entrevista por Renan Guerra
Perséfone é a deusa do submundo na mitologia grega. Filha de Zeus e Deméter, Perséfone cresceu no Olimpo, mas sua beleza juvenil despertou o desejo de outros deuses, sendo assim raptada por seu tio Hades, o deus do submundo. Sua mãe buscou seu retorno ao Olimpo, mas Perséfone havia comido o fruto oferecido por Hades: a proibida romã. Casada com Hades, Perséfone foi obrigada a morar metade do ano – primavera e verão – no Olimpo e a outra metade – outono e inverno – no submundo. Quando no mundo inferior, Perséfone era chamada Cora ou Koré – seu primeiro nome, significando “moça virgem”.
Cora também é o nome de uma banda curitibana que tem como núcleo central Kaíla Pelisser (sintetizador, voz e drum machine) e Katherine Zander (guitarra, voz, beats digitais e sintetizador), que lança agora seu primeiro disco, chamado “El Rapto”, via selo PWR Records (disponível para audição e download no Bandcamp). Espécie da vertigem dream pop, o disco passeia por esse universo mitológico do rapto de Perséfone para falar sobre feminilidade, liberdade e uma masculinidade um tanto abusiva, tudo de forma tortuosamente pop.
A banda existe desde 2013 de alguma forma, segundo as integrantes, buscando “falar da darkzera que é a alma feminina em processo de descobrimento”. O primeiro EP, “Não Vai Ter Cora”, saiu em 2017 numa parceria dos selos PWR e Honey Bomb Records, porém “El Rapto” é um passo à frente para a banda, que assume novos riscos e se mostra mais madura em suas construções sonoras. Conversamos com Kaíla sobre o tal mito que cerca o disco, as referências da banda, a produção de “El Rapto” e sobre a mística de Twin Peaks. Confira abaixo o papo:
O mito de Perséfone é algo que demarca bastante esse novo trabalho, porém o próprio nome da banda já é uma referência a esse mito. Como vocês chegaram a ele?
Então, justamente o nome do álbum foi baseado nessa descoberta. A gente deu o nome da banda sem saber do mito. A banda surgiu em 2013 e a gente queria um nome que fosse meio universal, que a gente achasse que não significava nada muito específico, mas que também fosse um nome curto, daí surgiu Cora. Depois de certo tempo, a gente foi pesquisar o que significava Cora e tudo mais, e descobrimos a parte do mito e isso fez total sentido. Toda a nossa motivação para fazer música já tinha muito a ver com a parte do mito, que é essa coisa da descoberta interna, de trabalhar com o oculto, dessa dualidade de às vezes ser madura e às vezes ser imatura, de assumir outros papéis na vida; então a gente decidiu basear o disco nessa simbologia do mito.
Que aí vem o nome do disco, o “El Rapto”, que também tem a ver com a história de Perséfone…
Isso, ela tem essa personalidade dual, a Perséfone se chamava Cora antes de ser raptada. Não sei se você está inteirado do mito?
Sim, sim. Eu na verdade conheci o mito de Perséfone por causa daquela música do Cocteau Twins (“Persephone”, do álbum “Treasure”, de 1984). Eu nunca entendia a música e aí acabei lendo sobre o mito grego para tentar entender, de todo modo até hoje não entendo muito dela.
A gente nem tava ligada nisso quando deu o nome da banda. E quando descobrimos tudo isso foi tipo “nossa!”, parece que abriu todo outro universo que já estava ali, mas a gente não sabia. Foi muito legal. Resolvemos pegar do mito todo o recorte do rapto, que é o momento em que ela – é um momento muito simbólico –passa para esse outro lado, que ela descobre essa outra face da personalidade dela: oculto, escuro, tudo mais. Que é esse momento também de amadurecimento, de “ah, será que eu sou ainda uma menina inocente?”, “que outra face eu posso assumir?”, “que responsabilidades eu posso tomar?”, então esse é o recorte do qual o “El Rapto” fala. Têm várias partes dessa simbologia do rapto que o retratam como o momento em que ela foi violada, que ela perdeu a virgindade e etc, todas essas coisas. É ela entrando em contato com o masculino de uma forma abusiva.
Isso que eu ia dizer: o mito da Perséfone é um ponto de partida dentro do disco para diferentes discussões sobre o feminino, a liberdade e a dominação do masculino.
Isso.
Você percebe que esses temas são uma constante no trabalho da Cora desde o lançamento anterior?
Com certeza, foi por isso que quando a gente descobriu o mito, a roupagem das músicas, das nossas composições ficou muito mais clara. A gente já estava tratando disso, só que de uma maneira mais inocente, talvez. Esta já era a nossa temática sem sabermos de toda essa simbologia. Tudo que a gente faz está muito baseado nessas questões psicológicas e internas; as nossas músicas antigas falavam da relação com o pai, dessa coisa da figura paterna, de liberdade, questionavam essas coisas internas sobre auto-proteção, auto-valor… tudo isso de uma forma mais adolescente, um grito mais adolescente mesmo, sem tanta consciência das coisas. Agora eu sinto que tem mais consciência – depois do rapto ter entrado em nossa vida, do mito – e tem um recorte mais claro sobre o qual tratar as coisas que a gente quer falar.
O “El Rapto” tem nome em espanhol e faixas cantadas em português, inglês e espanhol. Como essas diferentes línguas surgiram na produção de vocês? Foi algo natural ou foi mais pensado e definido?
Engraçado que as pessoas sempre perguntam do inglês e do espanhol, mas a verdade que o que é novidade é o português; a gente não escrevia em português. Essas duas faixas em espanhol já têm uns dois anos. A gente começou a compor em inglês e, quando a banda começou, eu tinha acabado de vir de uma experiência na Argentina – eu morei lá por quase um ano. Então voltei com essa vontade de escrever em espanhol. Depois eu e a Katherine voltamos para lá juntas, vivemos várias coisas por lá. Então isso já acompanha a gente faz um tempo. A gente tinha algumas músicas também em inglês e a novidade foi compor em português mesmo, tipo a gente achou que era necessário nesse momento compor em português, pra falar mais com as pessoas, pra… enfim, a gente faz música brasileira, a gente está no Brasil, achamos que era essencial escrever em português, até para demonstrar certa maturidade lírica, por que é mais difícil, às vezes, você se expor e falar o que você quer falar em português, já que é essa linguagem com a qual a gente está acostumado, que a gente já se sente mais exposto. Qualquer coisa que você falar pode ter muito mais nuances do que se fosse falado em outra língua – pois assim as coisas passam mais batidas, em inglês, por exemplo. Então foi meio que isso também: um “dar a cara a tapa”, compor em português.
Dentro do “El Rapto” percebo o trabalho de vocês próximo do dream pop, mesmo assim vocês brincam com diferentes gêneros e subgêneros nesses 40 minutos. Como vocês trabalharam para construir isso: havia sonoridades iniciais com as quais vocês queriam lidar ou transmitir?
Então, desde o começo a gente nunca teve um estilo exatamente que queria seguir ou um gênero musical no qual a gente se baseasse completamente. A banda que mais nos influenciou desde o início foi o Warpaint, a gente sempre viu elas nesse sentido também: você via que o produto da música tinha a ver com muitos estilos, mas é difícil encaixar o estilo delas em algum gênero específico. Talvez por essa ter sido a influência principal no início, a gente também acabou usando muitos outros gêneros para compor o que a gente faz. O produto acabou saindo com algo parecido com o dream pop, mas acho que no momento da composição a gente usou várias outras coisas, por exemplo, a música eletrônica, que agora está bem mais presente, os beats eletrônicos e vários outros recursos. Sou muito chegada em pós-punk também, em no wave, new wave, chillwave… todo mundo da banda, eu acredito, se identifica com esses estilos, até essa música pop mais experimental, tipo Animal Collective, Dirty Projectors, essas coisas que desconstroem um pouco os estilos, então acho que foi essa mistura mesmo que rolou no disco.
A gente falou de gêneros musicais e do mito da Perséfone, mas que outras coisas influenciam vocês? Livros, filmes, essas coisas…
Tem uma coisa bem curiosa que acompanhou a gente nessa descoberta do mito: a gente descobriu o mito e com isso várias outras coisas amarradas. Quando fui escarafunchar o mito, descobri que o arquétipo de Perséfone tem várias outras representações, por exemplo, no tarô ela é a Sacerdotisa. No Zodíaco, ela é o signo de Virgem, que inclusive é o meu signo e o da Katherine também. E aí a gente descobriu isso da Sacerdotisa e eu sempre gostei muito de “Twin Peaks”, sei que é uma coisa que a Kathe também gosta bastante. Eu tinha uma coleção de cartas de tarô com os personagens de “Twin Peaks”. E me lembro que a Sacerdotisa no tarô de “Twin Peaks” era a “Log Lady” [a mulher do tronco]. Nas primeiras temporadas, antes de todos os episódios, ela fazia uma introdução, falando várias coisas que tinham a ver com o episódio. E ela era assim, uma pessoa meio esquizofrênica, mas que, a nosso ver, tinha muita consciência das coisas, por isso que às vezes ela estava à frente, as pessoas não entendiam o sentido que havia no que ela falava. Então a gente começou a usar samples dessas falas dela antes das músicas no show – isso a gente já vem fazendo há um ano e meio, mais ou menos. Esso foi um modo de a gente representar a simbologia do mito de uma maneira mais indireta, usando também uma coisa que a gente gostava, que é “Twin Peaks”. Gosto muito da linguagem que o [David] Lynch usa, essa coisa subjetiva mesmo, de mensagens não tão claras e que você vê ali, absorve, não entende, mas depois, durante a vida, você vai tendo algumas epifanias do que aquilo tinha para te dizer.
O disco de vocês é lançado pelo selo independente PWR Records. Nunca sei se eu falo certo…
Se pronuncia “Power”.
Eu sempre fico na dúvida se eu deveria falar PWR ou “Power”….
Aham, é “Power” mesmo.
No caso, há uma cena cada vez maior de produtores independentes, que estão dando um gás em diferentes eixos foram daquela coisa só de São Paulo. Como você percebe a importância desse tipo de ação?
Então, a PWR surgiu de uma iniciativa muito legal, um catálogo que rolou uma época, de outra produtora, que catalogou todas as bandas de meninas que tinham no Brasil. E aí a PWR veio dessa iniciativa.
Sim, eu cheguei a conversar com uma das meninas [Letícia Tomás] quando elas estavam iniciando ainda os trabalhos da PWR, elas estavam lançando a Papisa naquela época.
Assim, é muito importante trabalhar com pessoas jovens – elas são bem jovens – que entendem a linguagem da internet e todas essas coisas. E que também só trabalham com mulheres, elas entendem bastante os tipos de drama que a gente passa, de às vezes não ser levada a sério por que é mulher ou de situações de falta de credibilidade por você ser mulher, ser jovem, numa cena que é muito masculina. Então é importante contar com o apoio delas nesse sentido.
Além de vocês duas, a gravação do disco contou com uma banda de meninos, não?
Sim, na verdade a nossa banda, no momento da gravação, era eu, a Katherine, a Luísa – que agora já não está mais na banda – o Lorenzo [Molossi] e o Leonardo [Gumiero]. Eles já estavam tocando com a gente há algum tempo. Sempre foi difícil para a gente ter uma formação 100% feminina, a gente já chegou a ter em alguns momentos, mas não durou muito. Até por que faltam mulheres instrumentistas, ainda mais aqui em Curitiba, pois as que têm já possuem muitos outros projetos e acaba que não tem essa disponibilidade. Já depois de algumas formações, a gente meio que desapegou dessa ideia da formação ser 100% feminina. A gente preza por trabalhar com pessoas que estão afim mesmo de se envolver, de se doar para o projeto e que, enfim, tenham ideias parecidas com as nossas, do que só trabalhar com meninas. Os caras com quem a gente trabalha e trabalhou sempre foram pessoas ótimas, com a cabeça muito aberta e dispostas a se desconstruir e a entender como é trabalhar com mulheres.
O disco foi todo gravado em Curitiba, com produção do Leonardo Gumiero. Como foi esse processo de trabalho?
O Léo tocava com a gente fazia uns dois anos, ele tocava baixo e a entrada dele foi muito importante, por que ajudou muito a gente a amadurecer musicalmente. Às vezes tinham coisas que a gente queria fazer e não sabia como. E assim, ele é um músico genial, então consegue materializar muito fácil as ideias. E ele produz também – ele tem um projeto solo de eletrônico e toca em algumas outras bandas –, então a gente achou que não havia a possibilidade de gravar com outra pessoa, por que ele já entendia muito o que a gente queria e o que a gente estava fazendo, o caminho que a gente estava tomando. A gente achou que ele entendeu bem a proposta do que a gente queria: ele foi exatamente na medida do que a gente queria colocar, a nossa poética pessoal, a nossa poética como banda e foi muito, muito bom trabalhar com ele como músico e produtor. E durante esse tempo ele fez toda diferença no nosso amadurecimento.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Lara Albrech / Divulgação.