por Renan Guerra
O cinema de gênero no Brasil é sempre esparso, produzido de forma incontínua: aqui e acolá surgem produções que bebem no cinema de ação, de terror ou de ficção científica. A impressão é de que os diretores por aqui parecem preocupar-se muito com um “cinema de autor” e fogem do cinema de gênero, que seria de algum modo menor – curiosamente, um dos maiores autores do cinema era um diretor de gênero: Alfred Hitchcock.
De todo modo, um pequeno grupo já vem a alguns anos criando meios de produzir cinema de gênero no Brasil, o trio Juliana Rojas, Marco Dutra e Gabriela Amaral Almeida. Marco e Juliana são responsáveis por “Trabalhar Cansa” (2011) e “As Boas Maneiras” (2018), Marco ainda dirigiu sozinho “Quando Eu Era Vivo” (2014), que tem roteiro assinado ao lado de Gabriela. Depois de uma caminhada bem-sucedida com curtas-metragens, Gabriela Amaral lança agora “O Animal Cordial” (2018), considerado o primeiro slasher movie brasileiro.
Slasher são filmes de psicopatas, onde a violência e a matança guiam o desenrolar da história. Em “O Animal Cordial”, a ação ocorre em uma noite, dentro de um restaurante de classe média alta: o patrão, os funcionários e três clientes entram num tour de force quando uma dupla de assaltantes invade o local. Em busca da defesa de seu patrimônio e entrando numa espiral de loucura, o dono, interpretado por Murílio Benício, decide começar um jogo de justiça com as próprias mãos, ajudado pela garçonete Sara, interpretada por Luciana Paes.
A partir daí temos litros de sangue espalhados pelas cenas e uma tensão constante, que diz muito mais sobre o Brasil de 2018 do que qualquer filme de poesia. A tensão de classe é o fio condutor para muitos dos embates do filme: o patrão e os funcionários, o policial e o bandido, o advogado, a mulher rica, o gay nordestino. As questões atravessam o filme, mas em nenhum momento o tornam panfletário: essas tensões criam a base para o desenrolar de um filme ácido, mas acima de tudo divertido.
A tensão nos deixa curiosos pelas próximas cenas, pelo que virá a seguir, pelo que devemos esperar. E mesmo assim, Gabriela parece jogar com o espectador: se o público espera o sadismo, a violência gráfica, ela os coloca em segundo plano, em contraplano. O terror e o medo são vistos no olhar de cada um dos personagens e, nesse sentido, o elenco é louvável: Ernani Moraes consegue ir além de sua imagem sempre associada ao humor; Camila Morgado aparece aqui como a grande atriz que é, dando nuances a uma personagem complexamente real; já Irandhir Santos assume o papel de tensionar ainda mais as questões do filme enquanto gay afeminado e nordestino, que verbaliza muito dos medos e das falsas aparências do universo em que eles estão inseridos.
De todo modo, “O Animal Cordial” é inteiramente de Murilo Benício e Luciana Paes: os olhares psicóticos, a tensão sexual latente, os diálogos bem pontuados, cada mínimo detalhe. Luciana já tinha mostrado que é uma estrela em “Sinfonia da Necrópole” (2014), de Juliana Rojas, e aqui ela assume uma força quase monstruosa, ao criar com tanto requinte e com tantas nuances a sua personagem. Já Murilo não aparecia em um bom filme há muitos anos, por isso chega a ser assustadora a sua transformação nesse longa: quase irreconhecível, o ator cria pequenos tiques para o seu personagem que ajudam a construir essa tensão psicótica.
É possível linkar o filme de Gabriela com “O Psicopata Americano” (2000), de Mary Harron, e “Relatos Selvagens” (2014), de Damián Szifron: as tensões sociais e o dia a dia são propulsores para uma loucura e uma violência desmedida e os três filmes enxergam isso de forma ácida, corrosiva, fazendo com que o público ria e não entenda nem por que ri. Em diferentes momentos de “O Animal Cordial” você se pega rindo e se divertido com cenas que são absurdas se vistas por si só, mas que dentro da história funcionam de forma mordaz.
Produzido por Rodrigo Teixeira, da RT Features (responsável por “Me Chame Pelo Seu Nome” e “A Bruxa”), “O Animal Cordial” ainda conta com uma trilha sonora bem anos 80, com uma vibe synthpop que cria um clima meio kitsch ao filme. Composta por Rafael Cavalcanti, a trilha é extremamente interessante: o momento em que eles fazem uma versão de Vivaldi com sintetizadores é maravilhoso!
Apesar de todo o pano de fundo politizado, “O Animal Cordial” não deixa em nenhum momento de ser um filme de terror extremamente divertido e instigante. Ele funciona basicamente como um filme de psicopata, mas se desdobra em diferentes perspectivas quando se fala na violência urbana brasileira, no medo da população, no uso de armas como proteção e nas tensões políticas cada vez mais latentes em um ano de eleição. No final das contas, Gabriela Amaral Almeida consegue fazer um filme de estreia extremamente maduro e seguro, que consegue brincar com as regras do gênero de terror e ainda assim se comunicar de forma certeira com o Brasil, sem soar panfletário ou proselitista. Enfim, assista na tela grande!
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.