entrevista por Pedro Salgado, de Lisboa
Numa manhã de sol e frio, anunciando a chegada do outono, encontro-me com Capicua numa esplanada do Jardim da Estrela, em pleno coração de Lisboa. Revelando boa disposição, a rapper do Porto abordou diversos aspectos ligados à sua participação no projeto “Língua Franca” e o impacto da parceria musical luso-brasileira. O álbum foi feito numa residência artística de 10 dias num estúdio, em Portugal, com três produtores (Fred Ferreira, Kassin e Nave) e quatro MCs (Capicua, Valete, Emicida e Rael) com o objetivo de fazer um tributo à lusofonia. Sobre os colegas brasileiros, Ana Matos destaca a forma intuitiva e descomprometida de trabalharem, o sentido de diversão e a abertura de novos estímulos. “Durante o processo, eles inspiraram-me a ser mais livre e espontânea na minha escrita”, conta.
A principal característica do disco é a sua diversidade, passando pelo imediatismo pop de “Ela” e “Ideal” ou a pegada reggae de “Gênios Invisíveis”, entre outras, resultado dos diferentes contributos e vontades, numa tentativa de exprimir as várias visões do mundo e as sinergias desenvolvidas pelos integrantes do “Língua Franca”. Durante um processo de composição definido pela liberdade criativa e mistura sonora, sobressai igualmente a faixa de combate “Egotrip”, assente numa ideia de autossuperação permanente e também entre os participantes. “Achamos que o álbum necessitava desse tom competitivo (umas das principais marcas da cultura hip hop) e sentimos que era importante convidar um rapper da nova escola de São Paulo, que irá se destacar no futuro, como é o caso do Coruja. Por isso, ele, eu e o Emicida entramos na disputa por via desse rap mais aguerrido”, explica Ana.
Presentemente, as parcerias luso-brasileiras são generalizadas: há desde a participação da fadista Carminho no novo disco dos Tribalistas, o encontro entre Criolo e Márcia até o Projeto BPM (Brasil Portugal Misturados), que envolve os rappers Mundo Segundo (Portugal), Vinicius Terra (Brasil) e Sr. Alfaiate (luso cabo-verdiano). O impulso de “Língua Franca” para cimentar a ponte cultural nos dois sentidos, por oposição à ideia de exportar e importar, é assumido frontalmente por Capicua: “Ficou provado que é viável lançar o álbum no mesmo dia em Portugal e Brasil, nessa zona franca da lusofonia, sem que haja uma divisão geográfica. Acaba por ser algo simbólico, porque não exige barreiras (trata-se do mesmo espaço), mas levou o conceito de amplitude mais além”, conclui. Rael, que respondeu as perguntas da entrevista em São Paulo, concorda, e acrescenta: “Não sei se teremos um ‘Língua Franca 2’, mas a ideia mostrou que é possível qualquer um fazer essa conexão Brasil / Portugal”. Confira abaixo o bate papo com Capicua e Rael.
Como surgiu a ideia de fazer o Língua Franca e de você e o Valete participarem no projeto?
Capicua – Foi uma ideia partilhada pela Laboratório Fantasma (editora do Emicida) e a Sony Music de Portugal e do Brasil. Na Lab, eles já tentaram fazer uma parceria mais séria (para além das que realizam informalmente), incluindo rappers portugueses. A Paula Homem (Sony Music Portugal) viu um show do Emicida em que eu participei e sentiu que a sintonia funcionava. Num rasgo de criatividade coletivo acharam que seria interessante fazer um disco luso-brasileiro e editar nos dois países simultaneamente. Para além disso, acreditaram também que o núcleo perfeito incluiria o Rael e Emicida, pelo Brasil, e do lado português eu e o Valete. Julgo que isso se deve ao fato de partilharmos um conceito de rap consciente, muito misturado com outras músicas, envolvido em causas sociais e associado a temas filosóficos. Globalmente, fazemos parte da mesma tribo de rappers com o mesmo compromisso e gosto pelas várias linguagens musicais. Por isso, sentiram que a fusão iria resultar, num projeto que igualmente deriva da mistura. Eu acho que funcionou muito bem.
Rael – A ideia do “Língua Franca” chegou a mim através do (Evandro) Fioti e do Emicida. O Fioti me convidou e falou: “Ó, a gente vai fazer uma parceria com a Capicua e o Valete”. O Emicida, a principio, achava que seria só uma música, e ai quando eu vi, o Fioti falou: “Não, é um disco! A gente vai pra lá gravar”. Era uma ideia que ele e o Emicida desenvolveram com a (gravadora) Sony de Portugal. Eu disse: “Tô nessa, vamos nesse projeto aí”. Dai rolou. Nasceu o “Língua Franca”.
Este disco celebra a paixão de quatro músicos pelo rap e pela língua portuguesa. Até que ponto essa sintonia marcou a composição dos temas?
Capicua – Acho que marcou a composição das canções, mas também o próprio conceito associado ao disco. O álbum celebra a ideia de que há uma língua que nos junta e essa união é mais forte do que qualquer distância cultural, geográfica ou histórica que possa existir entre nós. Essa é a base de tudo e acaba por marcar o resto. Até o nome do projeto aponta nessa direção, “Língua Franca”, o idioma em que nos entendemos, a língua comum. Mesmo que nós tenhamos histórias ou sotaques diferentes (eu própria sou do Porto e o Valete é de Lisboa e temos pronúncias distintas), misturamos o nosso rap com o Emicida e o Rael da periferia de São Paulo, que também têm um calão bastante intrincado e a participação da cantora Sara Tavares também agrega ao disco um sotaque português de travo cabo-verdiano mas, no fundo, essa amálgama musical e linguística prova que é muito mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa.
Rael – A sintonia que a gente teve para compor as canções foi a de compactuar das mesmas ideias. Ficamos 10 dias (em Lisboa) para gravar 10 temas em comum, falando de coisas atuais. Falamos da mulher e da beleza africana… falamos dessa coisa desgarrada, dessa sociedade conservadora, uma ideia que a gente compactua. Somos pessoas livres e outras pessoas quando veem o nosso estilo de vida, acham que não nos encaixamos no ideal de acordo com o mundo que os conservadores pensam. Coisas assim, essa ideia de liberdade, fazer o que gosta e o que bem entender, algo que o rap nos deu… o rap nos deu essa liberdade… na música, na letra, a gente se liberta de vários paradigmas, vários preconceitos.
Um dos aspectos mais interessantes do disco é a suavização temática e instrumental que culmina com o tema “Ela”…
Capicua – Eu acho que “Língua Franca” não tem um conceito que interligue as faixas nem sugere uma narrativa. Musicalmente, é um trabalho muito misturado, que engloba o hip-hop clássico, a eletrônica, aponta igualmente para 2017 e aproxima-se da sonoridade afro brasileira, como é o caso da “AFROdite”, ou seja, engloba várias linguagens. Do ponto de vista temático, “Ela” tem conteúdos muito universais como a morte, amizade ou a música. Quando criamos um disco coletivo, isso torna o processo mais partilhado. Se eu faço um disco solo, posso falar de um tema muito específico e apresentar uma visão muito própria, baseada na minha experiência pessoal, particularizando essa ideia. Fazendo música com mais três pessoas existe menos espaço e temos de encontrar pontos comuns. Esses tópicos universais são partilháveis entre nós, mas também por Portugal, Brasil, Cabo Verde e Moçambique ou pessoas de várias gerações e acho que todo o mundo entende e se identifica com estes temas. De qualquer modo, “Ela” é a faixa mais consensual para o grupo e sentimos que melhor representava o espírito do processo e do projeto, porque fala da nossa relação com a música (diferente nos quatro rappers), mas é aquilo que nos une além da língua portuguesa. Como foi a última música que fizemos, resume bem o espírito de celebração que rodeou a nossa convivência e a forma como evoluiu o trabalho.
Rael – Outro tipo de sintonia: falamos das mesmas coisas. Com a experiência que tive em Portugal, eu vejo que o português de lá soa como se fosse um sotaque, como se fosse um estado do Brasil, sei lá, Curitiba fala de um jeito, Lisboa fala de outro. Isso deu uma sintonia pra nós, afinal independente da distância, já que estamos divididos pelo Atlântico, mas as ideias estavam batendo. Rolou uma energia legal no estúdio, uma atmosfera de conexão mesmo, independente do sotaque. Inclusive a gente brincava com essa coisa do sotaque: a Capicua e o Valete achavam legais algumas coisas que a gente fala aqui em São Paulo, tipo dizer “Valeu” como se fosse “obrigado”. Foi uma coisa divertida, uma atmosfera legal para trabalhar.
Você esteve em São Paulo promovendo o disco. Como foi a recepção do público brasileiro ao Língua Franca?
Capicua – Fiquei com a ideia de que as pessoas gostaram muito do single “A Chapa é Quente” (apenas editado no Brasil) e pelo que leio nas redes sociais, os temas “Ela” e “Ideal” também lhes agradaram. Relativamente ao disco, tenho a percepção que também os cativou. Quando fui ao Brasil, no final de Maio, não deu para obter muito feedback (o álbum foi editado no último dia da sua estadia). Mas, pelo contato que mantive com jornalistas, numa atuação que eu fiz com o Emicida e através de um showcase que fizemos só para convidados, notei que as pessoas aderiram ao disco. A ideia de que os brasileiros não nos entendem e aceitam mais facilmente o rap americano do que o português é errada, eu não senti esse preconceito, antes pelo contrário. Participei de um programa da TV Globo, o Esquenta, durante o Festival Terra do Rap, com o Vinicius Terra, e fui ao Altas Horas. Fico sempre surpreendida com esses shows de grande audiência no Brasil, porque a escala é outra (o orçamento, a produção, etc). Nas duas vezes, senti que as pessoas gostaram e ficaram admiradas por nunca terem escutado rap português ou uma mulher portuguesa cantando rap. O público fica espantado pelo fato dessa ideia pré-formatada não ser assim tão real. Se calhar não percebem todas as nuances, mas se for um rapper nordestino com um calão local isso também acontece. É um pouco como se nós tivéssemos um sotaque de outro estado do Brasil. Quanto mais as pessoas se habituarem a ouvir o nosso português, fica mais fácil no futuro escutar música portuguesa.
Rael – A recepção foi boa, as pessoas adoraram. Sim, os brasileiros acham diferentes os lances no sotaque do português de Portugal, para algumas pessoas isso é novo, mas a gente que é MC já ouvia Valete e Sam The Kid, pra gente é normal. E é algo que a gente vai perceber mais ainda quando rolarem os shows no Brasil. Vamos ter um show com a Capicua no MIMO Festival, no Rio, e acho que a expectativa da galera é boa porque a aceitação foi bacana tanto na crítica da imprensa local quanto no público.
De que forma a participação neste projeto influenciou a sua perspectiva do rap?
Capicua – Na primeira vez que fui ao Brasil, para atuar no Festival Terra do Rap, em 2014, senti que existiam muito mais pessoas que me podiam escutar. Eu nunca tinha pensado na escala da lusofonia, porque pensava em Portugal como o meu mercado ou habitat natural. Depois dessa viagem, constatei que as pessoas me entendiam, faziam parte da mesma tribo do hip hop e de repente parecia que o mundo se alargava à minha frente. Acredito que o projeto “Língua Franca” se ampliou e ficou mais pequeno, ou seja, o espaço em que nos comunicamos é enorme, mas ao mesmo tempo revela proximidade, porque posso fazer discos com artistas de além-mar, eles vêm cá tocar e eu retribuo fazendo shows no Brasil. Paradoxalmente, o universo lusófono é gigante, mas estamos mais juntos do que parece e o disco do “Língua Franca” reforçou essa ideia de uma forma prática. É possível fazer um álbum com pessoas de dois países, partilhando pontos de vista semelhantes. No tema “(A)tensão!”, por exemplo, eu e Emicida falamos do estado do mundo. Apesar da Europa e o Brasil serem diferentes, sofrem com aquilo que estamos observando: o conservadorismo crescendo, a extrema-direita ganhando força, reina a falta de solidariedade entre os povos e as pessoas, erguem-se muros em vez de se estenderem os braços. É um aspecto comum a várias sociedades e afinal não somos assim tão diferentes.
Rael – Esse projeto me influenciou na maneira de olhar diferente (o público português). Quando estive em Lisboa para gravar, passei pelo Bairro Alto, num bar chamado Sentido Proibido, e as pessoas estavam tocando uma música minha de 2010, do meu primeiro disco solo. Eles conheciam também o meu grupo chamado Pentágono – estive 13 anos na estrada com esse grupo. Depois eu voltei a Portugal para tocar no festival Super Bock Super Rock e havia uns músicos de rua tocando outra música minha, e eu vi que as (minhas) relações (com Portugal) foram estreitadas. Com o “Língua Franca”, solidificou mais. Eu não imaginava que existia esse universo, que existia esse público. A Capicua me apresentou outros MCs, que eu também adorei, e eu pude ver que existe uma cena muito forte em Portugal. Isso me deu uma perspectiva grande de como o rap transcende na língua portuguesa muito além do que eu imaginava.
Está prevista a continuidade discográfica e performativa do Língua Franca?
Capicua – Acho difícil que exista uma continuidade discográfica. Apesar de ter sido feito integralmente num estúdio em 10 dias, este trabalho demorou quase dois anos a ser editado, já que a logística de um álbum coletivo é sempre complicada. Nós fizemos um disco e não uma banda (risos). De qualquer modo, a nossa organização está partilhada entre dois continentes, o show tem exigências de produção enormes e funciona melhor em grandes festivais do que em pequenas salas. Em Portugal tocamos recentemente no Festival Super Bock Super Rock, tal como na Festa do Avante e será difícil voltarmos este ano. No Brasil, garanto que faremos concertos durante o verão, embora ainda não possa divulgar as datas e locais. Durante os shows, cantamos igualmente faixas de cada um dos integrantes do “Língua Franca” e nessas misturas fazemos músicas que são revisitadas e isso acaba também por ser outra novidade. Relativamente aos espetáculos, a continuidade está assegurada. Provavelmente, não faremos um novo álbum, mas é possível compor mais temas pontualmente. Hoje em dia, as pessoas escutam menos discos (são projetos de longo prazo), enquanto compor novas canções é algo para o qual existe espaço e temos vontade.
Rael – Não sei se teremos um “Língua Franca 2”, pelo menos não com os mesmos MCs, mas a ideia do “Língua Franca” mostrou que é possível qualquer um fazer essa conexão Brasil / Portugal, de aproveitar a língua em comum e fazer um disco. Agora shows vão ter alguns outros. A Capicua está vindo para o Brasil em novembro, acredito que vamos fazer mais algumas coisas em Portugal, alguns outros lugares, a gente está aos poucos levando isso para a estrada. Foi um trabalho bacana. Foi corrido, afinal foram 10 dias, 10 músicas, cada um tem sua agenda, eu tenho a minha carreira solo, o Emicida tem a dele, e isso também dificulta para um “Língua Franca 2”, mas deixo aqui a ideia para que outras pessoas façam isso também.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Vera Marmelo / Divulgação