entrevista por Renan Guerra
Em 2019, Oswaldo Lenine Macedo Pimentel, o Lenine, completa 40 anos de carreira e 60 anos de vida (mais precisamente em 02 de fevereiro). São 13 álbuns lançados, seis Grammy Latino, dois prêmios da APCA, e nove Prêmios da Música Brasileira, uma carreira vitoriosa que se mantém no auge, afinal “Em Trânsito”, seu sétimo disco de inéditas, lançado em 2018, ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa (concorrendo com Jay Vaquer, Kassin, Rubel e Tim Bernardes)
“Em Trânsito” foi resultado de um processo em construção, um show ao vivo que se tornou disco, com canções inéditas e outras revisitadas – porém sendo essas fora da curva e não os grandes hits do passado. Com produção de Bruno Giorgi, filho de Lenine, o projeto subvertia a lógica tradicional em que se lança disco-show-DVD. Construído em 20 dias, o show ao vivo virou disco, com 10 faixas, e depois partiu para a estrada, daí ganhou versão deluxe com 20 faixas e também se transformou em DVD, gravado no Rio de Janeiro.
O projeto, obviamente, só ganhou vida ao lado de sua banda, formada por Jr. Tostoi (guitarra), Guila (baixo), Pantico Rocha (bateria) e Bruno Giorgi (guitarra), que deu uma cara de show de rock ao espetáculo. Além da banda fixa, o disco ainda conta com a participação dos músicos Amaro Freitas, Gabriel Ventura e Carlos Malta e reúne parcerias com nomes como Arnaldo Antunes, Ivan Santos, João Cavalcanti, Paulo César Pinheiro, Lula Queiroga, Carlos Posada e Carlos Rennó, passando por diferentes fases da produção de Lenine.
Apesar dessa diferente temporalidade de cada canção, o resultado final gerou um disco construído de atualidades: canções de força e intensidade, que refletem a ótica do nosso tempo, como “Intolerância” e “Sublinhe e Releve”, essa última dos simbólicos versos “o tom é grave, o tempo é breve”. Festejando seus 60 anos, o músico pernambucano conversou com o Scream & Yell sobre o processo de produção de “Em Trânsito”, sobre sua criação artística e sobre a fundamentalidade da arte em tempos tão sombrios. Confira abaixo:
O “Em Trânsito” foi construído em 20 dias. É um tempo curtíssimo. Como foi esse processo de trabalho? O conceito de trabalhar quase como uma banda de rock foi fundamental para essa criação?
É, no caso do “Em Trânsito” isso foi fundamental, isso foi uma opção que surgiu desde o início, de a gente começar fazendo e montando um espetáculo e do espetáculo a gente extrair todos os veículos: CDs, vinis e DVDs. Portanto, essa coesão de banda ela tinha que estar presente desde o início do processo todo.
Você confundiu divertidamente a cabeça dos jornalistas e críticos: algumas matérias falam “álbum inédito de Lenine”, outras chamam “o show inédito de Lenine”, “o álbum ao vivo”, “o ao vivo que virou álbum”. Essa sua subversão de uma ordem usual no mercado fonográfico é algo corajoso, como você chegou a essa possibilidade de produção?
Ai que bom ouvir isso de você, por que é fundamental a gente percorrer caminhos diferentes, isso termina ficando explícito no resultado final de qualquer projeto. O melhor de tudo é o caminho que você escolhe percorrer, cara. E sim, o “Em Trânsito” tem essa característica de antes de tudo fazer um show, desse show eu pós-produzi e saíram várias coisas, portanto isso é difícil mesmo, é um show inédito, com músicas inéditas e mesmo as músicas que não são inéditas, receberam um alto grau de ineditismo a partir do momento que foram refeitas com novos arranjos, como novos relevos sonoros.
O projeto do “Em Trânsito” tem patrocínio da Petrobras e do Governo Federal, você acredita que esse tipo de suporte é fundamental para que você consiga trabalhar com liberdade e possa fazer essas subversões?
Não, a questão não é se é fundamental ou não, por que você faz de uma maneira ou de outra se você realmente quer fazer, agora o subsídio é muito bem-vindo, por que isso facilita. Existe uma ideia que cada vez mais se implanta que é: a conta não fecha, cara. Hoje em dia, um show, um espetáculo, se você juntar nessa equação o que vai de luz, de som, de equipamentos, as passagens, as diárias, a alimentação, a hospedagem, tudo isso faz com que o ingresso lá no final fique muito caro, então o subsídio quando o objetivo é baratear esse custo é muito bem-vindo.
Numa de suas falas no lançamento de “Em Trânsito”, você comenta sobre certo desânimo de produzir que lhe abateu frente ao cenário quase sombrio do país e, especialmente, do Rio de Janeiro. Como você transpassou isso? E como você percebe a importância de se produzir arte em momentos como esse?
Ai que bom ouvir essas perguntas na atual conjuntura, por que corrobora muita coisa do que eu tenho pensado mesmo, eu faço o que eu faço e para quem eu faço. Então essas questões são básicas sim, eu me sinto mais útil quando sei que a música que eu faço pode ajudar como alavanca, como trampolim, como conscientização, ah, tudo isso é muito bom! E eu faço ousando achar que isso é real, que isso acontece, que as pessoas melhoram como ser humano a partir do que ouvem, a partir do que canta, do que experimenta.
Esse já é seu terceiro projeto que é produzido pelo Bruno Giorgi. Além disso, o João Cavalcanti compôs com você uma das faixas. Como é esse trabalho em família: há uma separação entre o pai e o músico na hora da produção?
Bom, pra começar, pelo trabalho: já são trabalhos bem diferentes, você vê, um é o Bruno Giorgi, que na verdade produziu e dirigiu todo o projeto e que no caso tem importância fundamental, por que dirigiu não só a mim, mas a todos os músicos e o espetáculo. O João é o primogênito, é o meu parceiro na letra, veja bem que foi numa canção; e é muito bom ter isso, ter um autor comigo que é meu filho, olha só que maravilha. Tem também o Bernardo, e isso é uma coisa bacana que eu uso e tem a ver com os três, que é o aparelho fônico dos três, eles estão muito semelhantes, a voz parece com a minha voz, cada um tem um timbre muito semelhante, na hora de fazer os vocais dos discos, isso é um benefício, por que eu posso fazer um naipe quase como se fosse… as vozes são tão parecidas, que parece uma pessoa só cantando e eu uso isso desde o “Chão” [2011]. Não! Desde o “Labiata” [2008], antes do “Chão”. Isso é muito bom, isso é muito bacana, quando tem o período de gravar os vocais em cada disco que eu faço.
Você decidiu revisitar “Lua Candeia”, que é uma faixa sua e do Paulo César Pinheiro, que já havia sido gravada pela Margareth Menezes, mas aqui você a apresenta ao lado do pianista pernambucano Amaro Freitas. Como se deu essa parceria com o Amaro?
Na verdade, a gente conheceu ele num período de carnaval, eu estava em Arcoverde, o Bruno Giorgi já tinha me falado sobre Amaro, já estavam fazendo algumas coisas juntos. Bruno também já tinha feito o Vítor Araújo, que também é pernambucano, duas vertentes de um piano nordestino, digamos assim. E eu, eu tava devendo isso ao instrumento, eu tinha essa impressão de que eu devia ao instrumento algum tipo de parceira. Rapaz, quando eu vi o Amaro, eu realmente fiquei apaixonado por ele, me ocorreu que aquela música específica, o “Lua Candeia”, poderia ser um estímulo harmônico bacana para ele pirar, ele viajar em cima daquilo e foi o que aconteceu.
Além de “Lua Candeia”, outras músicas mais antigas reaparecem, mas todas com roupagem nova. Como foi esse processo de olhar para elas de forma nova, como se fossem canções inéditas?
Bom, isso tem a ver muito com as escolhas que fizemos eu e Bruno, pois Bruno, como diretor, também me ajudou muito na hora de escolher as canções que dialogariam com o material inédito. Então isso foi uma equação que fizemos juntos, fomos chegando a essas canções com o tempo e foi num primeiro momento eu e o Bruno, depois no estúdio com o resto da banda e foi assim. As escolhas tinham a ver muito com a temática, sobre o que eu falava, o tipo de poesia, o tipo de temática que envolvia cada uma dessas canções. A gente fez essa pesquisa juntos.
O “Em Trânsito” foi premiado com o Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa. Como é pra você esse tipo de reconhecimento internacional?
Prêmio é bom por que corrobora todo mundo, por que você reafirma equipe, prêmio é bom quando a gente ganha. E isso por que reverbera todo mundo que se envolveu, não só quem criou, quem compôs ou quem arranjou, quem tocou, mas toda uma cadeia de pessoas, de profissionais, que qualquer projeto passa. Então, quando você ganha o prêmio todo mundo fica feliz, todo mundo ganha um pedaço desse prêmio, então é uma comemoração, é uma reafirmação.
No release de lançamento, o João Cavalcanti falava em “manter-se atento ao caminho, mesmo sem saber o destino”. Nesse sentido, você acredita que do lançamento do disco até agora as canções também se modificaram e cresceram com esse processo de estradas e shows?
Não tenho dúvidas que isso acontece e que continua acontecendo, por que de repente quando você aposta uma canção que ainda é recente assim, ela não teve tempo ainda e não teve maturação, mas principalmente não teve tempo na boca e no ouvido do público, e isso é incrível, ela só vai adquirindo com o tempo, mas no “Em Trânsito”, como teve toda essa urgência, a maneira como foi feita, o tratamento que demos às canções, por que era um tratamento de show, de espetáculo, e depois de um ano de chão, cara, as canções realmente já se modificaram, ganharam uma materialidade maior e já são… algumas delas já parecem que tem mais tempo do que realmente tem.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o site A Escotilha. A foto que abre o texto é de Flora Pimentel / Divulgação
Sempre inquieto e instigante. Um grande artista.