texto por Marcelo Costa
Jennifer Egan decidiu que queria seguir a carreira de escritora no meio de um mochilão pela Europa no começo dos anos 1980, quando tinha dezenove anos. Ela nasceu em Chicago em 1962, cresceu em São Francisco (quem leu “Circo invisível” percebe isso com facilidade), fez faculdade na Pensilvânia, namorou Steve Jobs (que instalou um iMac em seu quarto) e seguiu a carreira de jornalista, mas nunca abandonou o desejo de ser escritora — atualmente mora no Brooklyn com o marido diretor de teatro, dois filhos e um gato.
“Praia de Manhattan“, o novo romance de Egan, acaba de ganhar edição nacional. O processo de escrita envolveu muita pesquisa jornalística e um aprofundamento na história de Nova York durante a Segunda Guerra Mundial. “Um livro de época?”, pergunta o leitor. E a resposta é… mais ou menos. Egan caminhou por tantos modelos de escrita em vinte e poucos anos de carreira que se sentiu à vontade para deixar a história conduzi-la, mesmo que não tivesse esse estilo em boa conta quando começou a escrever. Por isso, talvez seja interessante rememorar como ela chegou até aqui.
Seu romance de estreia, “Circo invisível”, foi lançado em 1995 (repare: entre o desejo de se tornar escritora e a realização foram quase quinze anos!), atraiu boas críticas e um contrato de adaptação para o cinema (lançado em 2001 e estrelado por Cameron Diaz, o filme “Invisible Circus” ganhou o nome “Uma História a Três” no Brasil). A narrativa se desenrola de modo mais tradicional, direta e sem floreios, mas repleta de citações de rock e proto-punk californiano dos anos 1970, refletindo os impactos da contracultura na vida de uma jovem.
Dois mochilões pela Europa (bingo!) movem “Circo invisível” enquanto a personagem Phoebe tenta recriar os passos da irmã, Faith, encerrados de forma trágica em Cinque Terre, uma das regiões mais belas da Itália. O leitor segue Egan nesse road book trágico, e a escritora parece reforçar a tese de que somos fruto do ambiente em que crescemos, algo que nunca irá se separar de nós (ou, como diria Mano Brown, “você sai do gueto mais o gueto nunca sai de você”), e isso é de suma importância na maneira como cada um lida com o autoconhecimento (bastante profundidade num romance aparentemente tradicional, não é mesmo?).
Passaram-se seis anos até que Jennifer Egan surgisse com um novo livro: lançado em 2001, “Olhe para mim” foi finalista do National Book Award e avançou no território que a escritora ainda iria desbravar com os livros futuros. Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, publicada em setembro de 2017, Egan comentava o quanto a narrativa convencional a incomodava, e, voltando no tempo, fica fácil perceber o motivo da trama multicamadas de “Olhe para mim”: a escritora não queria se repetir e desejava levar seus personagens a novos caminhos.
Dessa forma, “Olhe para mim” se apoia no drama e no suspense de seus personagens de modo a mostrar o vazio de um mundo refém das expectativas alheias e da imagem que cada pessoa imagina lhe ser imposta. Quase como uma dupla de doppelgängers, duas mulheres chamadas Charlotte passam por arquétipos de tragédia pessoal: a primeira, mais velha, é uma modelo que sofre um acidente e vê a estrutura de seu rosto ser tomada por oitenta pinos de titânio. A segunda, mais jovem, se apaixona por um homem enigmático, e o leitor imagina o equivalente a outro acidente conforme a garota se apega. São dois desastres (sociais) inquietantes.
Cinco anos separam “Olhe para mim” de “O Torreão” (2006), e Egan cria uma reviravolta em sua escrita apoiando-se, desta vez, no romance gótico e experimental. O personagem principal é Danny, um loser que vai ao encontro do primo na Europa, um cara que planeja transformar um velho castelo num resort espiritual. Em outra dimensão encontra-se Ray (o personagem principal… opa!), um homem preso por assassinato que flerta com a professora Holly. Egan pula de um personagem para outro sem perder o poder de condução da narrativa, manipulando o leitor com armadilhas perspicazes em um romance que mistura desespero, ironia e inteligência.
As duas histórias (e os dois personagens principais) se fundem e se separam continuamente em “O Torreão”, uma mescla de real e imaginário que constrói uma sala de espelhos na cabeça do leitor, que é transportado para dentro de um labirinto literário repleto de “alçapões metaficcionais e de armadilhas”, como pontuou a divertida crítica do The New York Times na época do lançamento do livro, e acrescentou que: “Egan sustenta a consciência de que o texto está sendo manipulado por seu autor ao mesmo tempo em que transmite caráter e história com convicção perfeita e apaixonada.” Uou.
Jennifer Egan iria ainda mais longe com “A visita cruel do tempo” (2010), um livro que conta cinco décadas na vida de diversos personagens, entrelaçados em pequenos contos. A obra busca exibir as cicatrizes da passagem dos anos e apontar a decadência da cultura norte-americana ao mesmo tempo em que investiga tempo e desejo. O pulo do gato foi o formato. Egan exercita uma pirotecnia técnica maluca que, felizmente, deu muito certo, seja quando a trama é contada através de slides, seja quando o narrador em segunda pessoa assume a voz narrativa. E isso é só o começo…
“A visita cruel do tempo” transformou Jennifer Egan numa book star, espécie de rock star da literatura (já que a música permeia lindamente as páginas do livro), devido à conquista de prêmios badalados como o National Book Critics Circle Award, o Los Angeles Times Book Prize e o sonhado Pulitzer de ficção, reconhecimento mais que merecido para uma escritora que não havia repetido fórmulas e sempre buscava avançar em sua literatura por caminhos que a instigassem a fugir de uma narrativa convencional. O sucesso de “A visita cruel do tempo” também a colocou entre os hot writers. Segundo Egan, foi um salto quântico numa carreira que, enfim, chega ao quinto livro: “Praia de Manhattan”, lançado nos Estados Unidos em 2017.
Na entrevista ao Guardian, Egan conta que pensou em seguir o mesmo modelo que a alçou ao sucesso em “A visita cruel do tempo”. Em “Praia de Manhattan”, sua ideia inicial, aliás, era conectar a Segunda Guerra Mundial com 11 de Setembro, o fim de algo que começou com a vitória dos Aliados e a transformação dos Estados Unidos numa superpotência. Porém, as primeiras tentativas de escrita não a empolgaram, e ela logo deixou que a história a levasse, o que fez de “Praia de Manhattan” um romance de época de mais de 400 páginas (os ingleses vão mais longe e o descrevem como romance vitoriano!).
No centro da trama está Anna, uma garota que precisa lidar com o sumiço do pai enquanto cuida da irmã, se envolve com a máfia e ainda batalha por uma vaga na equipe de mergulhadores do Arsenal de Marinha, um estaleiro utilizado para recuperar navios danificados na Segunda Guerra Mundial. Retornando aos tempos de jornalista, Egan pesquisou o cenário da época por mais de dez anos, e entrevistou pessoas que viviam em Nova York ou trabalharam no estaleiro, assim como ex-marinheiros e até um mergulhador russo.
O resultado deste mergulho histórico é um livro envolvente com um enorme potencial cinematográfico. Ainda que a escritora tenha abandonado os saltos no tempo e as quebras bruscas de narrativa, isso não quer dizer que “Praia de Manhattan” seja completamente convencional, já que a escritora alterna temporalmente alguns períodos da narrativa (sem se desvencilhar da verossimilhança característica do estilo) e brinca de maneira inteligente com os personagens que contam a história, seja numa casa pobre de uma família irlandesa no Brooklyn, numa boate frequentada por grandes nomes de Hollywood ou num barco tentando atravessar o Atlântico.
Destaque nas listas de grandes livros de ficção de 2017 do National Book Award e da revista Time, “Praia de Manhattan” flagra Jennifer Egan se despindo das artimanhas inteligentes que fizeram de “A visita cruel do tempo” um clássico moderno e mostra uma escritora fiel ao objetivo de não se repetir, mérito raro em um establishment pop que defende a repetição de um êxito até o esgotamento da fórmula. Jennifer Egan, porém, prefere seguir seu instinto, ainda que mantenha o cerne de sua literatura (a ideia de que o ambiente molda a pessoa) em destaque. Para o leitor, mais um grande livro que soa como o final de um grande ciclo e deixa a questão: O que ela irá fazer no próximo? Daqui a cinco anos a gente descobre. Por enquanto, volte no tempo e mergulhe nessa praia.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.