Texto por Bruno Capelas
Fotos por Drico Galdino / Divulgação NoArCM
Um dos mais tradicionais e relevantes festivais do País, com uma ficha corrida de mais de uma década de bons serviços prestados à música, o recifense No Ar Coquetel Molotov baixou em São Paulo para sua primeira edição paulistana na última sexta-feira, 30 de novembro. O local era a The Week, a noite era de chuva forte e a escalação era eclética – em uma acepção de quando a palavra ainda não tinha se tornado sinônimo de “ah, eu ouço qualquer coisa” – e 3 mil pessoas, segundo a produção, se aventuraram pela Lapa paulistana para uma noitada de boa música.
Coube aos Boogarins abrir os trabalhos por volta das 19 horas (sempre um horário caótico para se começar shows e eventos na cidade), em uma performance que se pautou pelo repertório de seu último disco, “Lá Vem a Morte”, de 2017, mas não deixou de lado os primeiros trabalhos da banda. A diferença entre as duas fases – o início mais solar, a atualidade mais sombria, como não poderia deixar de ser – seria mais perceptível não fossem os goianos uma das melhores bandas brasileiras da atualidade.
Há motivos para isso: a presença de Ynaiã Benthroldo (ex-Macaco Bong) nas baquetas dá aos Boogarins uma solidez para a experimentação – nada como alguém com cancha de improviso em palco para fornecer essa base. É essa fortaleza que dá a Dinho Almeida, o guitarrista mais pronunciado do Boogarins, liberdade para se tornar um belo frontman, arriscando voos vocais e se libertando do papel de “nerd da guitarra” que lhe cabia nos primeiros anos da banda. A maneira como Dinho conduz “Lá Vem a Morte” e “Onda Negra”, para ficar em apenas dois exemplos, é um ótimo exemplar disso.
Uma pena que o show durou pouco menos de uma hora – quando estava chegando no auge, acabou. Ainda houve espaço, porém, para Benke Ferraz agradecer à presença do público, que chegou cedo para ouvir “um show de rock” – sinal dos tempos, talvez? De qualquer forma, foi um belo espetáculo, que, seja pela qualidade ou até pela ambientação, merecia ter aparecido mais tarde no lineup – muita gente perdeu o show da banda por ter ficado preso no trânsito ou com medo do toró que caía em São Paulo.
Na sequência, era a vez do trio curitibano Tuyo e seu som de centro acadêmico, providencialmente pulado pela reportagem do Scream & Yell. Era preciso comer: a noite era longa e todos os shows eram encavalados, quase sem respiro entre um e outro. A solução para a fome foi encontrada numa área de food trucks montada na entrada do evento, com pizza, hambúrguer e outros quetais – a mini pizza de pepperoni, a R$ 12, segurou a onda bem antes da larica da madrugada.
Às 21h, era a vez de Karina Buhr, Isaar e Alessandra Leão reeditarem seu encontro dentro do Comadre Fulozinha. Foi bonito: as vozes das três e o bom trabalho de percussão deu um colorido especial à noite. Para quem já conheceu Karina Buhr na encarnação solo, acompanhada de Scandurra&Catatau&Guizado, foi uma bela introdução ao repertório de seu grupo anterior. “Tocar na Banda” ainda é uma grande canção – e sintomático pensar que algumas coisas pouco mudaram desde 2003 (e quiçá, desde quando Adoniran Barbosa a escreveu, há mais de cinquenta anos). Uma pena que faltou certa dinâmica ao show: com músicas bastante parecidas, uma hora cansou. Mas foi bonito.
Impressionante mesmo foi o show de Maria Beraldo, logo na sequência. Clarinetista do Quartabê e dona de um dos discos mais excitantes do ano, “Cavala”, Maria parece ter vindo de um lugar completamente diferente que o Brasil de Biroliro, Janaína e Kim Katiguria. Um lugar onde faz sentido e tem público um show absurdamente experimental, no qual Maria toca clarinete, faz programação eletrônica, canta bem e transa com sua guitarra em pleno palco. Parte de seu sucesso pode se explicar pelo texto das canções, que se abre para a exploração da sexualidade e do gênero.
Mas é a música que vale mais: a hora no qual ela abusa dos graves em “Tenso”, uma música tesuda, faz a perna da plateia tremer como se a energia daquele tesão estivesse sendo liberada naquele exato momento. O mesmo vale para a delicadeza e a estranheza, combinadas como um coquetel agridoce, na reinterpretação de “Eu Te Amo”, uma das músicas mais sofridas de Chico Buarque. É uma daquelas sacadas que fazem um repertório valer a pena. Em cerca de uma hora, Maria mostrou que o Brasil já tem uma St. Vincent para chamar de sua – com a diferença que a nossa é ainda mais experimental que Annie Clark.
Outro aspecto interessante da música brasileira atual que apareceu na escalação do No Ar Coquetel Molotov é a ideia de que o rap, mais do que um estilo, é uma linguagem para qualquer um pirar em cima. A apresentação de Edgar foi uma ótima amostra disso: com figurinos ousados e uma vibe cinematográfica-artê-distópica-parangolé, o rapper (repetindo a boa apresentação no MECABrás, dias antes) mostrou a força das canções de seu disco “Ultrassom” – em “Liquida”, por exemplo, ele une Zygmunt Bauman e o metrô que nunca abre para uma utopia sobre o futuro, em versos acelerados. Para acompanhar de perto.
Já era praticamente sábado quando veio ao palco o principal nome do lineup: Baco Exu do Blues. Há uma semana, só se fala nele e em seu novo disco, “Bluesman”. O show do Coquetel Molotov estava marcado há bem mais que isso. A expectativa do público era altíssima. O que Baco faz? Anticlimaticamente, resolve tocar as canções de seu primeiro álbum, o excelente “Esú”, ignorando o novo repertório por boa parte de sua apresentação. Quando o fez, chamando Tuyo ao palco para cantar “Flamingos”, a casa veio abaixo – como era de se esperar. A sensação, porém, era de que aquilo era um brinde, uma exceção à regra, um cinturão de que Baco poderia se orgulhar de carregar no quadril após doze suados rounds.
Não era: é amador demais lançar um disco e, uma semana depois de seu lançamento, não se preparar para executar o show desse disco. Ainda mais no caso de “Bluesman”, com uma preparação de mídia enorme – houve um curta! entrevistas para todos os jornais! a Beyoncé comentando no stories!. Ao vivo, as músicas de “Bluesman” funcionam muito bem (“Flamingos” foi ótima, “Preto e Prata” rendeu bom bate-cabeça e até “Me Desculpa Jay-Z”, com a cantora 1LUM3 (lê-se “ilume”) rolou bem), mas é pouco. Especialmente ao se considerar que, no caso da primeira e da última, a força veio não de Diogo Moncorvo, mas sim de seus convidados especiais.
Se é um grande MC e capaz de ter boas produções em estúdio, Baco ainda precisa aprender a se apresentar ao vivo – seus shows são inconstantes e dependem muito de fatores externos (outra apresentação, no Coala Festival 2018, reforça essa tese). Ele pula demais e perde o fôlego, ele não sabe entender a plateia e por muitas vezes não consegue construir sequências: ao alternar uma lovesong e um bate-cabeça, uma lovesong e um bate-cabeça, Baco deixa a plateia confusa e irrequieta com tanta variação.
Falta tato para aproveitar o grande repertório que tem – ele chegou a interromper a plateia, que cantava a plenos pulmões, no meio do hit “Te Amo Disgraça”, para corrigir algo incompreensível. Foi um balde de água fria – e seguirá sendo enquanto Baco não conseguir canalizar as grandes canções que tem e a sua energia criativa, seja pelo lado enérgico, sexual ou depressivo, para algo que o eleve ao vivo. Alguns poderão dizer que é exigir demais de um cara de 22 anos, mas é a qualidade do repertório de Baco que o qualifica para ser cobrado de tal forma – com o que tem nas mãos, ele facilmente pode construir um dos melhores shows do país.
Ainda havia tempo no final da noite para a apresentação da Coletividade Namíbia, mas a chuva torrencial que continuava a cair na Lapa avisava que era hora de ir embora. Em sua primeira aterrissagem em São Paulo, o No Ar Coquetel Molotov mostrou aos paulistanos seu melhor cartão de visitas: a atenção com o lugar (só não foi melhor porque a The Week tinha espaços abertos, que acabaram inundados) e uma curadoria especial. Com grandes shows de Maria Beraldo, Boogarins e, apesar da decepção Baco Exu do Blues, o festival mostrou porque é um dos sinônimos da qualidade da cena brasileira independente. Que ainda tenha muita gasolina pra queimar, aqui na capital paulista ou em Recife.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista do caderno Link, de O Estado de São Paulo.