisa da letra e da música dá pra ver que veio mais de mim e a música mais dele, embora tudo tenha sido feito juntos.
Mas vocês também trocavam muitas referências dessas duas coisas, não?
Sobral: Sim! Inclusive o Antonio trazia referências, a gente discutia. E eu sou apaixonado por música e também tenho as minhas predileções. Mas é um pouco difícil, porque o Antonio é rígido, estrito e eu sou uma coisa…
Farinaci: Como assim?!
Sobral: …“vamos improvisar” e ele “não!”, enfim, mas acho que isso também gera um embate estimulante, das duas abordagens.
Farinaci: Mas eu não fiz nada a contragosto, tá? Para deixar bem claro. [Risos]. Não é não!
Vocês até construíram uma playlist que tem um pouco das referências.
Farinaci: Ah, você ouviu?
Ouvi! E está no Spotify, né?
Farinaci: Sim, está no Spotify.
Sobral: Daí você vê esse samba eclético.
Farinaci: Sim, ali tem muitas referências que a gente ouve e é superengraçado, pois coisas que eu às vezes mostrava pro Antonio achando que era uma coisa super obscura que só eu conhecia e aí ele falava “ai, adoro fulano de tal”.
Sobral: Como Moondog, que essa semana a gente estava conversando. Eu “ah, amo Moondog, estou baixando”, e ele “ah, está na nossa playlist”, que ele que tinha feito. Esses cruzamentos improváveis.
Farinaci: Há muitos cruzamentos.
Sobral: Tem influência de música experimental, tem muita influência de música popular, para lugares do jazz.
Farinaci: Música clássica.
Sobral: Música clássica, que é um background dele. Ele é cantor lírico, né? Antonio já cantou na ópera de Manaus.
Farinaci: Não! De Manaus não, de Belém! Ah, era um festival, não vale.
Sobral: Ele tem toda uma trajetória dentro da música. E também do estudo da música clássica, da execução.
Mas vocês também têm uma coisa muito de poesia no disco, não?
Farinaci: Tem, que é a parte dele.
E as músicas também tem algo que é entre o canto e a fala.
Farinaci: Ah, tem, que é uma coisa de canto-fala. É muito engraçado isso: quando alguém de um grupo considerado música experimental faz uma coisa com canto falado, as pessoas falam assim “ai, olha, tem canto falado, é experimental”, sendo que o tempo inteiro as pessoas estão fazendo um canto que é meio falado em qualquer gênero e ninguém fica apontando e achando estranho. Então eu acho que essa intersecção do canto com a fala é uma coisa que está totalmente desvendada, utilizada. Acho que houve uma época em que isso causava uma estranheza muito maior.
Sobral: Sim, mas acho que, para além disso, o fato de a gente ter escolhido, obviamente não foi um modismo, e sim o universo do disco, que é um universo muito imagético.
Farinaci: E um universo que fala com a poesia.
Sobral: Sim, que fala com a poesia, então tem muitas descrições de imagens, um aspecto surrealista, enfim. Acho que o lugar da palavra cantada, da palavra lida no disco é esse, de trazer as imagens, de trazer também ao pé do ouvido, né, acho que foi o Daniel Jablonksy que falou isso na resenha dele sobre o disco, que é uma coisa muito legal para a dinâmica.
Farinaci: Mas é engraçado, porque na hora que está compondo muitas coisas ou fazendo arranjos, você não pensa conscientemente. Às vezes têm decisões que você toma ao fazer um arranjo ou a falar “não, a linha melódica não vai por aqui”, você toma decisões ali que são, em certa medida, deliberadas, mas em certa medida elas vêm de um lugar dentro de você que é a sua história com a música. Então você vai resolver as coisas a partir daquele grande repertório passivo de música que você tem ali e que vai se manifestar no que você está fazendo. Então, quando ele diz que eu sou rígido: eu detesto música que não tem uma…
Sobral: Que não é consciente de sua estrutura?
Farinaci: É, em que é só uma melodia flutuando sobre uma harmonia que podia ir para qualquer lado, sabe? Fico um pouco chateado [risos] com esse tipo de composição. E acho que isso é uma coisa que nós dois tínhamos, de quando as melodias estavam indo para um lado que parecia que… a gente falava assim “não! Não pode ir para esse lado, é muito óbvio”. A gente tomava decisões deliberadas de fazer coisas.
Sobral: Tem composição serialista, inclusive, aí ele vai explicar.
Farinaci: É, tem uma música que o arranjo e a melodia foram feitas em cima de uma série criada a partir dos fonemas que têm no poema e, enfim, mas que é um tipo de música também que sempre me fascinou.
Sobral: Você não explicou direito o que é.
Farinaci: Não, mas é uma coisa chata isso, para os leitores, ninguém quer saber. Enfim, é uma música que a composição ao invés de ser baseada em acordes e numa melodia bonita, é baseada numa série de notas criadas arbitrariamente que você define uma regra para você criar.
Sobral: Uma sílaba corresponde a uma nota específica.
Farinaci: Por isso criei uma regra que era a partir dos fonemas do poema e coisas que derivavam a partir da poesia. E quando o Augusto de Campos ouviu, ele disse: “Essa música vocês fizeram pra mim”. E eu falei “foi, Augusto, foi pra você”.
Nesse sentido do que as canções têm, “Cósmicas”, por exemplo, tem muitas coisas. A faixa vai para muitos lados e você imagina milhões de coisas.
Farinaci: Então, “Cósmica” foi uma música que ele chegou em casa com um monte de coisas anotadas no guardanapo, de conversas que ele ouviu.
Sobral: Balcão de bar. Eu estava esperando a minha cerveja, olha o que eu ouvi: o cara do meu lado confessando para o barman que ele era de uma origem extraterrestre, no que o barman aproveitou a deixa para dizer que ele também e eles começaram a trocar confidências que eles eram, sei lá, reptilianos, não sei o que, começaram a falar. Eu ouvindo aquilo e anotando, ta-ta-ta no guardanapo, assim, “cara, não tô acreditando”. Aí eu falei “ó, Antonio, toma”. E ele compôs a “Cósmicas”.
Farinaci: Essa é, na verdade, a única letra minha.
Sobral: Essa é a única, as outras letras são minhas, menos uma.
Que é um cover.
Farinaci: Isso, é um cover.
Sobral: A versão [de “Amor de Primavera”] do Tanguito.
E como vocês chegaram a essa versão do Tanguito?
Sobral: Eu acho que é legal por que ela é muito diferente da do Tanguito, no sentido de que ele é muito para fora e a gente fez uma coisa com muito ar na voz.
Farinaci: Pensativa.
Sobral: Uma coisa que você gosta de falar em impressionismo musical.
Farinaci: É bem impressionista.
Sobral: A gente quis também trazer, em alguns momentos, esse ambiente difuso, diluído, impressionista.
Farinaci: É que a música brasileira é muita engraçada – o jazz tem isso também – mas a música brasileira, via Tom Jobim, via aquele tipo de harmonizações, deve muito ao impressionismo francês, à música clássica francesa da época do impressionismo, são acordes que tem dissonâncias, que você ali. O Tom Jobim tinha essa formação e ele começou a usar isso. Duke Ellington também faz isso, ele pega as harmonias que você ouve e fala “nossa, isso aqui é [Claude] Debussy” e é verdade, não é aleatório, são pessoas que tinham contato com esse tipo de música, gostavam desse tipo de música e que levaram isso adiante, não só copiaram e imitaram. As harmonias do Duke Ellington, pelo amor de deus, aquilo ali é gênio, as melodias, as harmonias não são só um campo harmônico ali atrás, as harmonias elas só poderiam ser aquele acorde, com aquela melodia, aquele acorde só pode ser aquele e isso é genial. Mas isso é um procedimento que, acho, vem muito – no meu repertório – da música clássica, porque na música clássica é difícil ter um grande compositor em que a harmonia é casual, não é casual, todas as notas soando simultaneamente, elas têm um sentido, e acho que na música brasileira a gente tem um ouvido que foi formado muito pelo tipo de música que o Tom Jobim fazia, você ouve as harmonias que ele faz no piano e a gente meio que toma isso de boa. A gente tem um ouvido que já ficou acostumado com isso, a gente não acha isso estranho, quando você toca isso para pessoas que não foram expostas a esse tipo de música as pessoas acham estranhíssimo você fazer esse acorde. Eu tinha um amigo em Londres que eu ficava tocando muito violão, assim de brincadeira, em casa, fazendo uns acordes, ele ficava assim “nossa, me ensina a fazer esse acorde, que acorde é esse?”, eu falava assim “é só um dó com 7ª maior e 9ª”, ele falou assim “não, pelo amor de deus, o que é isso?”, essas ressonâncias ao mesmo tempo. Porque a música popular brasileira absorveu isso e tornou isso uma coisa que a gente não dá muito por isso, a gente não dá muito valor a isso. E é uma formação que foi feita por esses caras, que formaram o nosso ouvido musical, que agora está tudo sendo destruído de novo, mas… [risos]. Agora toda essa carpintaria será destruída, mas tudo bem, a gente reconstrói.
Vocês lançaram o disco em digital e agora optaram por lançar o trabalho também em vinil, qual a razão dessa escolha?
Farinaci: Primeiro é que a gente queria ter uma coisa física, pois não tem nada como uma capa de vinil, não existe. Como era aquela frase da Gilda? “There never was a woman like Gilda!”, então, “there never was a cover art like a cover art for a vinyl”.
Sobral: “There never was a woman like Gilda!” já deu. [risos]. Não, mas além disso a longevidade do material gravado em disco, é das mídias analógicas a que melhor sobrevive; a qualidade do som.
Farinaci: É que assim, uma coisa tem que ser dita. A qualidade do som do vinil é pior do que a qualidade do digital – não a qualidade do digital do Spotify, porque ali tem uma compressão que destrói tudo, mas um arquivo digital 100% sem compressão, ele tem possibilidades sonoras que o vinil não tem, por uma questão física. E você pode falar com qualquer aficionado de vinil que seja honesto que ele vai concordar comigo. Pergunta para o Arthur Joly, ele é o cara que mais entende de vinil no Brasil. O Joly vai te dizer isso, tanto é que a hora que você vai masterizar, tem coisas que você não pode fazer, tem coisas que você tem que limitar, porque senão pula a agulha, porque o efeito que você está achando que vai ter não vai rolar, então assim, o vinil tem limitações; agora, o vinil tem um charme, uma textura.
Sobral: É muito bom, muito gostoso o som do vinil.
Farinaci: O vinil tem uma outra coisa, é um fetiche.
E a capa ficou linda, quem é a responsável pela capa?
Farinaci: Flora Rebollo, maravilhosa, que fez o desenho. Nossa amiga.
Sobral: Ela é uma grande artista e foi muito legal, por que ela mandou um monte de desenhos para a gente.
Farinaci: Ela era muito amiga do Antonio, ele que me apresentou para ela e hoje ela gosta mais de mim do que dele.
Sobral: Há controvérsias! E o design do disco foi feito pela Marina Oruê. Ela pegou um detalhe do desenho da Flora, aí aquela tipografia gótica fui eu que sugeri, enfim, a gente foi fazendo meio juntos, mas com o design gráfico da Marina Noruê a partir dos desenhos da Flora Rebouças.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o site A Escotilha.