Texto por Renan Guerra
Fotos por Vitor Penteado
Em seu novo show, “A Mulher do Pau Brasil”, Adriana Calcanhotto inicia como uma Macunaíma pós-tropicalista, que levanta de sua rede estendida no meio do palco, já empunhando sua guitarra para logo de cara cantar a canção que dá nome ao show. Espécie de viagem pelos diferentes brasis, o show de Calcanhotto foi idealizado enquanto ela residia em Portugal, como professora convidada na Universidade de Coimbra. Nesse sentido, mesclam-se no repertório poetas portugueses e brasileiros, numa espécie de olhar sobre a nossa construção identitária.
Por causa de seu longo período fora do país, as sessões de “A Mulher do Pau Brasil” estão com ingressos esgotados por onde passam. Em São Paulo não foi diferente: os ingressos para os quatro dias no Sesc Pinheiros – 06/07/08/09 de setembro – se esgotaram em uma hora e meia. A expectativa por um novo espetáculo de Adriana era alta e o novo show cumpre a função de mostrar que Calcanhotto segue instigante.
O programa do show cita palavras como “antropofagia – modernismo – tropicalismo”, por isso mesmo pairava certo temor de este ser um show a reviver as mesmas canções e as mesmas referências de sempre, porém ledo engano: o Brasil solar, brejeiro, das praias e do samba não aparece claramente no espetáculo de Calcanhotto. O Brasil que ela é canta é esse de um povo em formação, é o Brasil de 2018, extremamente confuso e ainda incompreensível (como ela já cantava lá em 1992: “lanço meu olhar sobre o Brasil e não entendo nada”).
Com uma luz e um cenário vibrantemente vermelhos, a cor tão marcante do Pau Brasil, Adriana sobe ao palco rodeada apenas de Bem Gil e Bruno Di Lullo, que tocam diferentes instrumentos, numa construção mínima, mas que possibilita novas leituras de canções já conhecidas: muitas aparecem com interferências eletrônicas fortes, outras ganham delicadeza em suas versões banquinho-e-violão.
“A Mulher do Pau Brasil” era o nome do primeiro show de Calcanhotto, em 1987, lançado em Porto Alegre, porém esse novo espetáculo foi construído como concerto-tese da residência artística de Adriana em Coimbra. Nesse sentido, é possível enxergar um percurso que a artista percorre durante o espetáculo: começamos com os poetas formadores. Temos “Mortal Loucura”, de Gregório de Matos, musicado por Zé Miguel Wisnik; temos “A Dor Tem Algo de Vazio”, poema de Emily Dickison traduzido por Augusto de Campos e musicado por Cid Campos; temos Alberto Caeiro (um dos heterônimos de Fernando Pessoa) musicado por Fred Martins em “Noite de São João”.
Este espetáculo realça o olhar de Calcanhotto sobre a poesia e essa relação que ela sempre desenvolveu entre poesia e canção: a música pop como meio para a poesia. Nesse sentido, ela traz como canção de trovador moderno o seu hit “Esquadros”, canta a parceria de Caetano Veloso e Ferreira Gullar em “Onde Andarás” e homenageia o seu parceiro Antonio Cicero, hoje um Imortal da Academia Brasileira de Letras, ao reler o também hit “Inverno”. Caetano Veloso ainda é resgatado na antropofágica “Vamos Comer Caetano”, uma ode ao tropicalismo, a poesia e a criação artística, tudo isso com direito a Adriana tocando prato-e-faca, uma homenagem ao samba de roda baiano.
Caetano ainda é resgatado no lado mais político do show: Calcanhotto apresentou “O Cu do Mundo”, faixa que não estava no programa original do show, e extremamente necessária de ser redescoberta na atualidade. De versos que dizem “a mais triste nação / na época mais podre / compõe-se de possíveis grupos de linchadores”, a canção se torna poderosa na interpretação mínina e dolorosa da cantora, um dos pontos mais altos do show.
Na vertente política, Calcanhotto também rele a pulsante “As Caravanas”, de Chico Buarque, com direito a Bem Gil no beatbox, que traz ares de funk à canção, interpretada por Adriana ora cantando ora quase declamando os fortes versos. Nessa perspectiva do Brasil atual, ainda destaca-se “Ogunté”, a mais forte das faixas inéditas do show e que funciona como canção de luto pelo país.
Adriana diz que este é um espetáculo de luto, dor e luta, inclusive um luto pessoal que Adriana enfrentou nos últimos anos, já que sua esposa Suzana de Moraes faleceu em 2015. Ao jornal português Público, ela disse “tem o luto pelo Brasil, pelo episódio da Marielle [Franco], pela situação no Brasil (13 milhões de desempregados é um Portugal desempregado!); a minha luta, quando eu era jovem, a militância que precisa continuar. Tem o meu luto pessoal e a minha luta pessoal, e o que atravessa tudo isso é a palavra dor”.
De todo modo, para enfrentar isso tudo, ela escolhe a luta! Tanto que no bis do show, ela volta ao palco e diz “vamos pensar positivo” e entoa “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho, em versão “samba de guitarra”, num estilo que remete ao seu disco “O Micróbio do Samba” (aliás, essa versão de “Juízo Final” finaliza-se com versos de “Eu Vivo a Sorrir”, do disco citado).
Mesclando sucessos com releituras distintas (como uma divertida versão de “Eu Sou Terrível”) e um olhar pontual sobre o Brasil de agora, “A Mulher do Pau Brasil” consegue ser um show extremamente pulsante, pois usa a poesia a serviço de diferentes frentes: o encantamento, a reflexão, a sinestesia. É a poesia frente às incertezas e o medo do nosso tempo! Para quem não conseguiu garantir seu ingresso nessas primeiras sessões, Calcanhotto volta a São Paulo em 30 de novembro, no Teatro Bradesco. A turnê “A Mulher do Pau Brasil” ainda passa por cidades como Porto Alegre, Natal, Fortaleza, Recife e Rio de Janeiro.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.
Ouvi muitos comentários positivos e vi vídeos deste show. Apesar de ser admiradora desta compositora e cantora, não me foi possível estar presente no show no Palácio das Artes.Quero saber se haverá DVD deste show. Parabenizo-a pelos shows e estadia em Portugal. Com admiração e carinho. Helena.