entrevista por Bruno Capelas
Ele foi parceiro de banda de Phil Collins e Peter Gabriel, inventou uma das técnicas de guitarra mais copiadas da história (o tapping, arma favorita de nomes como Eddie Van Halen e Kirk Hammett) e, em março, estará no Brasil para uma série de shows. Com mais de cinco décadas de carreira, Steve Hackett segue na estrada mostrando as canções de seu antigo conjunto Genesis e de sua carreira solo. “Tenho sorte de ter feito parte da trilha sonora da vida das pessoas, porque trabalhei muito para isso”, diz Hackett ao Scream & Yell, direto de sua casa na Inglaterra.
Membro do Genesis entre 1970 e 1977, Hackett viveu o auge da fase progressiva da banda, em discos como “Foxtrot”, “Selling England by the Pound” e “The Lamb Lies Down on Broadway”. As canções do grupo deverão ser o cerne de seus quatro shows no Brasil – ele toca por aqui em Porto Alegre (Espaço Araújo Vianna, 20 de março), São Paulo (Espaço das Américas, 22 de março), Rio de Janeiro (Vivo Rio, 23 de março) e Belo Horizonte (Palácio das Artes, 25 de março).
Os milhões de discos vendidos e as turnês pelo mundo com o grupo, liderado por Peter Gabriel e depois por Phil Collins, porém, não são o principal motivo de orgulho do guitarrista. “Em 1973, John Lennon deu uma entrevista dizendo que o Genesis era uma das bandas que ele estava escutando na época”, diz. “Ainda não existimos mais, mas acho que ainda vale a pena tocar ao vivo as canções de uma banda que foi notada por Lennon.”
Na entrevista a seguir, Hackett fala mais sobre o Genesis e seu legado em bandas como Muse e Elbow (“Matt Bellamy é um sujeito interessante!”, diz ele, embora haja controvérsias) e sobre o estado da música atual. “É trabalho dos músicos fazer o que os políticos não conseguem: levantar pontes entre as nações”, diz ele, pregando que as parada de sucessos não devem ser dominadas pela dobradinha EUA-Reino Unido.
O guitarrista também dá sua versão sobre a rivalidade entre o rock progressivo e o punk rock. “Comprei o disco do Sex Pistols na época que saiu e adorei. Sério: gostei muito”, diz. “Essa é uma competição forjada pela mídia!”. Além disso, diz não descartar uma reunião do Genesis, comenta sobre seus artistas brasileiros favoritos – Djavan e Ney Matogrosso estão na lista – e diz que quer aproveitar a turnê para matar as saudades do amigo Ritchie – sim, o intérprete de “Menina Veneno”. Com a palavra, Steve Hackett.
O que os fãs podem esperar dos seus shows aqui no Brasil?
Gosto de tocar músicas que fizeram parte da minha história. Normalmente, divido o show em duas partes, com um intervalo no meio. A primeira é dedicada ao que fiz na minha carreira solo, ao lado de nomes como Richie Havens e Steve Howe [guitarrista do Yes], que tocou comigo no GTR. A segunda é baseada no repertório do Genesis, no qual toquei até 1977. Toco “Musical Box”, “Los Endos”, algumas músicas de discos como “Foxtrot” e “Selling England By the Pound”. Gosto de tocar música daquela época, em que toda banda tentava soar como uma orquestra. Minha banda é um grupo global: tem dois caras da Suécia cantando comigo, que se parecem com uma mistura de Peter Gabriel e Richie Havens quando falam ao microfone. Meu baixista consegue tocar Bach sozinho, é fantástico. É uma grande banda.
Você se sente muito confortável falando do Genesis e tocando canções de sua velha banda – algo que não é tão comum com alguns músicos.
Tenho orgulho do Genesis: me lembro até hoje de algo que aconteceu em 1973, quando John Lennon deu uma entrevista em Nova York para uma estação de rádio e disse que o Genesis era uma das bandas que ele estava escutando na época. Não existimos mais, claro, mas para uma banda que chegou ao ponto de ser notada por John Lennon, acredito que ainda valha a pena tocar suas canções ao vivo. O Genesis fez parte da vida de muita gente e as pessoas vão aos nossos shows querendo ouvir essas canções. Tenho sorte de fazer parte da trilha sonora da vida das pessoas, porque trabalhei muito para fazer do Genesis uma grande banda.
Depois que deixaram o Genesis, Peter Gabriel e Phil Collins fizeram uma guinada para o pop. O seu trabalho, por sua vez, explorou música erudita, blues, Erik Satie, talvez não tão direcionada para a parada de sucessos… 40 anos depois, como você vê isso?
Nos anos 1980, houve uma época em que todos nós do Genesis – a própria banda, eu com o GTR e Peter Gabriel com sua carreira solo – tivemos hits no Top 20 das paradas norte-americanas. A revista Time até fez um artigo sobre isso. Mostramos que éramos capazes de escrever sucessos. No entanto, percebi que tinha outra função na música, com a permissão de experimentar e trabalhar com outras ideias. Para mim, a questão não está no formato, mas sim no espírito da música. Ainda acredito em álbuns – o problema dos anos 1980 é que todo mundo só pensava em hits e os álbuns não importavam mais. Os discos, naquela época, eram vistos apenas como uma coleção de sucessos em potencial. Acredito que a música precisa ser melhor do que isso. A música do mundo é incrível – e não deve ser dominada só por Estados Unidos e Inglaterra. É trabalho dos músicos fazer o que os políticos não conseguem: levantar pontes entre as nações.
Como você vê o mercado da música hoje em dia, com serviços de streaming, artistas que não lançam mais álbuns, mas singles…
Hoje, 90% da minha receita ainda vem de música vendida em formatos físicos. Meu público quer o pacote completo, a música em todos os formatos, sentir que não são parte de uma jornada efêmera. Não quero dar às pessoas menos do que elas desejam – se elas quiserem o download, ele está lá disponível, mas creio que há mais que isso. Mas suspeito que há diferenças entre meu público e a totalidade dos fãs de música hoje. Acredito que hoje a indústria está em um momento de questionamento parecido com o que aconteceu quando o cinema se deparou com o surgimento da televisão.
Sua carreira decolou de fato quando o senhor entrou no Genesis, graças a um anúncio de jornal. O que sugere a bandas iniciantes hoje, em tempos de internet?
Se você é bom e está preparado para trabalhar duro, é possível construir uma boa banda da mesma forma que o passado. Há bandas britânicas que gosto de ouvir hoje e que têm uma sensibilidade parecida com o que fizemos no passado, como o Elbow e o Muse. Matt Bellamy é um sujeito muito interessante. Hoje, estou fazendo projetos com orquestras na Inglaterra, gostaria de levá-los pelo mundo. Meu amigo Rick Wakeman faz a mesma coisa: alterna turnês com orquestras e com bandas. Sinto que precisamos continuar a tirar os coelhos da cartola. É o que tento fazer e acredito que as bandas novas precisam fazer o mesmo – embora hoje seja mais fácil saber o que o público deseja com as redes sociais.
Em 2017, fez 40 anos que o senhor saiu do Genesis e também 40 anos do lançamento de “Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols”, o disco de estreia dos Sex Pistols. Há quem diga que o punk matou o rock progressivo. O que o senhor acha dessa controvérsia?
Não acho que isso seja verdade. “Progressivo” é um termo que existe na música há muito tempo, bem antes do rock progressivo. É algo que vem do começo do século XX, do trabalho do violinista britânico Edward Elgar. Depois, Ornette Coleman e John Coltrane foram chamados de jazz progressivo. E é bom lembrar que a gente não chamava o que a gente fazia de rock progressivo na época, isso só veio depois. Já fomos chamados de tantas coisas: rock teatral, fusion, tantos termos diferentes… enfim. Voltando à sua pergunta: meus amigos que tocavam em bandas de rock progressivo, como Yes, Emerson Lake & Palmer, King Crimson e Jethro Tull, não se aposentaram logo após o disco do Sex Pistols. Não acho que o punk matou o prog – e nem vice-versa. Eu mesmo comprei o disco do Sex Pistols na época e adorei. Sério: gostei muito. Acho que essa é uma competição que foi criada pela mídia. Johnny Rotten tem uma carreira hoje, assim como eu e os caras do Yes também temos. Há espaço para todos, sabe?
Quem o sr. vê como herdeiros do Genesis hoje?
Além do Elbow e do Muse, que sinto que tem a mesma postura que nós, também vejo que influenciamos muitas bandas de heavy metal. Eu tinha uma técnica específica de tocar guitarra, que depois Eddie Van Halen adotou e passou a chamar de tapping. De repente, todas as bandas de heavy metal acabaram adotando isso! Foi extraordinário. Para mim, a música é um grande fluxo inesperado: pense em George Harrison ouvindo música indiana ou em todo o legado da música brasileira, com as escolas de samba, o xote e o baião. Para mim, tudo isso deve estar junto — esse é o futuro da música.
O sr. ainda fala com seus colegas de Genesis? Vocês se encontram para fazer um churrasco no fim de semana?
(risos) A gente se fala, se vê de vez em quando. A última vez que nos vimos foi no lançamento do livro do Richard Macphair, nosso primeiro empresário, roadie e amigo. Nós ainda conversamos, sim, espero que um dia façamos algo juntos. Eu adoraria fazer algo para caridade, sem lucro envolvido. Seria divertido. Mas repito: não há nenhum plano específico e não acredito que isso poderia acontecer, é altamente improvável. Repito: altamente improvável! Não é algo que acho que vá acontecer neste mundo. Mas tenho certeza que seria incrível.
Para encerrar, preciso sanar uma curiosidade. Uma das minhas performances favoritas do senhor está no disco de um artista brasileiro, Ritchie. O senhor faz um solo na faixa título do disco, “Voo de Coração”. Como isso aconteceu?
Ritchie é um grande amigo meu. Passei algum tempo no Brasil e ficamos amigos. Não lembro exatamente se ele me pediu para tocar no disco ou se era só uma demo, mas sei que atendi o pedido. Foi algo bem excêntrico: não tocamos num estúdio, foi tudo meio que feito num escritório. O espírito da canção, porém, era tão forte que acabou dando muito certo. Fiquei feliz de ter feito parte de um disco que foi número 1 no Brasil. Ritchie é um cara muito legal e talentoso, gostaria de vê-lo quando voltar ao Brasil nessa turnê.
Vamos fazer essa entrevista chegar até ele!
Seria ótimo!
Queria perguntar mais sobre sua relação com o Brasil. O sr. foi casado com uma brasileira por um tempão. Gosta de música brasileira?
Eu adoro música brasileira. Ouvi por anos e anos o Milton Nascimento. Quando conheci a música brasileira, fiquei muito impressionado com toda a percussão e a batucada das escolas de samba. Já faz algum tempo que não vou ao Brasil, então posso não ter mais tanta familiaridade com os trabalhos mais recentes, mas gosto muito de Djavan e Ivan Lins também. E adoro um disco do Ney Matogrosso com um violonista muito talentoso, Raphael Rabello [“À Flor da Pele”, lançado em 1990]. Os caras do Queen também gostam muito do Ney Matogrosso, ele era espetacular. Vi um show dos dois juntos uma vez, Raphael Rabello era um virtuoso de altíssimo nível, e ele teve uma morte trágica. É uma grande pena.
[Raphael Rabello morreu em 1995, vítima de uma parada respiratória. Seis anos antes, ele sofreu um acidente de carro – a morfina ministrada para aplacar as dores em seu braço acabou lhe causando dependência da droga. Além disso, ao depender de transfusões de sangue, Rabello acabou contaminado com o vírus HIV, o que lhe causou diversas complicações respiratórias ao longo do tempo – incluindo a que o vitimou]
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e trabalha no caderno Link, de O Estado de São Paulo
UAU!!!!!, que belíssima entrevista.
Estarei no show de BH.
Adoro ver o que essa velha guarda da música tem a dizer. Sempre são entrevistas com muito conteúdo.