Texto por Leonardo Vinhas
Cairo, Egito, 25 de setembro. A banda libanesa Mashrou’ Leila, uma das mais relevantes no cenário pop do Oriente Médio, é headliner no Music Park Festival. Durante seu show, um grupo de pessoas levanta uma bandeira do arco-íris, símbolo do orgulho LGBT. A imagem viralizou, foi exibida em TV aberta e teve enorme repercussão – como símbolo da “decadência moral” da juventude. O governo egípcio se aproveitou do noticiário escandaloso e mandou prender 57 pessoas, inclusive as que estavam portando a bandeira. Mesmo a homossexualidade não sendo tipificada como crime no Egito, algumas mulheres e muitos homens foram detidos sob as acusações de “prostituição” e “dissipação” (ou “imoralidade”, se preferir uma tradução mais aproximada).
São Paulo, Brasil, 28 de novembro. O mesmo Mashrou’ Leila faz seu segundo show em terras brasileiras. Na Choperia do Sesc Pompeia (lotada – parabéns à Balaclava Records por ter acreditado no potencial do grupo), muitos casais homoafetivos, principalmente do gênero masculino, transitam e demonstram afeto livremente. A bandeira do arco-íris se faz novamente presente, e é levantada várias vezes ao longo do show. Cenários muito diferentes entre si? Talvez não. Se a violência não se institucionalizou de forma “oficial”, como no Egito, não é possível esquecer que vivemos no país que mais matas pessoas LGBT no mundo – lembrando que a estatística leva em consideração crimes denunciados e/ou investigados. É sensato acreditar que há um número tristemente maior, que não chega a computar estatística. Ao mesmo tempo, é um país no qual ainda existem (resistem?) várias “bolhas”, que permitem alguma segurança a quem tem um comportamento diferente do heteronormativo. É verdade que algumas bolhas, de tão fechadas em si, são alienantes, mas ainda é melhor tê-las a não ter nada. Ou será que não?
Ao longo da quase 1h40 de show, essas questões ficam passando pela cabeça, e não vão embora. É visível, desde o começo, o entusiasmo da banda de estar no Brasil, e ainda “tocando em um prédio da Lina Bo Bardi” (alguns integrantes da banda são arquitetos), como declarou ao site MonkeyBuzz o guitarrista e tecladista Firas Abou Fakher. E sim, a banda se sentia à vontade para tratar de questões políticas e sexuais ao longo do show, como costuma fazer em suas apresentações e vídeos.
O vocalista Hamed Sinno falava bastante (em inglês) entre uma canção e outra, fosse para explicar do que se tratava a composição, para brincar com seu nervosismo (“Sinto que estou suando minha maquiagem em cima de vocês”, “Sério, apaguem as luzes da casa, é assustador olhar para tanta gente que veio nos ver”) ou para xavecar um espectador. Sinno é, segundo a imprensa local, o primeiro artista pop assumidamente gay do Líbano, e autor da primeira canção de amor abertamente homossexual de todo o Oriente Médio (“Shim el Yasmine”, do homônimo álbum de estreia da banda, de 2009). É uma figura provocativa não por causar choque, mas por mostrar-se absolutamente confortável em ser quem é em um país no qual o governo fecha bares gays (fato contado na excelente “Tayf”), incentiva a juventude ao belicismo e ao militarismo (“Em nosso país, só ensinam os meninos a gostar de armas e de carros”, disse a certa altura do show) e reduz direitos civis de gays e de mulheres, baseados em critérios religiosos transformados em lei.
No palco, Sinno dança de forma sinuosa, enquanto solta sua voz grave e poderosa. Seu visual encontra um curioso meio termo entre Freddie Mercury e Justin Bieber em versão árabe, enquanto o resto da banda, toda de preto, mantém a discrição performática (o que não impediu que muitos mancebos e donzelas fizessem comentários apaixonados ou pouco religiosos sobre o violinista Haig Papazian). Na dinâmica instrumental, fica claro que quem conduz a banda são Firas e Ibrahim Badr (baixo e sintetizadores). Em muitas faixas de “Ibn El Leil”, o álbum mais recente do Mashrou’ Leila (2015), os dois deixam seus instrumentos de cordas para se dedicarem às teclas, cabendo a Haig Papazian riffs ou detalhes de violino. O baterista Carl Gerges acaba desperdiçado nessas canções, tendo que se adaptar aos ritmos programados. Nas canções mais orgânicas, como a “bossa médio-oriental” “Fasateen” ou a veloz e quase argelina “Raksit Leila”, dá para ver e ouvir melhor o que ele – e todo o resto da banda, diga-se – podem fazer.
Seja como for, tudo isso funciona a favor do show, cujo repertório trouxe faixas de todos os álbuns (há ainda “Raasuk”, de 2013), mas inexplicavelmente não incluiu nenhuma das seis ótimas canções do EP “El Hal Romancy” (2011) – é quase um pecado a ausência de “Imm el Jacket” e da faixa-título. É curioso notar como, mesmo com vídeos sincronizados e muitas trilhas pré-gravadas (quando foi que isso virou quase uma regra para apresentações ao vivo?), o Mashrou’ Leila ainda se permite o entusiasmo de iniciante, para o bem ou para o mal. No lado “bom”, as brechas para encontrar improviso, a entrega às execuções e a preocupação com o público. Já o lado “mau” inclui fanfarronices como tirar selfies ao fim do show com a plateia ao fundo, ensaiar coros com o público (quando tocaram “Djin”) e coisas do tipo.
De qualquer modo, durante os quase 100 minutos em que estiveram no palco, os libaneses conseguiram criar um ótimo clima, uma espécie de celebração da vida enquanto declaração política, e vice-versa. Musicalmente, a viagem começou com um pé fincado mais firmemente nas sonoridades e harmonias médio-orientais, ganhou contornos de pop mainstream internacional durante a maior parte de sua duração, e encerrou-se introspectiva, incluindo a já citada “Shim El Yasmine”. No meio disso tudo, Sinno comentou o caso no Egito – que continua a prender homossexuais, muitas vezes por meio de policiais infiltrados com perfil falso em aplicativos de paquera, e posteriormente submetê-los a todo tipo de abuso nas prisões. Pediu então que cada um dos presentes “fizesse o que fosse possível” nas redes sociais e nos canais de comunicação para atrair pressão internacional contra as perseguições promovidas pela sociedade egípcia. O sindicato dos músicos locais baniu a banda do país, proibindo qualquer nova apresentação sua lá (o que já havia acontecido também em Amã, capital da Jordânia – curiosamente, a cidade na qual ouvi a banda pela primeira vez – entrevistei-os um tempo depois).
O show termina, mas as reflexões não param. Para um amigo que não é fluente em inglês, explico sobre o caso do Egito. Passado o choque, ele me diz: “Você sabe que não estamos longe disso por aqui, né?”. Ao fim do show, outro colega faz o mesmo comentário, quase que com as mesmas palavras. Em ambos os casos, quero responder: “Calma, ainda não chegamos a esse ponto”. Olho ao meu redor e vejo “a bolha Sesc Pompeia”. Fico pensando se o quanto ela conseguirá resistir à sociedade que propõe projetos que normatizem a “cura gay”, que criminaliza o aborto ao mesmo tempo em que reivindica a pena de morte, que “avalia” uma mulher baseada em seu estado civil ou em seu comportamento íntimo. Acho melhor não responder nada, com receio que meus amigos estejam certos.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.