por Leonardo Vinhas
“Devo te chamar de Xavier ou de Negrito?”, pergunta o repórter nos primeiros segundos da entrevista por telefone com o músico norte-americano Fantastic Negrito. “Eu prefiro Xavier”, responde. Ainda assim, os minutos seguintes apresentarão muito pouco de Xavier Amin Dphrepaulezz, o ex-morador de rua, ex-ladrão e traficante que há cerca de dois anos vem pirando a cabeça de muita gente com uma música que mistura soul, blues, rock’n’roll, gospel e r&b em doses poderosas e indistintas.
“The Last Days of Oakland” (2016) e “Please, Don’t Be Dead” (2018), ambos agraciados com o Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo, são ótimos álbuns, precedidos por um bom EP epônimo de 2014. Essa é a íntegra da discografia creditada a Fantastic Negrito, mas há um álbum de 1996, “The X Factor”, assinado apenas como Xavier. A diferença entre os dois momentos é gritante: “The X Factor” é um disco absolutamente ordinário, sem nada que indicasse o frescor e a inventividade que se manifestariam nos anos vindouros. Os recentes, por sua vez, usam a base dos mais notáveis gêneros musicais de origem negra dos EUA e a partir deles entrega algo poderoso: assimilável e identificável, mas com fôlego para ir muito além da surpresa inicial. Pesado e pungente, sem abrir mão de ser pop.
Os anos passados entre as duas etapas parecem ter sido definitivos para isso: segundo Dphrepaulezz tem contado em repetidas entrevistas, após o disco de 1996 não dar em nada, ele voltou a cometer pequenos crimes, montou uma casa noturna clandestina supostamente frequentada por celebridades decadentes e sofreu um acidente de carro quase fatal que “o liberou” das suas aspirações quase obsessivas ao estrelato. Passou, então, a tocar de graça na rua e em estações de transporte público, fazendo música com o objetivo de “contribuir para o mundo”, e foi isso que, em sua visão, teria tornado sua música mais livre e com maior penetração entre as pessoas. “Bastou eu parar de querer ser um rock star para que o reconhecimento viesse”, costuma repetir.
Vários pontos dessa história não fecham – não faz muito sentido “não buscar fama” e ao mesmo tempo gravar e divulgar um EP, participar de concursos (como o do Tiny Desk Concert, que acabou atraindo atenção sobre ele) e ser banda de apoio da última turnê de Chris Cornell. Assim como ainda não houve quem checasse os fatos de seu propagado passado criminoso.
Seja como for, a história de superação e ascensão meritória contada por Dphrepaulezz pegou na imprensa, e Dphrepaulezz tem falado muito dela. Fala mais ainda sobre sua música “contribuir para o mundo”, ainda que não diga de forma muito concreta como isso acontece. Algumas de suas letras certamente tratam de questões com as quais muitos podem se identificar – “Bad Guy Necessity”, “Working Poor”, “Lost in a Crowd” são algumas delas. Mas quando ouve falar da situação dos negros no Brasil, esse senhor de 51 anos escapa do assunto voltando aos seus temas de sempre. Confira o bate papo!
Vamos começar falando de música. Seus dois últimos álbuns têm uma sonoridade muito diferente dos anteriores. O que levou a essa mudança?
Acho que é crescimento. Acho que antes eu não era tão disposto a oferecer coisas, eu era mais um taker, alguém que está sempre querendo tomar coisas dos outros, sempre buscando por algo externo. Quando eu me tornei o Fatantstic Negrito, virei algo totalmente diferente, quase como se fosse uma entidade. Eu realmente acho que acontece uma encarnação – ou várias – quando me torno o Fantastic Negrito. São incorporações. Tem a ver também com estar em um lugar diferente, espiritualmente falando. São prioridades distintas, visões diferentes. Acredito que Fantastic Negrito é um artista que contribui mais do que Xavier contribuía, que contribui para seu público e para a tradição da música negra.
Pegando esse gancho: você repetidamente tem falado sobre seu trabalho ser “música negra de raiz para todos”. Qual é a sua visão sobre sua relação com essas raízes: você as revisita sob uma ótica moderna, reapresenta-as ao público com outra perspectiva, ou parte delas para criar algo novo?
Honestamente, quero fazer algo ótimo com uma grande tradição. Isso é o que procuro. Quero compartilhar essa tradição com todas as pessoas que estão nesse planeta. Existe muita riqueza nela que pode ser compartilhada com todos. O que faço é trazer um ar fresco a elas, não acho que as reinvento. Uso-as também porque acredito que elas contribuem para mudar as muitas coisas que estão erradas.
Bem, suas músicas trazem temas sociais e raciais muito evidentes. Pensando nisso, e nessa vontade de mudar o que está errado, como você acha que sua música pode se comunicar com a porção cada vez maior do seu público que não fala inglês? Você vem ao Brasil, por exemplo, e esse é um país onde 77% das vítimas de homicídio são negros, onde a brutalidade policial é constante, contra negros e pobres. Como sua música pode atingir esse público e contribuir com ele?
Bem, a música é a única coisa que une e redime a humanidade. A vibração e o ritmo transcendem linguagens. Espero que a música que faço seja produtiva e atinja as pessoas. Como artista, eu não quero ver a injustiça acontecer em nenhuma parte do Brasil, porque se isso acontece no Brasil, é ruim para o mundo todo. Se isso acontece em Oakland, é ruim para o mundo todo. Acredito que estamos conectados, quer gostemos ou não. As crianças que ignoramos são as crianças com as quais vamos conviver, quer gostemos ou não. E essas crianças podem crescer com raiva e frustração, ou ter outra visão do mundo. Eu sei, porque eu fui uma dessas crianças. É preciso fazer com que elas se sintam queridas, valorizadas. Há anos eu cultivo algumas variedades de cannabis, e isso é algo que gosto muito de fazer. Se eu amo essas plantas e dou a elas ar, liberdade e espaço, vão produzir algo bom. Mas se eu as deixo de lado ou as coloco em um lugar apertado e escuro, eu perco minha colheita, minhas sementes e meu investimento. Penso que é assim com as pessoas também. Se não cuidarmos dessas crianças, seja na parte do mundo que for, viveremos em constante estado de medo. Mas se as abraçarmos, daremos a elas condições de elas produzirem e frutificarem.
Você acredita que tem conseguido esses objetivos elevados que você se impôs, de melhorar o mundo com sua música?
Nunca vou conseguir atingir todos os meus objetivos. Posso produzir e escrever música que me deixe orgulhoso e mantenha minha cabeça alta, esse já é um objetivo para mim. E para isso, preciso ser autêntico e verdadeiro. Como Fantastic Negrito, eu não estava buscando fama e sim minha arte. Você sabe, não sou rapper nem uma cantora pop branca (risos). Digo porque são essas as coisas que as pessoas escutam hoje. Sou esse cara de meia-idade que tocava canções nas ruas. É ótimo que eu possa estar fazendo o que faço, valorizo muito isso, mas há muito ainda a fazer.
Pensando que até poucos anos atrás você tocava na rua, qual a sensação que te acomete quando se vê diante de novas plateias e novas culturas, em lugares que antes podiam parecer inacessíveis, como a América do Sul?
É uma grande honra e uma experiência de humildade saber que essa música que faço atinge pessoas em todo o mundo. Seja na América, na Ásia ou na Europa. É minha prova de que estou fazendo o que eu devo fazer, contribuindo para melhorar as coisas com a minha arte. Estou fazendo a mesma coisa que eu fazia nas estações de trem: as pessoas estão lá, se movimentando na cidade, trabalhando em dois ou três empregos só para pagar o aluguel, e elas podem escutar uma música que dá a elas força, alívio. A coisa mais importante é que eu crio arte que move as pessoas e isso as aproxima. Eu chamo esses ouvintes de “nação de apoio Negrito” (risos). Eu levo a elas uma música que vem sido passada de avô para pai, de pai para filho. É um legado e uma tradição muito forte. Quanto ao Brasil, eu vi umas coisas aí da Bahia, não saberia dizer o nome, mas foram coisas incríveis! É tão conectado com a África, e ao mesmo tempo tão universal.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
“Mas quando ouve falar da situação dos negros no Brasil, esse senhor de 51 anos escapa do assunto voltando aos seus temas de sempre.”
Ele é obrigado a falar de algo que mal conhece?Não entendo isso.Deixa ele fazer e falar sobre o que sabe fazer.
Ele diz que a música dele pode “mudar a situação das pessoas”, e ele costuma falar em especial de ajudar a população negra. A pergunta era como isso acontecia de forma concreta, em especial junto a um público que não fala o idioma dele. Não lhe foi pedido que discorresse sobre a situação enfrentada pela população negra no Brasil.
Um dos melhores discos do ano passado, adoraria ver ao vivo a sua força rock/blues turbinado!!!