Texto por Fábio Torres
Fotos do show por Xiru Sander
E lá se vão 20 anos. 20 anos do dia em que eu e um casal de amigos, num sábado gelado, subimos a serra gaúcha em direção a um sítio entre Morro Reuter e Dois Irmãos (vulgo, Two Brothers). Só tínhamos o endereço de um evento que não sabíamos bem o que era, algo entre um encontro holístico e uma convenção de bruxas (segundo fui informado a posteriori junto à fogueira). As poucas informações tiradas de um breve anúncio na rádio Ipanema que meu amigo Sílvio achava ter escutado corretamente, mas não tinha muita certeza. Claro, tivemos que sair pedindo informações nas poucas casas encontradas pelo caminho e pouco antes do entardecer achamos o lugar (GPS? Veja bem, estamos falando do século passado).
Finalmente, iríamos ver quem eram aquelas pessoas que sem nenhum CD oficial, mas já com três ou quatro canções tocando direto na rádio, tinham criado aquela conexão tão grande com a gente, do tipo… É isso! É isso que pensamos. É isso que queremos. É a nossa banda, a nossa tribo.
O show, apenas vozes e violão, foi impactante. Simples, direto, lindo… difícil de descrever. Saímos de madrugada do sítio, cada um com um CD-R nas mãos e descemos o morro cantando a plenos pulmões, numa estradinha escura e perigosa, a versão lóver de Eleanor Rigby – “Haaaa veja quanta gente junta, Haaaa veja quanta gente tão só”.
Desde então, perdi a conta de quantos shows, de quantos bares, lugares e situações. Amores, casas, novos amores, amigos, acampamentos, luaus, aniversários: tudo que é bom sempre foi regado a Darma Lóvers. Uma espécie de molho caseiro, receita da avó para o macarrão cotidiano que faz toda a diferença no domingão da vida.
Se eu continuo insistindo no violão, a culpa é do Nenung. Eu já tinha desistido quando escutei pela primeira vez “Seres Estranhos”, fiquei louco e pensei – tenho que tocar isso aí. Foi a primeira música inteira que eu decorei, letra e acordes. E a simplicidade destes acordes e a profundidade da letra me incentivaram a tentar inventar as minhas próprias canções e a ter uma banda, esse era o caminho. Mas isso é outra história.
Dos shows inesquecíveis, além do primeiro, claro, teve um no Sarau dos Câmara. Lotado. No convite do show a banda pedia ao público para levar violões e tocar juntos algumas músicas. Que banda faz esse tipo de coisa? Os Darma Lóvers fazem. Foi uma loucura e foi lindo.
No lançamento do álbum “Básico” (2002) no Ocidente, histórica casa porto-alegrense, o duo tinha crescido, virado banda. A Banda! A performance de “A Lua na TV” desta noite está gravada na minha alma. Nessa época, bem antes da febre de bandas psicodélicas brasileiras, os Darma carregavam nas texturas sonoras, na presença de palco, no cenário, luzes, etc… Tudo na base do faça você mesmo, mas com muito profissionalismo. Naquele momento eles eram a melhor banda psicodélica brasileira.
Último dia de Morrostock, festival independente de música, artes e resistência cultural que acontece desde 2007 no Rio Grande do Sul, domingo à tarde. Depois de dias pulando e cantando na chuva e na lama, restavam poucos sobreviventes no Bar do Morro. Sentados na grama que o domingo de sol forte tinha secado, Os Darma Lóvers cantaram baixinho como se não quisessem acordar os sequelados que fritavam dentro das barracas. Sorrisos nos rostos. Almas muito leves. Fechando uma edição memorável do festival. Acho que foi um dos últimos shows no Bar do Morro. Depois desta edição o festival cresceu tanto que teve que mudar para um lugar maior.
Outro show inesquecível no Ocidente, meu “Dark Side Show”. Tinha acabado um longo relacionamento, minha vida estava um caos, tudo ruindo… Fui ao show pra tentar reenergizar. Dei de cara com a ex… e na saída caí numa blitz, prenderam minha moto e perdi minha carteira de motorista por um ano. Desapego, aprendizado, resiliência. Isso é Darma Lóvers.
O mais recente show aconteceu no Salão Mourisco da biblioteca pública do estado, um lugar com magia peculiar. Lotado, mas não era o público da banda, muita gente nunca tinha ouvido falar deles, nem sabia o que esperar. Show intimista, sem palco, público na cara. Quando tocaram “Canção Para Minha Morte” (uma das minhas prediletas), nunca vi tanta gente chorando num show de rock. Alguns soluçavam. Darma Lóvers também é um soco no estômago.
No dia 22 de novembro de 2018, na casa dos Darma Lóvers em Porto Alegre, também conhecida como Bar Ocidente, a banda convidou seu público para celebração do espetáculo – Darma Lóvers 20 anos Luz.
Com a promessa frustrada da presença do legionário (e parceiro de canções do Nenug) Dado Villa-Lobos, que por motivos operacionais não pode comparecer (e ninguém deu falta) e a novidade do novo Darma-Brother, o baterista Duda Guedes, a banda encontrou um público eclético como sempre, de velhos amigos e marinheiros de primeira viagem, mas que sabiam, estavam todos ali não para um show de rock, mas para uma celebração numa frequência um pouco mais alta. Não para assistir uma banda, mas para participar de um encontro de união de forças e energias (qualquer semelhança aos Deadheads, fãs da banda Grateful Dead, não deve ser mera coincidência).
Na atual formação, além de Irínia e Nenung, o mago da guitarra Marcelo Fornazzo, que, para esse show, trocou sua clássica Fender creme por uma pesada Gibson Les Paul, o baixista Thiago Heinrich, o lendário Jimi Joe (guitarra e violão de 12 cordas) e o pianista Avicente, além do já citado Duda Guedes na bateria, dando uma nova e vibrante roupagem a algumas canções que tiveram pela primeira vez o acompanhamento de um kit de bateria completo.
No repertório, clássicos que não podem faltar (ver respostas de Nenung abaixo), pérolas como a maravilhosa “O Buda Que Sou”, tocada raríssimas vezes ao vivo, e a inédita “O Santo e o Louco”. Com momentos de catarse coletiva como em “Senhor da Dança”, introspecção e fúria nos gritos não abafados da plateia em “Peixes” e na vigorosa e empolgante versão de “Seres Extranhos”, o tempo ausentou-se do espaço e passou tão rápido quanto esses 20 anos. E tudo acabou, como tudo sempre acaba, numa celebração à impermanência.
Nesses 20 anos mudei muito. Tudo muda. Nada muda. Mahamudra (outra predileta). E revisitando a discografia da banda, desde aquele CD-R, cujas cópias eram feitas no computador e as capas eram rabiscadas uma a uma pela dupla, até o mais recente “Espaço” (2013), que já não é tão recente assim, nota-se claramente a atemporalidade das canções. Talvez a técnica e a qualidade das gravações tenham mudado, mas a verdade, a sinceridade e a força delas continua ali, intacta.
Quanto a mim… eu diria apenas que “O tempo é um professor sem pressa, mas é exigente”. Sigo aprendendo.
20 anos com os Darma Lóvers – Três Perguntas :
Por Nenung:
O que é ser um Darma Lóver?
Ser um Darma Lóver é bastante fácil. É a escolha do caminho interno, que se traduziu por meio do nosso professor, dos que vieram a partir dele, da música como expressão. É tudo inseparado. Não tem botão “liga/desliga” porque não faria sentido, não é preciso. Então como banda a gente se sabe uma manifestação alegre, colorida, intensa e sincera desse ponto essencial de sermos aventureiros internos. É uma baita alegria ser um Darma Lóver.
Depois de 20 anos, você acorda e pensa – “Hoje tem show dos Darma Lóvers!”. O que te faz sair da cama?
Todo dia de show é um dia diferente por envolver uma qualidade de atenção e intensidade diferente. Nos Darmas, pela raridade que agora tem sido nos reunirmos – uma escolha – um dia de show garante essa atenção e intensidades também singulares. Ensaiar com esse povo já é um prazer porque se formou uma mandala sonora, afetiva e talentosa que gera uma freqüência única e muita risada. É um barato estar dentro disso fazendo parte, interferindo na direção, dando espaço pros demais viajarem e arriscarem. Basicamente preparar o terreno pro 4nazzo por as baleias pra dançarem com a guitarra, ele é o maior. E claro, o show tem a vibração do público, aquela pessoa cantando sabendo que a música já é dela, aquela outra com lágrimas nos olhos, aquele abraço sem palavras depois que acaba o rito. Isso não tem preço.
Na hora de montar o repertório, qual aquela que não pode faltar, aquela que te deixa realizado – “Porque eu AMO cantar essa!”?
Pessoalmente no aspecto do cantar gosto especialmente das que puxam uma intensidade que desafia o limite como “Desapego”, “Sem Eira Nem Beira”, “Srta Saudade da Silva” ou “Dona Morte”. Em termos de banda amooo as que abrem frentes pras viagens interestelares como “A Lua na TV” (A Irínia até briga comigo porque nunca sai do repertório – rsrs), “Bróder Anjo” e “Bodisatva”. É quando cada um pode viajar e explorar o campo da canção sem estar preso a um tempo limitado e um caminho definido pra chegarmos ao final. Sempre são diferentes, sempre são incríveis de tocar. Já a Irinia gosta bastante das “lado B”, quer fazer um repertório todo diferente a cada vez. É interessante que somos duas polaridades no vórtice que tanto no palco quanto fora dele acabam criando essa qualidade única que se traduz na identidade dos DLs. É bonito demais.
Por Irínia:
Na verdade, não existe um darma lóver, mas sim, muitos darma lóvers. Digo isso porque essa condição não diz respeito a pessoa individual e sim a uma condição de amor e abertura para o universo.
Aprendemos a ser darma lóvers
O único que nasceu pronto foi o Guru (Chagdud Tulku Rinpoche), e é com ele que acordo todo o dia, inclusive em dias de show, porque então todos os meus professores estão juntos comigo, celebrando a alegria, o amor, a compaixão e a impermanência, falando nela, resumo assim um dia de show dos Darma: curte, viva, celebre e agradeça, rapidinho vai acabar!
Então amanheço agradecendo a oportunidade de compartilhar com todos os seres a alegria de estar vivo.
As músicas que não podem faltar são muitas… Sempre quero que o show seja longo, mesmo sabendo que é melhor deixar um gostinho de quero mais. Para mim, pessoalmente, não pode faltar: “Sem Eira nem Beira”, “Canção pra Minha Morte” e “Desapego”.
Aaaa e “Senhorita Saudade da Silva”, que é a minha música.
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