Entrevista por Renan Guerra
Poty lançou em junho deste ano “Percepção”, seu disco de estreia. Sem alardes, o músico e compositor gaúcho apresenta um dos trabalhos mais interessantes e instigantes de 2018. Entre o rock, o folk e outras psicodelias, Poty cria canções misteriosas, que pedem a atenção do ouvinte para a sua poesia quebradiça e hipnótica.
Depois do impacto causado por seu disco, era hora de tentar entender um pouco sobre o artista por trás da obra. Gaúcho de Jaguarão, na fronteira do Brasil com o Uruguai, Poty teve seu disco produzido por Ian Ramil e Guilherme Cero. Criando ao lado de seus pares geracionais no Sul, o artista integra de forma sólida uma cena que parece cada vez mais deixar de lado os maneirismos que faziam parte do que se chamava de “rock gaúcho”.
“Percepção”, lançado pela Escápula Records, é um disco a ser descoberto e desvendado, por isso mesmo conversamos com Poty, via e-mail, para tentar montar esse quebra-cabeça e assim podermos mergulhar mais fundo em seu universo. Dê play no disco e leia o bate-papo abaixo:
Para começar, logo de cara, quem é Poty? Você é quase inexistente na internet, por isso queremos conhecer um pouco sobre a sua carreira musical até chegar nesse disco de estreia.
Sou cantor e compositor. Nasci em Jaguarão, na fronteira do RS com o Uruguai, mas morei praticamente a vida toda em Porto Alegre. Comecei a compor com 15 anos, ainda na época do colégio. Toquei em alguns projetos nos quais já colocava minhas composições no período em que trocava de cursos na faculdade. Há mais ou menos sete anos decidi firmar o pé profissionalmente na música, mais ou menos na época em que se criou um coletivo de compositores aqui em Porto Alegre chamado “ESCUTA – O Som do Compositor”, onde conheci diversos compositores da nova geração daqui, como o Ian e o Thiago Ramil. Nesse período lancei um single/clipe da música “Fugas de Setembro”, um EP chamado “Casa” e agora o “Percepção”.
Falando diretamente sobre o “Percepção”, esse disco foi produzido ao lado de Guilherme Ceron e Ian Ramil. Como se deu esse processo de criação e produção?
O Ceron e o Ian produziram o EP “Casa”. Essa foi a nossa primeira experiência trabalhando juntos. O EP foi gravado ao vivo, e nós gostamos tanto do processo e do resultado que assim que terminamos ele já firmamos a vontade de dar sequência com um álbum. O disco novo foi gravado ao vivo também, com a diferença de que fizemos uma pré-produção mais demorada e uma pós mais elaborada, gravando mais elementos e participações. A banda que gravou o “Percepção” já vinha me acompanhando há mais de um ano, então o processo se deu de forma bastante natural. A banda base foi Bruno Neves na bateria, Lorenzo Flach na guitarra e o Ceron no baixo. Gravamos o disco no estúdio da Pedra Redonda, do nosso amigo e músico/engenheiro de som Wagner Lagemann. Eu, o Ian e o Ceron escolhemos juntos as músicas que levaríamos pra pré e lá, já tocando elas, fizemos os cortes e adições finais. Terminamos a mixagem conjuntamente também e mandamos pro Lisciel Franco fazer a master no Rio de Janeiro.
Você é de Jaguarão (eu sou do RS também e sei o quanto isso fica distante), então queria saber como esse espaço geográfico influi ou influiu na sua produção musical, tanto nas coisas práticas quanto nas questões poéticas.
Não tem como escapar da influência do teu ambiente. Aqui tem a distância dos grandes centros do país, tem o clima diferente, tem a proximidade com o Uruguai e Argentina. O folclore local também é muito forte. Tudo isso acaba se infiltrando nos trabalhos de quem é daqui, talvez até mais de forma inconsciente do que consciente, no meu caso. Na prática, a dificuldade de chegar nos grandes centros é grande. Realmente estamos longe aqui, mesmo com a internet pra conectar de alguma forma. Mas acho que isso também é processo, é tempo. Tem uma cena aqui ganhando cada vez mais força com os novos trabalhos que estão sendo lançados. Esse ano foram muitos. Só a Escápula Records, selo pelo qual lançamos o disco, teve vários lançamentos. Thiago Ramil, Musa Híbrida, Alpargatos, Juliano Guerra. Amigos de outros selos também lançaram, como o João Salazar que lançou o primeiro disco dele pela Tronco. Dingo Bells lançou disco novo esse ano também. Tem sido um ano de muita produção de coisa nova aqui no sul.
Você falou em troca de cursos na faculdade: por quais cursos você passou? Atualmente você trabalha exclusivamente com música? Como funciona esse mercado para você no Rio Grande do Sul?
Passei pela engenharia civil em seguida que saí do colégio. Parei no meio e fui pra Letras, com ênfase em tradução do inglês, mas também não terminei, pois decidi investir meu tempo e energia na música. O mercado pra música independente aqui é bem complicado. Mas, como eu disse antes, acredito que com tempo e construção de uma nova cena isso deve melhorar.
Apesar de todos esses trabalhos vindos do sul, percebo seu disco meio deslocado deles, como que num universo muito próprio e pessoal – há ecos dos anos 70 e outras coisas, mas nada subserviente. Havia alguma sonoridade inicial que você havia pensado para o “Percepção”? Quais suas influências para chegar nesse resultado?
A construção consciente das minhas influências parte dos Beatles. Mas não imaginei uma sonoridade específica pro disco. A ideia sempre foi deixar acontecer. Fazer a conexão entre as minhas composições, as ideias dos produtores e o trabalho de arranjos da banda. Acho que a personalidade do disco vem da união desses elementos.
As composições que constroem o “Percepção” não são simples ou óbvias. Como é seu processo de criação? Você produziu especialmente para esse disco de forma fechada ou aqui temos um emaranhado de canções de toda sua trajetória?
Tudo parte do instinto. Depois vem a parte consciente da composição. Eu procuro palavras que deem sentido e musicalidade ao mesmo tempo. E no contexto geral provocar reflexão. O “Percepção” tem músicas mais antigas e outras mais novas.
De todo modo, sinto que no sentido das canções há algo meio oculto, parece algo meio místico, que vamos descobrindo aos poucos – difícil explicar. Você entende isso que eu quero dizer? É como se você construísse as canções de forma a deixá-las mais misteriosas, quebradiças, a serem desvendadas.
Entendo sim. Esse efeito de provocar a descoberta da música aos poucos é algo que me agrada. Às vezes eu parto de uma experiencia pessoal pra depois expandir ela pra ideias mais globais. Nessa construção acontece de aparecer a subjetividade de um processo de reflexão. E, como tu mesmo disse, nem sempre a gente consegue explicar exatamente o que sente. Eu acho importante comunicar bem as ideias e ao mesmo tempo acredito que a poesia pode provocar várias intuições e interpretações.
Você cita os Beatles como uma influência primordial. Quais outros artistas influenciam seu trabalho? Desde músicos até outras áreas.
Electric Light Orchestra, Pink Floyd, Radiohead. Mais recentemente Dirty Projectors e Fiona Apple. Clássicos do folk como Dylan, Neil Young, Joni Mitchell, The Band me influenciam bastante também. Cantores como Frank Sinatra e Fred Mercury. Isso de fora. Aqui gosto muito de Chico, Caetano, Tom, Vinicius, Milton. Coisas que ouço desde criança, pois meu pai gosta muito. Mutantes e Secos e Molhados também. Pra resumir (haha). Os filmes do Charlie Kaufman me tocam muito. Ótimas trilhas sonoras. Jon Brion faz trilhas maravilhosas. Gosto de ler Dostoiévski, Kurt Vonnegut. São leituras que me instigam.
Precisamos falar sobre a capa do disco: fiquei um bom tempo acreditando que seu olho era como na capa! A foto é do Nícolas Alexandrini e o conceito visual é do João Salazar (que também fez a foto que abre esse texto), porém pergunto: quais eram as intenções com essa arte?
A intenção era não ser comum. O Ceron veio com a ideia, isso antes de o disco ter nome. Conversamos muito sobre o significado e o que queríamos passar com a capa. Eu queria que fosse algo mais que uma capa “óbvia”. Quando defini que essa seria a ideia da capa o nome se definiu junto. Não poderia ser outro. E conectou tudo. Capa, nome, músicas. Mexer com a percepção. Chamei o Nícolas pra fazer as fotos e o João Salazar pra fazer o encarte. São dois amigos que conheci através do Lorenzo, que gravou as guitarras do disco.
Quais são seus planos, intenções e perspectivas agora que o “Percepção” já está no mundo? Pretende levar seus shows para outros estados?
Nesse momento minha intenção é tocar e divulgar o disco. Esse ano tenho feito uma boa quantidade de shows aqui no Rio Grande do Sul (alguns com o projeto que tenho com outros três compositores chamado ‘Ortácio, Borghetti, Salazar & Poty’ – OBS&P). Procurar e desenvolver caminhos pra chegar no público e contribuir pra cena local. Quero muito tocar em outros estados agora que lancei o disco. Pretendo viabilizar algo nesse sentido em 2019.
Esse projeto Ortácio, Borghetti, Salazar & Poty funciona para que vocês apresentem os repertórios próprios de forma coletiva, é isso? Fale mais um pouco sobre o conceito por trás desse encontro e quais as possibilidades de continuidade desse projeto.
A ideia central desse projeto é aumentar as nossas possibilidades de circulação pra fora de Porto Alegre e levar nossos trabalhos individuais a mais lugares e a públicos novos. Como artistas solos é bem complicado levar um show pra fora, principalmente pelos custos envolvidos. Essa junção tem características de banda, sem ser uma banda. Dividimos os custos e somos a banda um do outro. Mas, ao mesmo tempo, mantemos o protagonismo de cada um e as individualidades dos trabalhos. Naturalmente, nos mais ou menos seis meses de existência do projeto, começamos a compor canções novas juntos. Estamos deixando as coisas tomarem um caminho natural, sem forçar nada. Já fizemos duas turnês pelo interior aqui do Estado, recebemos o convite e tocamos no Sofar Sounds Porto Alegre e fomos chamados pra tocar no Morrostock, um festival bem tradicional que acontece em Santa Maria, em dezembro. E estamos gravando a nossa primeira composição conjunta, que vai ser lançada com clipe, mas ainda sem previsão.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o site A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.