entrevista por Bruno Lisboa
Escritor, jornalista, quadrinista e gestor cultural. Estas são apenas algumas das várias funções que Pedro de Luna acumulou nos decorrer dos anos. Em especial a década de 90, período em que viveu acompanhou in loco a efervescente cena alternativa musical que imergiu Brasil à fora.
A expertise adquirida foi transformada em noves livros que analisariam não só o universo da música, mas também áreas adjacentes como a vida e obra do quadrinista Marcatti (em “Marcatti: Tinta, Suor e Suco Gástrico”). Sua obra mais recente e, talvez, mais ambiciosa foi lançada em dezembro de 2018: a biografia “Planet Hemp – Mantenha o Respeito”, que cobre a carreira da banda, que, a sua maneira, mudou a música brasileira, vide a mistura explosiva de ritmos como rock, rap, reggae, hardcore e adjacências e na adoção de bandeiras como a liberdade de expressão nas letras.
No livro, a carreira da banda criada por Marcelo D2 e Skunk no inicio dos anos 90 é passada a limpo de maneira primorosa, fruto de uma longa pesquisa que contou com mais de 100 entrevistados. Outro ponto a favor é que, acertadamente, o autor ao contar a trajetória do grupo faz também um belo recorte do que acontecia culturalmente no Brasil, principalmente no underground, graças ao crescimento de diversas cenas locais.
Nesta ótima entrevista, Pedro fala sobre o processo de criação do livro e o seu caráter didático, a importância de ouvir quem acompanhou in loco toda a trajetória do Planet (“O livro é contado pelos que estavam lá, eu fui apenas uma espécie de menestrel, que organizou os fatos no tempo e no espaço, encadeando tudo e dando fluidez a narrativa”), as mudanças substanciais do mercado da música dos anos 90 para cá (“As redes sociais criaram a sensação da urgência, do retorno rápido, mas uma relação sólida é construída no dia-a-dia.”), o legado desta geração, as dificuldades que circundaram a edição do livro (“Foi um trabalho duro, solitário e hercúleo”), o mercado editorial e a crescente produção de biografias nacionais, projetos futuros e sobre a polêmica nota de repúdio lançada pela Na Moral Produções, responsável pela carreira do Planet, ante a obra.
“Mantenha o Respeito”, mais do que contar a trajetória do Planet, faz um belo apanhado da cena carioca da época. Este projeto está sendo desenvolvido há quanto tempo?
Desde o meu primeiro livro, “Niterói Rock Underground1990-2010”, lançado de forma independente em 2011, que o Planet me chamou a atenção. Foi quando eu percebi que tinha um material bacana deles no meu acervo pessoal. Eu sempre gostei da banda e dos caras, eles eram um orgulho para a cena carioca. E aí fui escrevendo outros, como o “Brodagens” (2016) e o “coLUNAs” (2017) até tomar coragem para encarar o meu livro mais difícil. “Planet Hemp: Mantenha o Respeito” é o meu nono livro e em todos eles eu sempre contextualizo o biografado dentro de um contexto. Considero muito importante esse caráter didático, por que o underground é formado por um grupo restrito de pessoas e muitos leitores sequer viveram os anos 1990. Por isso mesmo o livro situa os músicos individualmente antes e depois da banda e dentro da cena, mostrando os aspectos favoráveis ou não, bem como os lugares e os demais atores, porque o sucesso do Planet decorre de tudo isso, inclusive de se cercar de formadores de opinião que podiam ajudar o grupo. As pessoas certas na hora certa. Nas 496 páginas também incluí várias notas de rodapé e um mapa chamado “Localize Já” mostrando mais de 50 pontos que a banda frequentava nos anos 1990, ajudando o leitor a compreender o deslocamento geográfico da banda e da própria cena. Não podemos partir do princípio que o leitor é um cara super interado no underground como nós, jornalistas musicais que cobrimos as bandas há anos, e que conhece cada referência citada na obra. Até porque tem gente que começou a gostar do Planet de cinco anos pra cá, que nem tinha nascido naquela época.
A pessoalidade impressa na obra faz um grande diferencial na narrativa. Para você que acompanhou a cena in loco como foi esta época?
Curioso porque tentei ao máximo manter uma distância dos fatos, por isso o livro é contado por quem estava lá, não apenas os músicos, mas os que foram chamados pelo empresário da banda de “coadjuvantes”. Todos foram importantes para o sucesso do Planet Hemp, desde os amigos e a equipe técnica até os jornalistas, os produtores de eventos, o pessoal das gravadoras, VJs, DJs, outros músicos (como Edu K e Castor, do DeFalla) e, claro, os fãs. Toda boa história conta com bons “coadjuvantes”, que é o caso também na biografia do Planet. Você deve ter percebido que o livro é contado pelos que estavam lá, eu fui apenas uma espécie de menestrel, que organizou os fatos no tempo e no espaço, encadeando tudo e dando fluidez a narrativa. Também fiz questão de dar voz a todos, cada um que viveu a história, expondo o seu ponto de vista e a sua opinião. Sinceramente, não me importa o que eu acho ou penso, pois isso poderia tirar a imparcialidade e a isenção, e sim as conclusões que o leitor vai tirar ao final da leitura. E, para a nossa alegria, até agora foram muitos e muitos elogios! Os anos 1990 ainda foram movidos pelas gravadoras e a MTV, muita gente ganhou dinheiro vendendo disco, o que começou a mudar na virada do milênio, com a pirataria de CDs e DVDs, o boom do MP3, e a própria internet, quando a mídia começou a perder o monopólio e a comunicação sem filtros entre artista e fã se intensificou. Falo muito sobre isso no meu primeiro livro, “Niterói Rock Underground1990-2010”, que aborda as mudanças tecnológicas, econômicas, artísticas e sociais nessas duas décadas. Ele próprio é um bom exemplo do impacto da tecnologia. Estava esgotado desde 2013 ou 2014, quando enfim vendi os mil exemplares. Hoje ele está novamente disponível graças impressão sob demanda, à venda através da Amazon.
Muito se fala sobre o legado deixado pela geração anos 90. Quais as principais marcas deixadas por esta geração?
Uma marca que é muito importante da geração 90, no que tange as bandas, é que bandas de rock de todo Brasil criaram suas sonoridades a partir da mistura de outros estilos como fizeram os Raimundos, o Dotô Jéka, o Funk Fuckers, o Planet Hemp, o Rappa e Chico Science e a Nação Zumbi. E a criação de selos e sub-selos que deram vazão ao que era produzido na época. Outro ponto interessante é que a geração anos 80 fala que nos 90 havia mais facilidade de se divulgar o trabalho. A começar pela própria MTV. Mas também são desta época a criação de muitas revistas, fanzines, programas de rádio, e programas de TV especializados que davam foco à música independente. Então de fato a geração anos 90 se beneficiou por ter mais uma imprensa especializada, decorrente do próprio fomento do mercado, das gravadoras, que investiram pesado. Mas apesar disso as dificuldades eram as mesmas de sempre, pois ainda havia falta de espaço para tocar. Por mais que houvesse uma abertura de mercado que facilitou a aquisição de melhores instrumentos, mas ter um bom instrumento não faz de ninguém um bom músico. É preciso se dedicar, estudar, praticar, ensaiar. Então neste contexto é importante destacar que nos anos 90 houve um esforço muito grande por parte da cena independente, pois todos os elos da cadeia (bandas, fanzineiros, produtores de evento…) eram muito unidos. E estamos falando de uma era sem internet. Então era necessário comparecer nos shows para pegar um fanzine, comprar uma fita demo e conhecer novas bandas. E esta cultura de divulgar a música por conta própria foi determinante a partir dos anos 2000. O underground para mim se tornou fascinante por causa disso. Quando eu comecei a trocar cartas com pessoas de todo Brasil, que divulgavam coisas que não apareciam nos jornais tradicionais, revistas ou TVs eu fiquei muito fascinado porque eu descobri que ali havia bandas muitos mais legais do que as que tocavam nas rádios.
O mercado musical sofreu drásticas modificações de lá pra cá. Quais as diferenças mais substanciais você vê hoje?
Acho que comecei a falar disso na pergunta anterior, mas é um assunto complexo demais para responder em dois ou três parágrafos. A tecnologia barateou a gravação e a distribuição, por exemplo, mas certas coisas continuam as mesmas. Se a música não for boa, não se sustenta o suficiente. Se o artista não investir no relacionamento com o fã, sua carreira não vai durar. Percebo que há uma deficiência enorme na comunicação entre eles, que ainda não é tão individualizada como deveria ser. Durante 10 anos eu fiz um movimento em Niterói chamado Arariboia Rock e, mesmo com tanta tecnologia, algumas bandas não tinham um release, uma logomarca ou mesmo uma foto decente de divulgação. Isso numa era onde qualquer smartphone pode fazer fotografias em alta resolução e apps colocam efeitos incríveis na imagem. Então não adianta só a tecnologia, se falta atitude e cuidado com os detalhes. As redes sociais criaram a sensação da urgência, do retorno rápido, mas uma relação sólida é construída no dia-a-dia. Eu sei exatamente quem é meu leitor, quem já comprou algum dos meus nove livros. Porque muitos compram direto comigo ou apenas trocam mensagens e fazem os seus comentários pela internet. Sempre haverá aquele que só curte, comenta, mas não compra nada nem vai aos eventos, mas nem por isso vou destratar ou ignorar a pessoa. “Ame ao próximo como a si mesmo”. Nenhuma hiper tecnologia desbancará premissas simples e básicas de humanismo.
Algumas das suas obras anteriores abordaram a cena cultural carioca. Estas pesquisas anteriores prepararam o terreno para “Mantenha o Respeito”?
Com certeza. Todas as pesquisas dos meus livros anteriores ajudaram bastante no processo de “Planet Hemp: Mantenha o Respeito” porque, para a minha surpresa, os integrantes e ex-integrantes quase não tinham nada daquela época. Numa das vezes que eu fui à casa do Marcelo D2 eu fiquei surpreso com o seu desprendimento. Ele mesmo não tinha foto, rascunho de letra, matéria de jornal, nada. Me contou que foi mudando de casa e as coisas foram ficando pra trás. Sua primeira mulher contou ao livro que ele nunca teve apego com esse tipo de coisa, enquanto eu sou – como certa vez disse o Donida (ex-Matanza e Acabou La Tequila) – um “arqueólogo cultural”. Eu guardo tudo: releases, fitas demo, CDs, DVDs, vinis, cartazes, credenciais etc. Eu adoro história e preservo com carinho os meus acervos e tudo o que ganhei durante a pesquisa para o livro do Planet Hemp, pois ainda pretendo fazer um doc e uma exposição. E sei que essas informações não estão na internet. Para você ter uma ideia, dentre os tantos que colaboraram neste livro, os que mais ajudaram com material de acervo foram o Bacalhau (primeiro baterista), o Kleber (técnico de PA), o Tonante (fã) e o Ronaldo (primeiro empresário da banda) que me deu a pasta com as colagens do próprio Skunk, a sementinha criadora do Planet Hemp. Algum material coletado durante a pesquisa para o livro do Planet será utilizado para a biografia do Speed, ex-parceiro do Black Alien e que tocou com o Planet Hemp e cantou com o Marcelo D2. Esse meu décimo livro está previsto para março e está sendo escrito junto com um fã do Speed – que sequer o conheceu pessoalmente, mas admira a sua obra e está empenhado em preservar o seu legado para a posteridade.
O livro é fruto de uma longa pesquisa com mais de 100 entrevistados. Quais as dificuldades de editar tanto material? Como se deu a seleção do que deveria ou não entrar?
A pesquisa foi a parte mais difícil por que fiz sozinho e sacrificou bastante a minha família e a minha saúde. Como havia muita imprecisão nas datas, tive que fazer uma cronologia dos principais marcos da banda por dia, mês e ano. Ela foi disponibilizada no final da biografia. Nesse aspecto, a imprensa escrita foi fundamental, pois a matéria de jornal tem a data completa. Quase ninguém coloca o ano num flyer de show, por exemplo. E depois que surgiram blogs e redes sociais como Orkut e Fotolog, muita coisa se perdeu quando essas páginas saíram do ar. Foi um trabalho duro, solitário e hercúleo. Durante dois anos dormi e acordei com a história na cabeça. Em setembro de 2017 entrei na fase de entrevistas pessoais e por e-mail, e foi bastante cansativo, indo na casa de um por um. Tenho tudo registrado seja em áudio, vídeo, e-mail ou arquivos de áudio. As entrevistas com Mario Caldato Jr e Seu Jorge, por exemplo, que moram nos EUA, realizei por áudio no Whatsapp. Aproveitei praticamente tudo o que as pessoas falaram nas entrevistas, o que não entrou era por não agregar nada à história ou fazer simples promoção pessoal. Desde o início a intenção do livro nunca foi lavar roupa suja ou fazer “mimimi”. Isso não interessa a ninguém, muito menos ao público. Aliás, aproveito para agradecer ao editor Marcelo Viegas que foi muito criterioso e cuidadoso com as palavras na revisão.
BNegão foi um dos poucos integrantes do Planet a não serem ouvidos, devido a conflito de agendas. Por que não foi viável espera-lo? A ausência da sua voz dificultou a construção da obra?
Corrigindo a sua pergunta, ele foi o único entre integrantes e ex-integrantes da banda que não deu entrevista. Ele devia estar muito ocupado por que quando começamos os encontros, em setembro, pois ele mesmo sugeriu que deixássemos para novembro e dezembro, mas infelizmente não rolou o encontro. Mesmo assim o livro ficou ótimo, pois eu tinha muitas entrevistas dele em jornais, sites, revistas e fanzines, e não comprometeu em nada o livro. Como dissemos na nota do dia 28/12/2018 (publicada no site da editora Belas Letras) “aguardar mais tempo por BNegão seria falta de respeito com quem encontrou espaço na sua agenda para colaborar. Se mais alguém ficou de fora e considerou que deveria estar no livro, pedimos desculpas pela omissão, que certamente não foi voluntária”.
O mercado editorial brasileiro parecia preferir traduzir biografias de artistas internacionais do que investir em produções nacionais. Mas, de uns tempos pra cá, isto tem mudado bastante. A que se deve esta mudança?
Seria pretensioso demais cravar uma resposta definitiva, mas sugiro pelo menos dois motivos: maior interesse do público brasileiro pela sua própria história (o que foi alavancado também com a adaptação das biografias em livro para o formato audiovisual) e uma visão menos preconceituosa dos próprios editores, que vem valorizando ainda mais o produto nacional. A editora Belas-Letras, que lançou a biografia “Planet Hemp: Mantenha o Respeito”, tanto publicou no Brasil a bio do Anthony Kieds (vocalista do Red Hot Chilli Peppers) e do Jim Lindberg (vocalista do Pennywise) quanto a do Nasi (vocalista do Ira!) e das bandas Nenhum de Nós e Engenheiros do Hawaii. Quem assistiu ao filme “Legalize Já” (lançado em 18/10/18) provavelmente terá interesse em ler a biografia do Planet Hemp e conhecer melhor aquele período antes da banda se formar. O filme é uma livre adaptação, o livro é a história nua e crua.
Recentemente a Na Moral produções, responsável pela carreira do Planet Hemp, soltou uma nota de repúdio ao livro. Ao que parece a opinião dos integrantes não é o mesmo da produtora. Como vocês lidaram com esta nota?
Eu já vinha recebendo calúnias e difamações do empresário pela internet há alguns dias, além de xingamentos dele no meu Whatsapp. Tenho mensagens dos integrantes dizendo que adoraram o livro, inclusive o Marcelo D2, além de ter contado com a presença do Formigão, Bacalhau, Pedrinho, Zé Gonzales e Apollo Nove nos eventos realizados no Rio e SP. Pelo visto, o único que ficou descontente foi o empresário, mas sem dizer o motivo, e passou vários dias me xingando e ameaçando. No último dia 28, após outra nota caluniosa, pessoal e ofensiva emitida pelo empresário, liberamos um comunicado público esclarecendo os fatos. Pouco depois o post foi retirado do Facebook da banda e mantido sem qualquer repercussão no Facebook da produtora. Até o momento esta foi a única polêmica, mas em se tratando de Planet Hemp, a única banda de rock brasileira que foi perseguida e presa, tudo é possível.Aos interessados, o texto que divulgamos está disponível aqui.
A obra deixa em aberto diversas histórias que se entrecruzam a trajetória do Planet. Dos vários precedentes apresentados qual deles você gostaria de fazer? A história do Matanza, ao que parece, daria um ótimo livro!
Com certeza. Ninguém está sozinho no mundo, nossos caminhos estão sempre se cruzando com os de outros. No caso do Planet Hemp, havia a hemp family que incluía bandas como O Rappa, Chico Science & Nação Zumbi, Squaws, Farofa Carioca, Black Alien, Funk Fuckers, Cabeça, Tornado, Cynics, Serial Killer e tantas outras. Eu gostaria de escrever sobre o Garage, por exemplo, onde o Planet fez os seus primeiros shows, e que foi a casa que abrigou todo mundo, bom ou ruim, independente do estilo musical. A dedicação do (falecido) Fabio Costa ao underground é um caso raro, e que custou a própria vida. Também acho bacana (e ao mesmo tempo trágica) a história dos Raimundos. Na bio do Planet eu contei que, na fatídica noite do show da banda brasiliense em Santos, quando vários jovens morreram caindo da escada, o Planet Hemp ficou detido a madrugada toda numa delegacia em Belo Horizonte. Mas ninguém soube por que o foco da imprensa estava na tragédia santista. Só que no dia seguinte ao incidente em Minas Gerais, a banda do Marcelo D2 pegou a estrada pra ser presa em Brasília. Os Raimundos eram broders do Planet, que também eram broders do Charlie Brown Jr., do Jorge Cabeleira e o Dia em Que Seremos Inúteis (PE), d´Os Cabeloduro (DF) e tantos outros. Eu falo muito sobre a real amizade da galera under carioca no livro “Brodagens” (2016), também disponível em impressão sob demanda pela Amazon.
– Bruno Lisboa (@brunorplisboa) é redator/colunista do Pigner e do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Elza Cohen / Divulgação